Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

5 de outubro de 2022

ÉTICA DE PRINCÍPIOS

 


Transcrito, com a devida vénia, do Informativo Chico da Botica, ano 18 Edição 170 de 30.09.2022:

ÉTICA DE PRINCÍPIOS

Autor – Rubem Alves, Folha de S. Paulo, 04/03/2008

As duas éticas: a que brota da contemplação das estrelas perfeitas, imutáveis e mortas, a que os filósofos dão o nome de ética de princípios, e a que brota da contemplação dos jardins imperfeitos e imutáveis, mas vivos – a que os filósofos dão o nome de ética contextual.

Os jardineiros não olham para as estrelas. Eles nada sabem sobre as estrelas que alguns dizem já ter visto por revelação dos deuses. Como os homens comuns, não vêem essas estrelas, eles têm de acreditar na palavra dos que dizem já as ter visto longe, muito longe... Os jardineiros só acreditam nos que seus olhos vêem. Pensam a partir da experiência: pegam a terra com as mãos e a cheiram.

Vou aplicar a metáfora a uma situação concreta. A mulher está com câncer em estado avançado. E certo que ela morrerá. Ela suspeita disso e tem razão. O médico vai visitá-la. Olhando do fundo do seu medo, no fundo dos olhos do médico, ela pergunta: “Doutor, será que eu escapo desta?”.

Está configurada uma situação ética. Que é que o médico vai dizer? Se o médico for adepto da ética estelar dos princípios, a resposta será simples: “Não, a senhora não escapará desta. A senhora vai morrer”. Respondeu segundo um princípio invariável para todas as situações. A lealdade a um princípio o livra de um pensamento perturbador: o que a verdade irá fazer com o corpo e a alma daquela mulher? O princípio, sendo absoluto, não leva em consideração o potencial destruidor da verdade. 

Mas, se for um jardineiro, ele não se lembrará de nenhum principio. Ele só pensará nos olhos  suplicantes daquela mulher. Pensará que a sua palavra terá que produzir a bondade. E ele se perguntará: “Que palavra eu posso dizer que. Que não sendo um engano (a senhora breve estará curada...) cuidará da mulher como se a palavra fosse um colo que acolhe uma criança?”. E ele dirá: “Você me faz essa pergunta porque você está com medo de morrer. Também tenho medo de morrer...” Aí, então, os dois conversarão longamente – como se estivessem de mãos dadas – sobre a morte que os dois haverão de enfrentar. Como sugeriu o apóstolo Paulo, a verdade está subordinada à bondade.

Pela ética dos princípios, o uso da camisinha, a pesquisa das células-tronco, o aborto de fetos sem cérebro, o divórcio, a eutanásia são questões resolvidas que não requerem decisões: os princípios universais o proíbem. Mas a ética contextual nos obriga a fazer perguntas sobre o bem e o mal que uma ação irá criar. O uso da camisinha contribui para diminuir a incidência da Aids? As pesquisas com células-tronco contribuem para trazer a cura para uma infinidade de doenças? O aborto de um feto sem cérebro contribuirá para diminuir a dor de uma mulher? O divórcio contribuirá para que homens e mulheres possam recomeçar suas vidas efetivas? A eutanásia pode ser o único caminho para libertar uma pessoa da dor que não a deixará?

Duas éticas: A única pergunta a se fazer é: “Qual delas está mais a serviço do amor?”.

(Autor – Rubem Alves, Folha de S. Paulo, 04/03/2008).

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