Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

26 de março de 2022

Viajando com livros-Alexandre O’Neill

 


Com a devida vénia se transcreve, da Revista Tempo Livre, este artigo de António Valdemar (a Ilustração é da autoria de Álvaro Carrilho)

Alexandre O’Neill, Viajando com livros, a desmontagem da rotina, 

A sátira arrasadora dos pecados mortais dos portugueses, sem ocultar as grandes interrogações que colocam o homem perante a angústia da vida e o desespero da morte. 

Poucos escritores e poetas denunciaram, como Alexandre O’Neill, os ridículos, as frivolidades, o absurdo, a tragicomédia da sociedade portuguesa. Daí o paralelo entre a sua obra, a de Nicolau Tolentino e a de Cesário Verde. Nos três podemos encontrar afinidades, embora com escritas diferentes, visões diferentes e os condicionalismos de épocas diferentes. De todos, O’Neill está mais próximo de nós. Ainda continua a fazer parte do quotidiano. Recorreu à ironia e ao sarcasmo para a desmontagem de hábitos e rotinas ancestrais. 

Alexandre O’Neill (1924-1986) faleceu com pouco mais de 60 anos. Já não era novo, mas também não era velho. Morreu destroçado por crises cardíacas e hospitalizações penosas. Ficou, a certa altura, um velhinho magro, pálido e de bengala, igual àqueles velhinhos à espera da morte nos bancos dos jardins. Mal começava a falar, esquecíamo-nos do espectro físico em que se transformara. Logo nas primeiras palavras, emergia a sátira rebelde para comentar o dia a dia. Até ao fim mostrou--se implacável perante «o País engravatado todo o ano / a assoar-se na gravata por engano, / o incrível país da minha tia, / trémulo de bondade e de aletria»… 

Não poupava a vulgaridade presunçosa, a pequena burguesia, que julga ser o máximo, que dá cartas, que prega moral, que não tem vergonha e muda de cara, quando lhe convém, enquanto vai fazendo a vida negra aos outros: «Todos os dias os encontro – escreveu numa das suas crónicas tão incisivas como os seus poemas – Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los» (…) Mas também os aturo por escrito. No livro. No Jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema).  Querem vencer, querem convencidos, convencer. Vençam lá à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.»

Viajou. Andou de país em país. Viu museus e palácios. Comeu e bebeu tudo o que lhe apetecia em bons hotéis e bons restaurantes. Mas Lisboa permanecia dentro dele. Era aqui o seu território: passar nas livrarias e alfarrabistas; ir às tascas do Bairro Alto, frequentar velhas leitarias e antigos restaurantes que já não existem ou se existem têm outros clientes. Estou a vê-lo e a ouvi-lo num bate papo numa das esquinas, entre o Príncipe Real e a Rua do Alecrim, a desafiar para uns carapaus fritos, com salada fresca, um tinto do lavrador e a sair do barril. E café. Sempre café.

Tinha um conflito indisfarçável – ou se não tinha inventava – com muita gente que o rodeava: «Tu não mereces esta cidade / não mereces / esta roda de náusea em que giramos / até à idiotia / esta pequena morte / e o seu minucioso e porco ritual / esta nossa razão absurda de ser. (…) «Tu és da cidade onde vives por um fio / de puro acaso / onde morres ou vives não de asfixia / mas às mãos de uma aventura de um comércio puro / sem a moeda falsa do bem e do mal.»

Foi um dos protagonistas do grupo surrealista, quando reunia no Café Hermínios na Almirante Reis ou, então, no Café Royal, no Cais do Sodré. Já não fez parte da tertúlia no Café Gelo, no Rossio. O surrealismo deixou-lhe marcas, mas foi uma aventura breve. Rejeitava compêndios estéticos e cartilhas literárias. Pertenceu ao MUD juvenil, uma extensão do Partido Comunista. A política acompanhou-o sempre. Na luta contra o salazarismo, contra o marcelismo e depois do 25 de Abril, contra partidos que lhe condicionavam a liberdade pessoal e a intervenção pública. Orientava-se por exigências cívicas. 

Recebeu, em vida, quase todas as homenagens possíveis para um intelectual politicamente incorreto. À exceção do Prémio Camões ainda não instituído. Nem foi candidato a candidato ao Nobel. Mas ainda – e em vida – pôde ver publicada a «Poesia Completa», com uma introdução de Clara Rocha (1982); as crónicas dispersas em jornais e revistas recolhidas por Maria Antónia de Oliveira (1985) e com o título «Portugal em forma de Assim». O poema Gaivota aproximou-o de todos os públicos, através da voz de Amália e da música de Alain Oulman.

Espírito crítico e mordaz, Alexandre O’Neill ocupa um lugar muito próprio na literatura portuguesa do século XX. Uma poesia desenvolta em que o divertimento, a ironia e o humor negro, são intercalados por uma outra poesia de fortes tensões líricas. Faz a exaltação da mulher, celebra a volúpia do Amor: «defendo-me da morte quando dou / meu corpo ao seu desejo violento / e lhe devoro o corpo lentamente.»

Possuía uma cultura muito diversificada. Dominava várias línguas. Era um notável tradutor. Trabalhou a língua até ao limite da expressão, buscava todos os recursos de cada palavra; desarticulava as amarras da sintaxe tradicional. Procurou transmitir gestos, tiques e atitudes. Inventava novas palavras, incluía outras extraídas de alfarrábios e ainda outras apanhadas na rua, no café ou ... na cama. 

Estamos hoje com uma Lisboa, desengravatada com outras tias que se instalaram em Telheiras ou no Parque das Nações. Outra classe social. Outra classe política. A poesia e a prosa de Alexandre O’Neill retratam a sua geração e o seu tempo, numa dissecação frontal e agressiva dos comportamentos inveterados dos portugueses. Mas também aprofundou as perplexidades da condição humana. Tudo quanto abrange as interrogações que colocam o homem perante a angústia da vida e o desespero da morte.

António Valdemar



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