Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

2 de abril de 2021

SOCIEDADE E MAÇONARIA NO SÉC.XXI -- a visão de um arquitecto

 


SOCIEDADE E MAÇONARIA NO SÉC.XXI  --  a visão de um arquitecto

Introdução

O presente artigo de opinião surge num contexto de reflexão de um pequeno grupo de livres-pensadores e numa época de pandemia, portanto com características específicas muito peculiares.

Reforço e esclareço alguns dos pressupostos enunciados no parágrafo de abertura, nomeadamente:

.  artigo de opinião – antítese de artigo científico, escapando à correspondente ditadura metodológica mas, em contrapartida, usufruindo das prerrogativas do kairos e da ágape/generosidade , antigos conceitos gregos que adiante explicitarei

.  pequeno grupo de livres-pensadores – não no sentido de insignificante mas, antes pelo contrário, reportando-me ao gSA e considerando um enquadramento, já proporcionado e mais circunscrito, consubstanciado em anteriores artigos directamente relacionados com a presente prancha, nomeadamente “Os Desafios da Tecnologia – Sociedade, Emprego e o Futuro”/I:.Salvador Allende, “A Maçonaria no Séc.XXI – Sociedade, Inteligência Artificial, Automatização e Desemprego – Que Fazer?”/I:.Isaac Newton e “A Maçonaria no Séc.XXI – porquê e como?”/I:.Cândido

.  época de pandemia/características específicas – não sendo um objectivo a análise exaustiva deste fenómeno, a reflexão incidirá nas alterações por ele provocadas no próprio entendimento da realidade; terá sido superficial ou substancial, acessório ou acelerador das mudanças em curso?

Reflectindo sobre a questão da Maçonaria no Séc.XXI, mas tentando evitar redundâncias relativamente aos trabalhos atrás enunciados, a tónica é posta na especificidade referida no sub-título “...a visão de um arquitecto”, ou seja, inspira-se em aspectos epistemológicos da arquitectura e no seu entorno metafísico, para esboçar propostas de fios condutores para a acção maçónica no contexto temporal contemporâneo.

Temas como as alterações climáticas, as questões da sustentabilidade, a mobilidade urbana, as novas tecnologias, as “smart cities”, as casas inteligentes ou a digitalização são certamente temas que “...a visão de um arquitecto”, perspectivando o impacto da arquitectura no pensamento maçónico do séc.XXI, ou vice-versa, deverá ter em conta mas, pessoalmente, julgo que há outros, menos ou raramente evocados, que considero pertinentes e portanto incluo na minha reflexão, nomeadamente o tempo e a memória.

Para justificar esta assumpção, para além dos argumentos que adiante serão apresentados, desde já recorro à opinião de uma colega, Helena Roseta, expressa num artigo de jornal (Público, 30/10/2019), do qual apresento alguns excertos:

“Vivemos... dominados pelo culto da juventude, padrão de comportamento e símbolo de saúde e beleza. A ditadura da novidade impregna as sociedades de consumo e gera uma aceleração e ansiedade crescentes, a que se junta a frustração da inacessibilidade às múltiplas e caras solicitações que bombardeiam as pessoas...

Alessandro Baricco, no seu ensaio Os Bárbaros, fala mesmo de uma mutação: as novas gerações, criadas no tempo da internet e dos telemóveis”inteligentes”, não falam a mesma língua que nós, os antigos, que crescemos com os livros. O que nos separa é uma forma de apreender a realidade, que deixou de ser vagarosa e sequencial, requerendo tempo, meditação e memória, para outra, ultraveloz e dispersa por múltiplos assuntos ao mesmo tempo, exigindo agilidade mental e familiaridade com toda a panóplia de ferramentas da revolução informática.

A novidade apaga a memória, que se confia à tecnologia. O pior é que sem memória individual não pode haver verdadeira inovação – todos construímos sobre o que muitos antes de nós legaram. É verdade que vivemos uma outra revolução demográfica, que alterou profundamente a nossa vida...  a simultaneidade de quatro gerações já não é uma raridade... Precisamos de mudar a forma como percorremos os anos que nos são dados viver... “


Neste momento de Kairos, proporcionado por esta prancha e motivando a organização do meu conhecimento e do conhecimento em evolução, no cerne da minha reflexão estarão pois o tempo e a memória, mas também um conceito mais objectivo: a cidade de 15 minutos.

“What time is this place?”

Este é o título de um livro de Kevin Lynch, inicialmente publicado em 1972 mas com pertinência actual, tendo o autor sido professor no M.I.T., dedicando o seu ensino e investigação fundamentalmente à teoria da forma urbana, envolvendo a percepção do contexto edificado e as suas consequências para o desenho da cidade e para o bem-estar, individual e social.

Na relação entre a arquitectura contemporânea e as pré-existências, podem considerar-se duas tendências extremas e opostas, nomeadamente o restauro (significando a obrigação da fixação imutável do estado da arte ou, por outras palavras, o inviabilizar alterações) e a tábua rasa (como ansiedade obsessiva por novos projectos a qualquer custo), sendo no entanto preferível um outro caminho de transformação, encarado como uma oportunidade de renovação que favoreça a necessidade de evolução da sociedade e, ao mesmo tempo, ponha em evidência o contexto histórico e a arquitectura contemporânea, na selecção dialéctica entre antigo e novo.

Kevin Lynch advoga que, a imagem pessoal do tempo é crucial para o bem-estar individual e que o meio ambiente físico é fundamental para a construção manutenção dessa imagem. Acrescenta ainda que, a análise das condições através das quais as pessoas vivem essa imagem e daquelas desejáveis para a necessária mudança, constituem um contributo maior para as políticas de progresso, com a convicção de que o passado, o presente e o futuro evoluem em conjunto e influenciam-se mutuamente.

Destas reflexões, expressas através dos capítulos do livro, o autor apresenta um conjunto de possíveis direcções/estratégias de intervenção das quais saliento, para o objectivo desta prancha, o reconhecimento das chaves e a atitude relativa à presença do passado e, ainda, às visibilidades da mudança.

Efectivamente a patine do tempo pode ser preservada, imitada ou eliminada e, para tal, as sociedades confrontam-se com várias doutrinas ou estratégias de intervenção, a par das quais a definição dos respectivos propósitos é igualmente problemática, pois tentar manter intacto o passado seria negar a vida mas, por outro lado, os episódios do passado são muitas vezes relevantes para o presente. A memória não pode reter tudo, antes resulta de um processo de selecção e organização em que se aceita o que tem significado e rejeita o que não tem, sabendo que a súbita mudança é dolorosa e que a sobrevivência de edifícios e/ou locais simbólicos é crucial para o nosso sentido de segurança e continuidade.

Os arquitectos quando se instalam em edifícios antigos, na maioria dos casos alteram-nos através de adições e de subtracções que fazem sobressair os elementos sobreviventes, reconhecendo os sinais do passado mas usando uma estratégia que, mais do que preservação, é um uso criativo e interactivo do antigo e do novo.

O mesmo se pode e deve aplicar em relação à população em geral, tanto relativamente  aos edifícios como ao urbanismo.

Resumindo, a escassez de restrições confunde e empobrece, a excessiva restrição é custosa e frustrante e, portanto, é preferível um mundo que mude progressivamente e em que as pessoas sintam o fluxo do tempo. O contraste entre o antigo e o novo, a concentração de elementos significativos de épocas diferentes, mesmo que através de fragmentos de memória, produz uma paisagem mais rica que outra de referência única a um só período – as nossas emoções mais fortes referem-se à nossa própria vida, à nossa família ou amigos, atendendo ao nosso conhecimento pessoal e confirmando-se assim que a continuidade imediata é mais importante que a do tempo remoto.

Com base nestes pressupostos Lynch propõe uma atitude plural relativamente à preservação do património, com a qual concordo, apresentando um conjunto de princípios gerais, nomeadamente:

. para uma efectiva preservação do passado temos de saber para quê e para quem

. a administração da mudança e o uso dos elementos do passado para objectivos actuais é preferível à reverência exagerada pelos antigos objectos/edifícios/cidades

. devemos seleccionar e alterar o passado, contribuindo para torná-lo presente

Já enfatizei que o espaço e o tempo interagem e modificam-se mutuamente: a ideia de espaço forma-se através de uma sequência temporal de cenas; o tempo enriquece-se através de experiências espaciais.

E quanto a estas interacções e respectiva  visibilidade, Lynch elenca uma série de métodos  que simbolicamente as aceleram ou travam, explicitando-as e dando-lhes a possibilidade de se converterem em experiências estéticas – a colagem temporal, os contrastes episódicos, o”design” em função do movimento ou a mudança de configuração a longo termo – métodos que com a participação pública podem ajudar à transformação do meio físico e influenciar positivamente novas atitudes, que ampliem  a nossa capacidade de desfrutar o mundo e reforcem a coerência da nossa imagem do tempo.

A pertinência da tese do livro é confirmada por acontecimentos recentes, tanto em Portugal como no estrangeiro, com o é o caso da vandalização de várias estátuas que hipoteticamente fariam a apologia do racismo, ou mesmo de edifícios classificados como Património da Humanidade, como é o caso da cidade de Palmira na Síria, ou através de propostas descabidas, ainda para mais provindas do parlamento, como a de destruir o Monumento das Descobertas em Lisboa.

Estes exemplos têm mais visibilidade e impacto que muitos outros, anónimos e mais circunscritos, que por aí pululam atingindo a memória emocionalmente mais impactante das pessoas.


A maçonaria nestes casos deve ter uma palavra a dizer: não nos esqueçamos que assumimos o compromisso de combater a mentira e a ignorância.

A cidade de 15 minutos 

Do conjunto de temas que atrás referi, como pertinentes no âmbito desta prancha e da “…visão de um arquitecto”, um conceito actualmente apresentado como inovador mas que direi já antigo, “A cidade de 15 minutos”, pela sua simplicidade, pelo bom senso que evidência, pela plausabilidade da sua implementação, pelo potencial de adesão das pessoas, pela eficácia e mais-valias já demonstradas, merece o meu destaque.

O conceito foi recentemente 

“…popularizado pelo urbanista Carlos Moreno, cujo objectivo é reduzir o tempo perdido em deslocações, bem como o uso de transpores públicos e veículos motorizados privados … uma abordagem centrada no ser humano, amiga do ambiente, baseada nas relações de proximidade e na facilidade de acessos

Esta estratégia urbana não se concentra em abrir estradas com mais eficiência mas sim em reduzir as deslocações, estando assente no fácil acesso a equipamentos e serviços de vizinhança, usos mistos de comércio e serviços, num ambiente de cidade multicêntrica (bairros autónomos equipados) e com densidade adequada…

O que se deve encontrar perto de casa, a 15 minutos de distância, para que uma cidade seja verdadeiramente habitável são as lojas de conveniências, os pequenos negócios e serviços, instalações culturais, de lazer e desportivas, assistência médica, escola, parques, etc…

Na cidade de 15 minutos a rua é o núcleo, o ponto de encontro, o centro das actividades ao ar livre, um local pedonal, verde, para diferentes utilizações ao longo do dia… “ 

 É impossível uma grande cidade, com milhões de habitantes ou mesmo no caso de Lisboa, ser no seu todo uma cidade de 15 minutos e, obviamente, o resultado é o aparecimento de vários núcleos que entre si têm de estar articulados, estabelecendo a cidade policêntrica, com geometrias específicas e varáveis caso a caso – em termos de geometria aplicada é o paradigma da complexidade a substituir o paradigma da ordem.

Sendo um conceito complementar de alguns dos temas atrás enunciados e/ou incorporando alguns deles, a cidade de 15 minutos induz uma hierarquia, uma adaptação e uma revisão dos mesmos em que na minha perspectiva as novas tecnologias/digitalização não devem constituir um fim mas sim um meio e os dogmas (eg. – obsessão por uma rede ciclável omnipresente em Lisboa, muitas vezes desadequada e em contraponto a um défice, em número e organização, dos transportes públicos), devem ser evitados e/ou controlados.

Em tempos, a maçonaria influenciou traçados urbanos e de forma indelével marcou cidades como Washington (EUA), La Plata (Argentina) ou a Baixa Pombalina de Lisboa – o paradigma da ordem. Poderá na actualidade e no espírito dos novos conceitos, disseminando os seus valores, influenciar a renovação urbana tendo em conta o pressuposto da respectiva importância para o bem-estar individual e social.


Kairos e Agape/generosidade

Tendo esboçado dois campos de possível intervenção maçónica, julgo pertinente reflectir sobre o momento, a oportunidade e o modo da acção, sem pretender ser assertivo e particularmente tendo em conta o período pandémico que atravessamos.

Para tal considero que mais do que competências ou perícias, o processo requer um tipo específico de atitude que poderemos designar por espera activa e se cultiva reduzindo o desejo de controlo, o que requer estar atento e focado.

Os antigos gregos tinham dois conceitos para o tempo, Chronos e Kairos, o primeiro referindo-se ao nosso entendimento linear do tempo e proporcionado a raiz etimológica da cronologia, o segundo, menos quantitativo e mais qualificativo, referindo-se ao momento oportuno, um instante passageiro que representa a ocasião favorável, essencialmente uma forma de energia.

O Kairos requer confiança e uma generosidade intelectual que lhe proporcionem as condições adequadas para o aparecimento, generosidade essa que significa ser inclusivo (o que não quer dizer ser acrítico), autorizando tantos parâmetros quantos necessários – designa-se por Agape, um dos três conceitos de amor dos filósofos gregos, aquele que acrescenta valor aos objectos, que deixa espaço para a experiência e para a hesitação.

 Kairos e Agape, enquanto metáforas são essenciais na epistemologia arquitectónica, no momento da criação. Também o podem ser na vida em geral.

Situações ou problemas novos muitas vezes requerem soluções inovadoras, que por vezes surgem num “clic” só posteriormente racionalizado – ocasiões difíceis podem produzir progressos inesperados.

A pandemia interfere com o conceito de cidade de 15 minutos – anteriormente as aglomerações urbanas eram medidas em função do tempo de deslocamento; agora é necessário adicionar outros parâmetros à equação, tais como a necessidade de espaço privado, o facto de os transportes públicos serem evitados ou o tele-trabalho estar a aumentar.

Interfere também com a maçonaria, suspendendo os seus ritmos habituais, forçando o contacto virtual/digital – penso que não deveremos tornar perene o afã digital que se sente, mas apenas usá-lo em justa medida e tempo oportuno.

A mentira na política passou de algo censurável, ou no máximo esporádico, para estratégia política e os políticos voltam a atacar a maçonaria, pelo menos em Portugal, onde qual Trump aportuguesado um conselheiro de estado faz afirmações graves, perigosas e ofensivas sem nada demonstrar – é preciso reagir mais firmemente.


O momento está aí! Que o Kairos e o Agape dêem asas á nossa imaginação!

Amadeu M:.M:.


BIBLIOGRAFIA

Cleempoel, Koenraad van & Pint, Kris – “On Kairos, Agape and Hecate”, in Researh by Design/EAAE 2015, pp.9-20, Karl Otto Ellefsen et.al. –  EAAE / editors, Hasselt, 2015  

Lynch, Kevin – What time is this place?, MIT Press, Cambridge, Massachusets and London, 1972

Roseta, Helena – “Anos Dourados”, in Público - 30/10/2020, p.13

ZAP//  --  https:/zap.aeiou.pt/15-minutos-caminhar-cidades –europeias-357057

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