Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

15 de dezembro de 2020

NADA DO QUE É HUMANO ME É ESTRANHO

 


NADA DO QUE É HUMANO ME É ESTRANHO

…nihil humani a me alienum puto..

Públio Terêncio (185-159 a.C.) em “O Atormentador de Si Próprio”

Sempre pensei e continuo a pensar que se há lugar para dissecar o mais complexo dos paradoxos é, exactamente, na N∴A∴O∴, onde, uma vez iniciados, calcorreamos os diversos degraus infinitamente dispostos, mas nunca indefinidamente, ou seja, começando por mergulhar em Nós próprios vamos em direcção aos Outros e ao Universo. A Humanidade - que tema apropriado para vos transmitir as minhas reflexões. Hoje, sabemos muito mais do que na Antiguidade sabiam os Pais-Fundadores do pensamento, porém e pasme-se, os circuitos neuronais do nosso actual cérebro (quer o queiramos ou não, é a base material da espiritualidade dita humana) são, precisamente, os mesmos que existiam na Idade da Pedra. Se é assim, a pergunta surge de imediato: o que há-de novo e a mais? Bem, a mais, há uma enormidade de novidades que não caberiam em milhares de páginas, mas de novo, e este é o imbróglio, parece não haver nada de nada. Vou expor-vos algumas considerações que, depois de interiorizadas, nos levarão ao degrau seguinte, vale dizer, a vós, e ao cosmos para que a tríade essencial da Iniciação fique ligada, seja ela coerente e racional (à qual estou mais ligado) ou transcendente e emocional (a qual procuro entender). Assim:

1- Graças ao pioneirismo de um cientista português (de seu nome António Damásio) os estudos sobre a fisiologia e patologia cerebral deram um passo de gigante (claro que, e como escreveu I. Newton, apoiado em muitos outros gigantes) no que diz respeito à base anatómica do seu funcionamento.

2- Paralelamente, cognitivistas, antropologistas, psicólogos do comportamento e filósofos, foram acompanhando e reorganizando os processos já conhecidos, acrescentando ou truncando as frases e certezas ditas, mas agora experimentadas.

3- Quer os circuitos de neurónios-base das funções vitais inconscientes (respiração, batimento cardíaco, regulação da temperatura e funcionamento intracelular), quer os das funções vitais conscientes (o amor, o desejo, as artes, enfim, as emoções), estão hoje muito mais dissecados sabendo-se onde estão localizados e, sobretudo, onde decorrem as suas interacções e, a mais, o papel fundamental das neuro-hormonas e neurotransmissores que tanto inibem como acendem e propagam todos estes circuitos já conhecidos.

4- Muitos dos sentimentos, até então exclusivos do foro psicológico, passaram a ter uma explicação física pura e dura (o caso dos apaixonados que, tal como as drogas, têm uma hiperprodução de neurotransmissores que neutralizam os circuitos do recuo e da razão crítica e aquando da sua quebra de produção provocam sinais orgânicos de privação) demonstrando que a nossa Humanidade terá que esquecer (e adaptar-se rapidamente como é costume) os velhos conflitos (matéria/espirito; sagrado laico/religioso; Ideia/real;) que já não têm razão de existir com a forma arcaica, pois agora, embora opostos, fazem parte do mesmo todo.

5- Longe vão os tempos em que, como escreveu Sigmund Freud, o diabo foi a melhor saída para absolver deus quanto à existência do Mal, assim como, embora menos longe, vai estando ultrapassado o interessante estatuto que o materialismo tentou induzir na formação das coisas e do mundo, ou melhor, vai-se atenuando o hábito dos auto-objectivos que reduzem toda a experiência ao que se pode observar conduzindo a métodos de Auto instrumentalização, como escreveu J. Habermas.

6- O tão explicativo conceito sobre os períodos culturais ou civilizacionais (em que uma nova cultura era sempre precedida de uma emigração/invasão que se expressava por coordenadas quantificáveis - expansão territorial, intelectual e espiritual - coincidindo o período de decadência do velho com o crescimento do novo), esta nova cultura dizia, pouco difere das explicações actuais embora estas tenham a particularidade de já não serem necessárias a emigração/invasão pois as ondas da Internet estão a encarregar-se de fazer a mescla que demorava séculos a concretizar-se, quer-se dizer que o homem transforma-se permanecendo o mesmo e para tal a história repete-se sem no entanto se repetir como pensou Abel Salazar.

7- Pena-se mais hoje (sociedade da abundância) do que outrora (sociedade de escassez evidente) num paradoxo muito bem explicadinho em que, lado a lado, se confundem e entrecruzam conceitos, teoremas, acções, ideias, passes de mágica e intrujices, ou seja, sabe-se muito mais com uma diminuída sabedoria ou como diria S. Hawkings e cito…o inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas sim a ilusão do conhecimento…

8- Levar-nos-á, a Liberdade, ao estabelecimento de fronteiras entre a fé e conhecimento ou a tolerância entre naturalistas e religiosos aprender-se-á em vez de ser o cumprimento de uma receita prévia? Claro que os desafios colectivos impõem que não haja respostas arbitrárias e colocar a semântica da religião e o discurso racional ao mesmo nível será o aliciante do futuro, ou seja, Kant e Darwin, porque não, num tríplice abraço fraternal.

9- Da dependência e vulnerabilidade dos homens e mulheres nasceu a natureza social e este espaço público intuído obrigou a humanidade a ser política lembrando-vos que só depois de estarmos conectados a alguém é que podemos experimentar o que é a solidão.

10- Sendo a linguagem o que torna o mundo legível, dizível e compreensível, nunca será o reflexo do próprio mundo pois o pensamento não é a linguagem que o enclausura (Schopenhauer).

11- Descentralizar o uso da razão fugindo da abstracção, ou seja, o reino da inteligência e o das aparências têm que deixar de ser transcendentais para se tornar parte da realidade através de interacções – realizações de actos com uma referência imanente – preposições e pressuposições pragmáticas, nunca regulativas, mas sim constitutivas (citei Habermas).

12- Sei ser difícil não confundir o mundo pressuposto (a totalidade dos objectos e não de factos) com a realidade (que é seja o que for que possa ser apresentado por afirmações verdadeiras – aquelas cujas interpretações são feitas pela linguagem que é humana e independentes do próprio mundo que não fala, nada impõem e só se exibe figurativamente). O segredo, ou seja, o inevitável, é a capacidade de sairmos de nós próprios.

13- Para que serve a razão teórica senão para regular o uso da compreensão? Ao contrário do que pensou E. Kant, a Liberdade nunca poderá ser a capacidade de subordinar a vontade orientando as acções por regras abstractas ou ideais, antes, deve exigir que a certeza de uma acção autónoma seja possível.

14- Não é obrigatória a racionalidade, mas sem ela (em todo o seu comprimento de onda) não continuará a confusão entre liberdade de escolha e livre-vontade, em que a primeira permite adoptar regras dependentes das iniciativas subjectivas e a segunda a obedecer a leis universais que são impostas pela Ética?

15- Destrancendentalizar portanto, é deslocar os seres inteligíveis para sujeitos sociais articulados por uma comunicação específica que, por inerência, modifica os métodos de análise e síntese com a vantagem da racionalidade ser mútua e de objectivos partilhados, sem esquecer que a gramática não se impõe nem domina as leis da natureza.

16- Conhecer aquilo que não é certo é um passo para descobrir o que é certo e justificar embevecidos devaneios por enfatuadas palavras tem sido o modus faciendi dos que, às escuras, opinam e determinam num abismo de plena e incontestável ruína em que a humanidade se embrenhou. Aos que vivem na escuridão chegou a hora de lhes dizer Boa-noite, durmam bem, que nós, na e pela claridade, vamos voar e lutar para que não haja um diabo e meio (o meio é cada um de nós) a torcer pela destruição da humanidade. E fá-lo-emos nunca com um passo maior que a nossa peia nem ingerindo-nos em assuntos sobre os quais nada teríamos a dizer.

17- Graças a C. Darwin descobrimos que no processo evolutivo das espécies os elementos intermediários desapareceram e graças a S. Freud sabemos que no reino da mente coexistem, quer os primitivos, quer os intermediários e quer os actuais, ou seja, pulsões e instintos lado a lado com raciocínios e abstracções levando-nos a que a tarefa de evitar o sofrimento atire para segundo plano a obtenção da felicidade podendo isto ser invertido.

18- Recorrer às construções auxiliares que atenuem a ferocidade da vida é obrigatório e quer a distracção de interesses (como a ciência ou ignorar a nossa miséria), quer as satisfações substitutivas (como a arte) poderão bem ser a plataforma em que se não façam perguntas (como por exemplo qual é o propósito da vida) em cujas respostas nos evadimos (por não haver resposta) infantilizando-nos, pois a pergunta essencial é o que expressa o comportamento humano no propósito das suas vidas, ou seja, o que se pode fazer na vida e o que se espera alcançar nela.

19- A degradação do corpo, o mundo externo e a relação com os outros são as principais fontes de sofrimento e sublimar a porção instintiva constitui a melhor defesa, nunca à custa de uma transformação ilusória da realidade. Faça-se um bom uso do Amor por ser a única maneira de combinar a satisfação dentro da mente, mas sem se afastar do mundo externo.

20- Chega de os homens menosprezarem tudo o que tem valor na vida, e ao aceitarmos a distorção do mundo real imposta, a todos por igual, por imperscrutáveis desígnios arbitrários, estaremos a admitir que o único consolo que temos é o da submissão incondicional (S. Freud).

21- Notável este percurso da humanidade que desde o primitivo inter urinas et faeces nascimur (nascemos entre fezes e urinas) até à substituição do poder individual pelo da comunidade, em que se deu o primeiro passo para a formação das civilizações e culturas, e de seguida descobrindo o uso de ferramentas, domínio do fogo e a construção de habitações. Afinal, frenéticos revolucionários e fanáticos crentes, de costas voltadas, a desejarem que Eros derrote Tanatos que é o seu correlato.

22- Trinta mil genes no genoma humano representando a fundação biológica das personalidades e comportamentos, não são senão uma talentosa máquina de aprendizagem, e nunca deveremos esquecer que a natureza é a parte forte da criação com a experiência, prática e interacção com os outros a provocarem uma incessante mudança e adaptação, adaptação esta que se faz a um mundo exterior sem abandonar o seu próprio mundo, diversificando e não aumentando a sua intensidade.

23- Poderei, então, resumir que, a mais, temos, quer do lado tecnológico (conhecimentos mais pormenorizados da Anatomofisiologia), quer do lado psicológico (substituição das virtudes pelos vícios ou do essencial pelo insignificante), temos dizia, um ror de coisas que medram a uma velocidade estonteante. E de novo? Deixo para vós, MM∴ QQ∴ IIr∴, a procura das respostas, mas estaremos num daqueles períodos do Sistema Histórico em que a decadência coincide e dá lugar à novidade com a diferença que, em vez de séculos, acontecerá brevemente.

24- Certo, é que os mapeamentos das áreas cerebrais feitos na actualidade demonstram, sem equívoco, que determinadas áreas completamente apagadas há meia dezena de anos estão ao rubro e, inversamente, áreas pujantes (memória, linguagem, regulação de emoções, decisões e etc.) estão a minguar. Mais uma vez, aqui onde estamos sentados, onde constatamos, simbolicamente, o Si-mesmo, os Outros e o Universo, onde não temos medo de usar a dualidade para atingir a unicidade, onde aprendemos e cultivamos a virtude, mais uma vez dizia, é aqui que, passo a passo, adquirimos o saber para enfrentar qualquer tipo de mudança.

25- Como diria Daniel Defoe…uma questão sobre a qual os autores diferem bastante é melhor que seja resolvida por si. Sinceramente, contestar coisas universalmente acolhidas é, não só constitutivo do pensamento, como também uma arma, segura e sólida, contra qualquer tipo de totalitarismo e hegemonia.

Para concluir estas minhas reflexões que partilho convosco, proponho-vos que retomemos a velha máxima da simplicidade (que não significa ser mais fácil), ou seja, quando nada se tem tudo se possui.

Diógenes de Sínope M∴M∴

Bibliographia

-Mainguy, Irène – “La Symbolique Maçonnique du Troisième Millénaire”, Dervy Édition-2003

-Béresniak, Daniel – «L’Apprentissage Maçonnique-Une École de L’éveil», Éditions Detard aVs- 2009

-Sigmund Freud – «A Civilização e os Seus Descontentamentos», Publicações Europa-América-2005

-Louann Brizendine – « The Female Brain », Bantam Books-2007

-Michel Onfray – “Cosmos”, J’ai Lu-2015

-Daniel Defoe – «História Política do Diabo», Guerra e Paz Editores SA-2010

-Jürgen Habermas – “Between Naturalism and Religion”, Polity Press-2008

-Abel Salazar – “A Crise da Europa”, Biblioteca Cosmos-1949

-Spinoza, Benedictus – “Ética Demonstrada em Ordem Geométrica”, Tradução Roberto Brandão


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