Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

30 de outubro de 2018

ESTADO SOCIAL, CARACTERÍSTICA DA HUMANIDADE?


ESTADO SOCIAL, CARACTERÍSTICA DA HUMANIDADE?

O Estado constitucional surgiu nos séculos XVIII e XIX, como Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em conter o poder político tanto internamente, pela sua divisão, quanto, externamente, pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade. “Il faut que le pouvoir arrête le pouvoir”, ensinava MONTESQUIEU.
Quando instaurado, coincidiu com o triunfo da burguesia. Daí o realce da liberdade contratual, a absolutização da propriedade, a recusa, durante muito tempo, do direito de associação (dizendo-se que ela diminuiria a liberdade individual), a restrição do direito de voto aos possuidores de certo montante de bens ou de rendimentos, únicos que, tendo responsabilidades sociais, deveriam assumir responsabilidades políticas. Contudo, a liberdade reclamada pela burguesia, no seu interesse de classe, só pelo facto de ter sido reclamada sob a veste do direito, veio a aproveitar aos trabalhadores e a redundar em prejuízo dos próprios interesses da burguesia sob a forma do direito de associação.
Seria, assim, menos em resultado das críticas doutrinais ao liberalismo, nas suas vertentes filosófica e económica do que, por efeito da progressiva organização dos trabalhadores em sindicatos e em partidos, que, no exercício da liberdade, seriam reivindicados direitos económicos para garantia da dignidade do trabalho, direitos sociais para segurança na necessidade e direitos culturais como exigência do acesso à educação e à cultura e, em último caso, de transformação da condição operária.
Estes direitos apenas lograriam ser consagrados constitucionalmente aquando das convulsões decorrentes ou subsequentes à primeira guerra mundial, em que foram mobilizados milhões de soldados e com a qual ocorreria uma larga mudança de mentalidades.

 De qualquer forma, a industrialização, a urbanização e a erradicação do analfabetismo torná-los-iam inevitáveis. E, como se sabe, os primeiros textos constitucionais que os consagrariam seriam a Constituição mexicana de 1917, a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, da Rússia, de 1918, e a Constituição alemã de 1919 (a Constituição de Weimar). Vem a ser a partir desta altura que começa a falar-se em Estado social como Estado contraposto ao liberalismo económico, embora, em “era de ideologias e de revoluções”, sejam intransponíveis as distâncias entre as concepções e os tipos históricos que conseguem impor-se.
O ponto básico está em que o Estado social incorpora os direitos sociais, mas não apaga, nem subverte as liberdades, mormente as liberdades públicas, e, em geral, todos os direitos e garantias individuais; em que, se afasta o liberalismo económico mas continua fiel ao liberalismo político; e em que se exige para o Estado um papel insubstituível na economia, não excluindo a iniciativa privada. Vindo na continuidade do Estado liberal, o Estado social retira do princípio da soberania nacional, que aquele já proclamara, o corolário lógico do sufrágio universal; e, por seu turno, o sufrágio universal viria a ser um meio privilegiado de conquista de mais e mais direitos sociais. Ao governo representativo burguês vai suceder a democracia representativa.
Em suma: liberdade e direitos sociais, Estado prestador de serviços e interventor nos mecanismos económicos, mercado condicionado e regulado, separação de poderes. Em suma ainda: Estado democrático de direito é o outro nome do Estado social. Para o Estado social, a liberdade possível do presente não pode ser sacrificada em troca de quaisquer metas, por justas que sejam, a alcançar no futuro. Há que criar condições de liberdade – de liberdade de facto, e não só jurídica; mas a sua criação e a sua difusão somente têm sentido em regime de liberdade. Porque a liberdade, tal como a igualdade, é indivisível. A diminuição da liberdade, civil ou política de alguns, para outros acederem a novos direitos, redundaria em redução da liberdade de todos.

O resultado almejado há-de ser uma liberdade igual para todos, construída através da correcção das desigualdades e sujeita às balizas materiais e procedimentais da Constituição; e susceptível, em sistema político pluralista, das modulações que derivem da vontade popular expressa pelo voto. Nos direitos de liberdade parte-se da ideia de que as pessoas, só por o serem, ou por terem certas qualidades ou por estarem em certas situações ou inseridas em certos grupos ou formações sociais, exigem respeito e protecção por parte do Estado e dos demais poderes. Nos direitos sociais, parte-se da verificação da existência de desigualdades e de situações de necessidade – umas derivadas das condições físicas e mentais das próprias pessoas, outras derivadas de condicionalismos económicos, sociais, geográficos, etc. – e da vontade de as vencer para estabelecer uma relação solidária entre todos os membros da mesma comunidade social.
A existência das pessoas é afectada tanto por uns como por outros direitos. Mas em planos diversos: com os direitos, liberdades e garantias, é a sua esfera de autodeterminação que fica assegurada, com os direitos sociais é o desenvolvimento de todas as suas potencialidades que se pretende alcançar; com os primeiros, é a vida imediata que se defende do arbítrio do poder, com os segundos é a esperança numa vida melhor que se afirma; com uns, é a liberdade actual que se garante, com os outros é uma liberdade mais ampla e efectiva que se começa a realizar.
Os direitos, liberdades e garantias são direitos de libertação do poder e, simultaneamente, direitos à protecção do poder contra outros poderes . Os direitos sociais são direitos de libertação da necessidade e, ao mesmo tempo, direitos de promoção. O conteúdo irredutível daqueles é a limitação jurídica do poder, o destes é a organização da solidariedade.
Liberdade e libertação não se separam, pois; entrecruzam-se e completam-se; a unidade da pessoa não pode ser truncada por causa de direitos destinados a servi-la e também a unidade do sistema jurídico impõe a harmonização constante dos direitos da mesma pessoa e de todas as pessoas.
A passagem dos direitos sociais das Constituições para a prática foi ocorrendo, nos últimos cem anos, em ondas sucessivas e, em alguns casos, com refluxos. Na Europa, a sua época de ouro vai desde 1945 até aos anos 80, com abonos familiares, segurança social abrangendo todas as vicissitudes das vidas das pessoas, serviço nacional de saúde geral e gratuito ou tendencialmente gratuito, garantia de acesso de todos aos graus mais elevados graus do ensino, independentemente das condições económicas, políticas de pleno emprego, garantia do mínimo de rendimento, etc. Alude-se, com frequência, a um modelo social europeu. Na realidade, ele toma configurações diversas em virtude de factores variáveis; melhor será considerar um modelo nórdico, um modelo britânico, um modelo francês, um modelo da Europa central, um modelo da Europa meridional.
No tocante a Portugal o Estado social apenas se irá desenvolver por força e na vigência da Constituições democrática de 1976. Os direitos sociais ou o princípio da socialidade manifestam-se também para lá do Estado, na sociedade internacional. Segundo o art. 22º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, toda a pessoa, como membro da sociedade, pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. E princípios mais ou menos densos constam da Carta Social Europeia, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e das convenções internacionais de trabalho.

 Como observa AMARTYA SEN (The Idea of Justice, 2009, trad. A ideia de Justiça, Coimbra, 2010), se a viabilidade fosse uma condição necessária para que as pessoas tivessem qualquer tipo de direitos, então não seriam apenas os direitos económicos e sociais, mas sim todos os direitos – e mesmo os direitos de liberdade – a terem de ser vistos como um contra-senso, pois é inviável que se chegue a garantir a vida e a liberdade de todos contra quaisquer transgressões. Hoje, no início do século XXI e de um novo milénio, o panorama político é, de novo, de grande instabilidade, incerteza e múltiplas contradições. O capitalismo financeiro transnacional tornou-se actor privilegiado no jogo político, económico e social. Apesar de estar ligado à crise desencadeada, em Setembro de 2008, pela falência do banco Lehmann Brothers, tem vindo a adquirir crescente poder e contra os “mercados” pouco êxito têm tido todas as políticas públicas. Verificou-se aquilo que, com propriedade se designa por “economização do mundo”.
À escala de toda a humanidade junta-se a degradação da natureza e do meio ambiente, os movimentos de migração do Sul para o Norte, a multiplicação de conflitos regionais ou locais com ingerências ditas humanitárias, os fundamentalismos religiosos, as tensões étnicas, os obstáculos ao interculturalismo, a erosão de valores éticos, a corrupção endémica, enfim, surtos de terrorismo maciço. Estamos muito longe da sociedade solidária a que apela o art. 1º da Constituição portuguesa. E, mesmo nos países aparentemente mais estabilizados, as pessoas defrontam-se com aquilo que se vem denominando sociedade de risco. Através do sistema jurídico, o Estado havia-se tornado o principal garante da confiança de que necessitava a sociedade moderna. Mas a dimensão, sem precedentes, do risco e do perigo, desgastou a credibilidade dessa confiança. Não se chegou, pois, ao “fim da história” – muito longe disso; apenas se chegou ao fim de certa época ou a um momento de transição, com todas as virtualidades que, apesar de tudo, pode conter. E até um autor como FRANCIS FUKUYAMA (The end of history and the last man, 1992), que fala numa “história direcional e universal rumo à democracia liberal”, reconhece que, ainda que a maioria das carruagens da caravana da história chegue eventualmente ao seu destino, não sabemos se os seus ocupantes, ao olharem em redor, não julgarão inadequadas as novas circunstâncias e “resolverão dar início a uma nova e mais distante viagem”.
Muito em especial, tornou-se na Europa um lugar-comum declarar a existência de uma crise ou ruptura do Estado social ou mesmo em Estado pós-social.  E, por certo, do Reino Unido a Portugal, da França à Suécia ele enfrenta quer dificuldades quer ataques sem paralelo. Os anos de 2010 e 2011 marcaram o auge da crise, agravada pelo endividamento das famílias e pelo endividamento público dos Estados Unidos e de grande parte dos países europeus, juntamente com a recessão e, noutras partes do mundo, com o sobre-aquecimento da economia.

Resta saber até onde os remédios trazidos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Central Europeu – cortes orçamentais, aumento dos impostos, liberalização dos contratos de trabalho, aumento das taxas e tarifas dos serviços públicos – atingem a economia real e se, por isso – por previsível diminuição das receitas tributárias – não vão acarretar o arrastamento da crise por mais e mais tempo conforme vêm alertando PAUL KRUGMAN e outros importantes economistas. No entanto, também resta saber se medidas de linha keynesiana ou na esteira do New Deal de Roosevelt poderiam constituir alternativa satisfatória em anos bem diferentes da dos anos 30 do século passado.
Apesar de tudo, apenas franjas neoliberais radicais defendem, pura e simplesmente, o fim do Estado social. Compreende-se porquê: porque ele se revelou elemento pacificador, integrador e propulsor de crescimento económico e a sua supressão desencadearia instabilidade e conflitualidade; porque ele se encontra radicado na consciência colectiva onde quer que se tenha implantado; e porque, assim, em democracia representativa, não se vislumbra como o eleitorado tal pudesse aceitar. Aquilo a que se assiste, em vários países europeus, entre os quais Portugal, é a uma espécie de estado de necessidade económico-financeira que determina uma larga redução de prestações sociais ou, noutros termos, restrição ou suspensão de certas incumbências do Estado, embora não de direitos sociais em si mesmos.
 Em contrapartida, uma postura de imobilismo ou de cristalização não tanto do adquirido quanto da forma como está adquirido mostrar-se-ia muito negativa e contraproducente. Em face das deficiências internas apontadas justificam-se medidas correctivas e adaptações, desde a desburocratização à coordenação de serviços sociais com as autoridades independentes reguladoras das atividades económicas à luz de um princípio de eficiência; e desde a racionalização dos tipos de prestações ao aproveitamento concertado dos meios públicos e dos meios e potencialidades de grupos existentes na sociedade civil.
Não apenas isto. A reforma e a revitalização do Estado social passam pela democracia participativa, requisito da democracia inclusiva. Passam pela participação dos cidadãos e dos grupos de cidadãos na definição das políticas públicas sectoriais e na gestão e  controlo dos serviços que directamente os afetam.
A este propósito, GOMES CANOTILHO [A governança do terceiro capitalismo e a Constituição social (Considerações preambulares), in Entre Discursos e Cultura Jurídica, obra coletiva, Coimbra, 2006] alvitra uma reinvenção do Estado social, com cooperação e comunicação entre os atores sociais mais importantes e os interesses políticos organizados, levando a um Estado cooperativo. Por outra lado, JOÃO CARLOS LOUREIRO (Adeus ao Estado social?, Coimbra, 2010, págs. 40 e segs.), sublinha que tempos difíceis não significam o fim do Estado social; e que é tarefa de todos, um “plebiscito de todos os dias”, exigindo uma “esperança democrática”.
Quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional português, nela regista-se uma evolução assinalável. O acórdão n.º 39/84 (sobre o Serviço Nacional de Saúde) orientou-se peremptoriamente na linha do princípio da proibição do retrocesso social: “Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas. Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados. “Quer isto dizer que a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) num obrigação positiva, para se transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social”.

Uma última palavra acerca do problema de saber como devem ser encaradas e suportadas as despesas inerentes à satisfação das necessidades coletivas. Sem dúvida, recai sobre o Estado assegurar, por meio de impostos, os cuidados de saúde, o ensino básico e o secundário obrigatórios, o apoio no desemprego, a integração dos deficientes e dos marginalizados, o auxílio material às vítimas de crimes e de calamidades naturais, etc. A essencialidade dos bens ou a universalidade justificam-no. Por outro lado, quanto às restantes necessidades – ou porque não afetam identicamente todos os cidadãos, ou porque não revestem para todos o mesmo significado ou porque dependem de circunstâncias nem sempre previsíveis – pode justificar-se uma partilha dos custos da sua satisfação (até porque se verifica uma partilha de benefícios). O Estado deve pagar uma parte, os próprios outra parte e até onde possam pagar. Os que podem pagar, devem pagar.  Diversamente, os que não podem pagar, não devem pagar (ou devem receber prestações pecuniárias – bolsas, pensões, subsídio de desemprego – para poderem pagar). Mas a fronteira entre necessidades básicas e outras necessidades não é nunca rígida, nem definitiva. Depende dos estágios de desenvolvimento económico, social e cultural e da situação do país. E é também o sufrágio universal que, em cada momento, a define, através das políticas públicas prosseguidas pelos órgãos por ele legitimados. Tudo em qualquer caso, no respeito da dignidade de cada uma e de todas as pessoas.

José Garibaldi, M.'.M.'.

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