Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

20 de junho de 2023

Viajando com livros: Afondo Duarte

 Transcrito, com  a devida avénia, daRevista Tempo Livre /Maio/Junho 2023


e convocava a permanência efetiva no quotidiano dos grandes valores universais.

Afondo duarte:a ambição de ser europeu

O poeta que exaltou a génese cósmica da natureza, a celebração panteísta da vida,

a reposição da democracia, a ambição de ser europeu e a supremacia dos grandes valores 

universais Por António Valdemar 

Poesia afirma-se na palavra que 

desperta outra palavra, mais 

outra e outras mais enquanto se 

manifesta o ímpeto do diálogo 

interior. Fixa o que surpreende 

o poeta a cada momento: as pulsões da terra na sua diversidade, 

o voo e o canto dos pássaros, a exuberância 

das árvores e das flores; o curso dos rios, 

a inquietação do mar e a interrogação dos 

astros. Recorre também à memória da infância e da adolescência, à vulnerabilidade 

da condição humana, ao encontro com o 

mundo e ao seu permanente desconcerto. 

É a vida inteira em tudo o que é deslumbramento e em tudo o que é o seu contrário. 

Um dos grandes poetas Portugueses da 

primeira metade do século XX, Afonso 

Duarte (1884-1958) nasceu na Ereira, uma 

das ramificações do concelho de Montemor-o-Velho, próximo da Figueira da Foz. 

Integra-se no Baixo Mondego, onde nasceram escritores, poetas, artistas, mestres 

universitários e outras personalidades de 

evidência cultural, política e social. Basta citar: Fernão Mendes Pinto e Jorge de 

Montemor; Manuel Fernandes Tomaz, líder da revolução liberal; o filósofo Joaquim 

de Carvalho; os poetas Afonso Duarte, João 

de Barros e Santiago Prezado; os pintores 

Manuel Jardim, Cândido da Costa Pinto e 

Eduardo Nery, o crítico literário João Gaspar Simões, os cineastas João César Monteiro e José Mário Grilo.

O itinerário de Afonso Duarte pode, assim, resumir-se: fez o ensino primário na 

Ereira e Alfarelos e o ensino secundário e 

universitário em Coimbra. Licenciado em 

Ciências Físico-Naturais, lecionou em Vila 

Real de Trás-os-Montes, em Lisboa e, sobretudo, em Coimbra. Todas estas cidades 

deixaram-lhe reminiscências inapagáveis. 

Todavia, uma das marcas mais profundas 

ocorreu na altura em que foi incorporado 

no serviço militar, durante a participação 

de Portugal na primeira Guerra Mundial: 

ficou paraplégico e, até à morte, com a mobilidade extremamente reduzida.

A revelação literária de Afonso Duarte, 

num órgão de projeção nacional, verifica-

-se a partir de 1912, na revista Águia, dirigida, no Porto, por Teixeira de Pascoaes. 

Também em 1912 funda, em Coimbra, a 

revista Rajada que reúne poetas, ensaístas 

e artistas plásticos que viriam a salientar-se 

na cultura e na política: Alberto Veiga Simões, crítico, historiador, diplomata de carreira e ministro dos Negócios Estrangeiros; 

Nuno Simões advogado, ministro de várias 

pastas na primeira República, que nunca 

deixou de escrever nos jornais, ocupando-

-se da aproximação cultural luso-brasileira. 

Almada Negreiros que procurava, então, 

tima e na Ode Triunfal; e, por 

exemplo, ao poema Tabacaria (publicado em 1933, na 

Presença). Introduziu numa 

expressão original do registo do tempo, do sentimento 

de incerteza, da sensação de 

vazio, da solidão e incompreensão em face de tudo 

que rodilhava e envolvia o 

próprio Fernando Pessoa.

Numa alusão a estas ruturas que vão consolidar a 

modernidade portuguesa, 

Afonso Duarte rejeita «o estilo enovelado dos poetas fáceis». 

Não se afasta do modelo literário que exaltava a Ereira 

e Coimbra: «É na poesia lírica 

dos rios, / – no sarcasmo das 

rugas da montanha – no que 

me enche de mar, seu sonho e 

desvario – que o meu retrato 

vivo se desenha.» A interpelação política, com exigências 

morais e cívicas, surge nas 

Ossadas e nos outros livros 

que publica: «Honra. Brio. Dignidade: Onde 

estais? Quem vos Preza?» Enfrentava a política e políticos que governavam o País: «Lembram-me bichos, carochas, centopeias, / Musgo, 

paredes húmidas, bolores, / ao pensar na pobreza! Ideias. E causam-me suores.»

O poeta foi tudo isto e, ao mesmo tempo, 

mantinha a ambição de ser europeu. O ano 

Afonso Duarte:de 1949 não apagara os horrores da Segunda Guerra Mundial e, no plano interno, 

sucediam-se as polémicas em torno do movimento criado devido à candidatura presidencial de Norton de Matos. A oposição 

encontrava-se retalhada. A PIDE multiplica 

as prisões em todo o país. É neste ano que 

Afonso Duarte escreveu um dos seus mais 

conhecidos sonetos Terra Natal. Muito mais 

do que um soneto é uma proclamação: «E 

cá mesmo no extremo Ocidental / duma Europa 

em farrapos, eu / quero ser Europeu: quero ser 

Europeu / num canto qualquer de Portugal.» 

Reportando-se, à situação do país e da sua 

própria situação como português e poeta, 

orgulhoso das suas origens, acrescenta: 

«Um presídio será, mas é meu berço! / nem noutra língua escreveria um verso / que me soubesse 

ao sal desta harmonia.»

Afonso Duarte tem publicadas as suas 

Obras Completas, mas falta a organização de 

uma antologia dos poemas mais significativos, para termos acesso direto à amplitude 

do poeta que manteve uma cidadania participativa, procedeu à celebração panteísta 

da vida, à força cósmica da natureza ee convocava a permanência efetiva no quotidiano dos grandes valores universais.