Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

25 de fevereiro de 2020

A Alegre Sabedoria dos Construtores


Com a devida vénia se transcreve este Artigo ( de Luiz A. Rebouças dos Santos) publicado no Blogue Jakim&Boaz, por sua vez seleccionado do “Informativo CHICO DA BOTICA

A Alegre Sabedoria dos Construtores

Lá pelos anos 70 eu trabalhava numa fundação pública, e começava a entrar na moda o tal de computador, que era um privilégio de algum “alto especialista” que fazia mistério do seu trabalho.
Os computadores da época não realizavam mais do que quatro operações, com muita lentidão e um gasto enorme de fitas ou cartões perfurados. Já começavam a surgir versões de uso pessoal, com programas gravados em fitas K7 e até uma novíssima versão de um CP 200 que usava disquetões. Meu colega comprou um desses e vendeu-me o mais antigo. Assim, eu tinha em casa um computador. Mas precisava mais: uma pequena TV que servia de monitor; um gravador de K7 para ler o programa e, pelo zumbido que fazia, estava ou não baixando o programa para poder ser usado. Uma mão-de-obra!
A alusão à fundação pública é porque, nesses ambientes de planeamento, e principalmente no sector público, os grandes intervalos que ficávamos à disposição da entidade precisavam ser preenchidos e, certamente por discrição, escolhemos jogar xadrez. Para sermos mais discretos, o jogo era feito por correspondência – veja bem, não existiam e-mails! – e, aos lances dados, era-nos possível estudá-los e contrapor, quer no mesmo dia ou no dia seguinte.

O programa que veio junto com meu computador eram jogos de xadrez em três níveis, do mais fácil ao mais sofisticado. Eu estudava em livros de mestres de xadrez  e, primeira experiência com meu computador foi desafiá-lo, com base num jogo já conhecido, dos livros, em que as brancas venceriam facilmente.
Comecei com as brancas, propondo uma abertura de centro e um gambito, para ganhar o centro do tabuleiro. O computador respondia conforme a lógica. Porém, ao aproximar-se do fim, onde eu deveria dar-lhe o xeque-mate, olhei para o tabuleiro e lá estava outro jogo, diferente do que tinha colocado até então!

- Ah! – pensei. Foi engano meu! O computador não ia ganhar, mas eu equivoquei-me nalgum lance. Revi a partida e tive a certeza de que não havia o equívoco. O computador trapaceou.
Refiz a experiência com outro jogo e... lá ele novamente! Trapaceiro! Ladrão! Estava pré-programado para mudar o jogo quando a situação de derrota se concretizava. Os mestres que eu seguia eram superiores, porque cultivavam a arte das combinações até ao que se convencionou chamar de Beleza. Alguns lances mais na partida, o computador entendia que estava em dificuldades e, não podendo jogar vitoriosamente no terreno da inteligência, usou de poderes mágicos, próprios da sua natureza.
Não adiantava o computador oferecer-me revanche nessas condições, mesmo que eu pudesse ganhar, mesmo que a aparência de vitória não satisfizesse meu contendor.

A Alegre Sabedoria dos construtores é simplesmente um saber desinteressado do plano material, orientado simplesmente para um objectivo: a felicidade de saber, de descobrir o novo, de conhecer. O conhecimento escolar, institucional, transmitido pela sociedade, tem por objetivo a dominação do outro, o poder sobre o outro. Ensina as regras do jogo e as possibilidades; enquanto que a Arte Real ensina igualmente as regras do jogo, mas o ensino das possibilidades é substituído pela Arte Real de conhecer antes de tudo, o cenário e o adversário. No jogo de xadrez, isso pode ser tomado como:
1. A arte de ter no tabuleiro mais peças que o adversário;
2. A arte de manipular o adversário;
3. A arte de defender suas peças dos golpes conhecidos. É por isso que a Alegre Sabedoria não é o saber dos notáveis. É por isso que a boa garrafa, nas lojas dos construtores, se degusta no centro do canteiro, onde não se escuta o cantar do galo.
É porque a Alegre Sabedoria, que vem do desejo de conhecer, do desejo de ser um justo, honrado e verdadeiro, corresponde ao bom e ao belo de per si. Com efeito, não se trata de um meio, mas um fim em si mesmo, que marca o amor pela vida.
A Alegre Sabedoria não ensina a verdade, ensina e fomenta o apetite pela verdade. Alguns homens dizem: eis o que unicamente é verdadeiro e justo, e quem pensar de forma diferente está no erro. O Espírito da Geometria rejeita essa concepção e permite dizer tudo é verdadeiro dentro dos limites de um contexto específico. Assim, nosso opositor tem seu papel a desenvolver, mesmo se nós sentirmos vergonha pelo seu desejo de nos humilhar.
O apetite pela verdade, o repúdio à mentira, a desconfiança a respeito das pretensões absolutistas, erigem a Alegre Sabedoria como contra - cultura. Assim, a literatura moralista e religiosa é mentirosa. Os textos legislativos, os códigos, as regras editadas para confortar uma hierarquia, como estatutos, regimentos internos, são mentirosas e repousam na impostura.
No caso das mentiras e imposturas, lembramos as guerras religiosas que escravizam a humanidade.
Então, qual deve ser o comportamento do Construtor, do filósofo, do geómetra? Seria um espectador lúcido e impotente diante dos eventos? Pode ele intervir? Como? Por análises, por declarações, advertências, petições? Seria ele o profeta que troveja em nome do Senhor ou o bufão que zomba que o rei está nu?

Estes comportamentos não são de todo ridículos, mas é muito mais importante realizar em si mesmo um trabalho segundo o esquema: tábua rasa – decida aos infernos - reestruturação do homem novo, e a retomada do gosto por essa abordagem, pelo escrito e pelo exemplo.
Os Construtores comportam-se segundo as exigências que decorrem de uma reflexão sem repetição; se uma exigência do pensamento se pode colocar, por vezes, de uma maneira imprevisível, é porque nasce do comportamento.
Também é preciso observar-se e submeter o seu comportamento à crítica; é preciso definir as contradições e superá-las, assumindo-as e sublimando-as.
Nunca o Construtor deve consentir a repetição regular de seu comportamento, pois isso restringirá seu pensamento. Um pensamento que condicione o comportamento e um comportamento que condicione o pensamento são tentações a refutar.
A escolha dos Construtores é questionar-se sempre, porque todo o pensamento manifesta sua capacidade de recomeço, quando ele se permite livremente surpreender-se por um questionamento. É o sentido do ciclo morte-ressurreição; o sentido vital deste símbolo, fonte de energia positiva.

* Luiz A Rebouças dos Santos, M.·.M.·.

(selecionado do “Informativo CHICO DA BOTICA” - Ano 14 Edição 122 - 30 Jun 2018 )

Referência bibliográfica:

- Béresniak , Daniel  – “Le gai savoir des Bâtisseurs – Essai sur l‟esprit de géométrie”. Éditions. Detrad, 2011 – Paris.

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