Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

9 de julho de 2017

O Mito da Patente Maçónica

Transcrito do Blogue Pierres Vivantes este artigo de opinião de Roger Dachez


Um dos assuntos mais frequentes das querelas e desordens, na maçonaria francesa em particular, é o tema das patentes. Temos visto, muitas vezes, Obediências ou Jurisdições dos altos graus recém-criados - por cisão ou multiplicação - por iniciativa dos membros "regularmente" iniciados nos diversos graus que estas estruturas agora entendem controlar de forma independente, irem à procura, muitas vezes de modo penível e movimentado, da patente, que por si só, de acordo com eles – e ainda de acordo com outros! - poderia legitimar os seus trabalhos.
O assunto não é novo e tem levado a alguns dos episódios mais pitorescos – mas, às vezes, dos mais angustiantes - da história maçónica de França. Uma visão histórica rápida, no entanto, permite que a luz de um novo dia a esclareça. Vou dar, apenas, algumas indicações de que me disporei a desenvolver, de um modo mais marcante, num livro a ser publicado dentro de três ou quatro anos.
O que é uma patente?
De onde vem essa ideia de que um documento, denominado patente "- Warrant em Inglês - é essencial para que os trabalhos maçónicos sejam perfeitamente inquestionáveis, pelo menos na lei, se não de fato?
É necessário refazer a história da noção jurídica de patente porque é de onde tudo vem.
No direito antigo, uma carta patente (Letters patent em Inglês.) era um acto público (do latim patere: estar aberto) pelo qual o rei conferia, aos que dependiam da sua autoridade, um direito, estatuto ou privilégio. Este documento opunha-se- á Letter closed (em Francês lettre de cachet) que não se dirigia senão a um destinatário específico - não necessariamente só para o meter na prisão! Resumindo, a patente é um instrumento jurídico pelo qual uma autoridade civil permite que uma pessoa, grupo de pessoas ou instituição possa exercer uma determinada actividade, com o beneficiário a reconhecer, no entanto, a supremacia de quem a emite - e admitindo, se for o caso, de a poder retirar, não sendo outra coisa, em última análise, senão um processo de submissão política...

A patente na maçonaria
Quando é que a patente apareceu na maçonaria? Novamente, como em muitos outros domínios, foi em Inglaterra que tudo começou.

Quando, a partir de 1721 com a chegada do primeiro Grande Mestre nobre da Grande Loja de Londres, John, 2º Duque de Montagu, as lojas passaram a ser dirigidas por um alto aristocrata, a Grande Loja, ansiosa por afirmar a sua autoridade, baseada nos fundamentos tradicionais bastante enfraquecidos, inventou ao mesmo tempo a noção de "regularidade" - que significava simplesmente "obedecer a uma autoridade seguindo os regulamentos" - e a patente que era a sua manifestação oficial. [1]
As mesmas práticas foram seguidas em França com a Grande Loja, muito mais tarde e com dificuldade, a impor sua autoridade sobre as lojas do reino.
Em qualquer caso, o ponto mais interessante foi que - a questão da patente deu origem ao pagamento de um direito de chancelaria...
Hoje em dia, todas as lojas inglesas estão dotadas de patentes..., excepto aquelas derivadas das quatro lojas reputadas de fundadoras em 1717 (não subsistem senão três), que são denominadas de... Tempos imemoriais! (time immemorial).

A saga das falsas patentes e dos documentos fundadores apócrifos
Poder-se-ia escrever um verdadeiro romance sobre as patentes donde provieram os fundadores das obediências ou dos ritos por estabelecer - muitas vezes contra toda a evidência - que não inventando nada apenas transmitiram ou despertaram uma tradição antiga de onde regularmente receberam o espólio sendo um desses testemunhos, justamente a patente, quer dizer a prova pública que exibiam.
Afinal, o exemplo vinha de cima e de longe: é nesta base que foi estabelecida em 1717 (ou mais precisamente à volta de 1721, mas pretendendo antecipar a 1717) a Grande Loja de Londres! Segundo Anderson, com efeito, ela foi apenas despertada, as suas Constituições - totalmente revistas e dotadas de um plano e, sobretudo, com um novo conteúdo em 1723 - sendo apenas o último elo da longa cadeia dos Antigos Deveres (Old Charges), cujas origens se perdem na noite dos tempos - Georges Payne, considerado o Grão-Mestre em 1720, não se coibiu de apresentar o manuscrito Cooke, que data de 1420 aproximadamente? Será que não valeria como documento de fundação"?
Depois segue-se uma longa lista de documentos que posteriormente - embora todos sejam falsos manifestos por vezes espantosos ou simplesmente documentos não datados - foram a base e a justificação das origens das instituições ou dos ritos hoje venerados – e guardados zelosamente por quem nada pode fazer sem uma patente emitida por eles!
Eis aqui, só para vos dar uma ideia, uma lista não exaustiva:
A patente Gerbier, conhecida a partir de 1721, apareceu em 1785, é uma falsa evidência como já tinha sugerido Thory no início do século XIX, mas o Capítulo do Dr. Gerbier baseado naquela alegada patente, foi também o co-fundador da Grande Capítulo Geral do Grande Oriente da França!
A patente de Martinez de Pasqually, datado de 1738, supostamente atribuída por Charles Stuard e mostrada por ele muito cedo no seu propósito de fazer abrir as portas das lojas para impor o seu rito, que influenciaria o RER, é uma improbabilidade absoluta tanto na sua forma e seu conteúdo.
A patente Morin (1761) existiu, mas os poderes atribuídos ao beneficiário foram revogados cinco anos mais tarde pela autoridade que a tinha emitido - o que não impediu que ele fosse um dos documentos fundadores que viria a ser, depois de aventuras improváveis, o REAA.
As Grandes Constituições, ditas de 1786, absurdamente atribuídas a Frederico da Prússia, texto de referência da autoridade do REAA, é uma falsificação grosseira inspirada num texto da Grande Loja da França em 1763, escandalosamente plagiado. A aventura continua no período contemporâneo.

Assim, nossos amigos ingleses, tão exigentes em matéria de "regularidade" - isto é, em conformidade com as regras que as suas e nenhuma mais - continuaram a criar, pura e simplesmente, novos sistemas de Seis Graus- chamamos Altos Graus em França - no século XX. Para citar apenas alguns a Augusta Ordem da Luz, criada em 1902, a Ordem Maçónica de preceptores peregrinos em 1984, a Ordem Comemorativa de S. Tomás de Acre em 1998 e a Ordem Maçónica de Athelstan em 2005.
Se essas criações são, claramente, elaborações contemporâneos - embora muito interessantes e inteligentemente construídas – e, por consequência, desprovidas de Patentes imemoriais, os autores, no entanto, sentiram a necessidade de pedir, também, um documento fundador mesmo que fosse vago e indirecto, por exemplo, mencionando velhos arquivos onde teriam feito a descoberta providencial! Estas organizações não foram, no entanto, reconhecidas pelo GLUI como autênticas - corpos maçónicos - porque neste país, é ela quem dá às Jurisdições o direito de existir "regularmente" - e, por exemplo, actualmente a Ordem de Athelstan tem cerca de 5.000 membros nas suas Coortes.
A Patente Maçónica em França nos Dias de hoje.
 A patente em França, digamos francamente, tornou-se num instrumento de gestão de influência política e da persuasão exercida por uma Obediência sobre todas as outras.
No entanto, além de todas as considerações históricas mencionadas acima que muito relativizam a noção de patente na maçonaria, alguns casos são, simplesmente, absurdos: por exemplo, quando solicitam - como o fizeram a mim várias vezes nos vários cargos maçónicos que exerço ou exerci – uma Patente de Emulação! Vejam a que ponto tal solicitação é grotesca? Em primeiro lugar, porque, com rigor, apenas a Loja de Emulação de Londres a poderia fazer e, sobretudo, porque ela mesma nunca o faria! Ela atribui apenas um rótulo reconhecendo que tal ou tal Loja particular segue o Ritual definido por ela, mas se alguma Loja pertencente à GLUI, decide trabalhar no Ritual de Emulação mesmo com algumas alterações, ela receberá uma patente para trabalhar nos graus de instrução (The Ctaft Degrees) sob a sua autoridade, mas nunca emitirá a patente de um Rito – embora Emulação não seja, no sentido Francês, exactamente, um rito. Portanto, com que a direito, em França qualquer autoridade maçónica poderia atribuir uma patente de Emulação?
Mas vamos mais longe. Quando René Guilly-Desaguliers e os seus companheiros, em 1968 criaram a LNF, segundo as características do século XVIII, com o Rito Tradicional Francês; Será que ele tinha necessidade de pedir uma patente ao GODF – o qual, provavelmente, não a teria emitido naquela época, especialmente por ser uma forma do Rito Francês que já não se pratica há muito tempo e, em seguida, irem contra os seus princípios e suas práticas mais estabelecidos?
Poderíamos alargar estas observações a todos os ritos: se os Irmãos – e Irmãs, é claro – detentores de um ou mais graus de um rito, constatassem que, por várias razões, não poderiam praticar o rito dentro de uma obediência ou jurisdição, decidindo libertarem-se e para refundar uma nova estrutura, mais consistente, para eles, - com ou sem razão - com as definições originais, dever-se-á proibi-los porque ninguém lhes dará a patente? Assim, admite-se que qualquer detentor de uma patente reconhecida - mas por quem? - cujas origens distantes são muitas vezes questionáveis ou obscuras, pode decidir que agora vai ser ele a ser o detentor das patentes no futuro! Vê-se nitidamente que consequências absurdas que este raciocínio nos leva.
Coloquei de lado, alguns aventureiros maçónicos contemporâneos – no direito comum são chamados escroques - pretendendo vender a bons preços patentes inquestionáveis, mas quando uma Jurisdição estabelecida obriga (para reconhecer uma nova organização maçónica que deseja praticar um Rito que a primeira reivindica assegurar) a nova organização a não poder conceder patentes a outros, isso não tem nada a ver com a regularidade iniciática mas, simplesmente, revela vontade de poder e arrogância política.
Entendo, imediatamente, o argumento que se pode opor a este ponto de vista: Mas assim todos podem fazer o que quer que seja emitindo a quem quer que seja uma patente?
Podemos responder a isso várias coisas:
Em primeiro lugar, começando com um sorriso, quando se tem uma visão um pouco distanciado sobre os costumes e as vicissitudes da maçonaria francesa, poder-se-á perguntar se já não se fez tudo sob a cobertura e longe de inúmeras patentes!
Segundo, e mais a sério, não é o que eu penso, mas sustento que de um ponto de vista tradicional – no sentido quase Guénoniano do termo, uma vez pois não é costume em mim! – se um grupo de irmãos e irmãs são detentores de  determinados graus adquiridos em estruturas geralmente considerados como historicamente fundamentadas, será  legítimo que eles transmitam e comuniquem, com ou sem patente.

E se amanhã eles decidem iniciar um novo rito e criar novos graus - como foi feito, particularmente em França, ao longo do século XVIII e desde sempre até aos dias de hoje em Inglaterra! - podemos reconhecer ou não a sua existência, mas não vamos obrigá-los a possuir uma patente para legitimar sua acção.
Enfim, a liberdade, obviamente, não exclui nem o rigor nem a razão. Não é porque tudo se pode fazer que temos o direito de fazer. É preciso, sempre, usar o discernimento e o bom senso em todas acções: elas são, infelizmente, qualidades muitas vezes esquecidas na maçonaria.
A patente foi introduzida no universo maçónico numa tentativa de controlar as acções de uns e de outros. Possuir uma patente, neste domínio, não oferece senão garantias ténues, mas ela não tem outro objectivo senão esse. Se se considerar, no entanto, como um critério de autenticidade tradicional ou de legitimidade espiritual para a prática de um ou outro de grau maçónico, então, está-se sujeito a errar e ir por um caminho falso.
Todos aqueles que, muitas vezes com génio, criaram, entre 1725 e 1760, acima dos graus de aprendiz e companheiro, o essencial dos graus que compõem o universo maçónico, fizeram-no sem autorização ou patente. O seu trabalho é o património comum e a herança indivisível de todos os maçons de boa vontade, mesmo que alguns julguem útil auto-atribuir a legitimidade exclusiva das patentes.
É isso que garante uma prática mais justa da Maçonaria e não as patentes. É a sinceridade, o espírito da verdade, a humildade, a perseverança no trabalho e o estudo cuidadoso e sério do imenso e emocionante património do ritual simbólico acumulado pelos maçons durante três séculos.
"Através do meu trabalho eu mostrarei a minha fé. "Jacques, 2, 18.
Todo um programa ...

Roger Dachez
 Tradução da responsabilidade da Comissão Editorial do Blogue Salvador Allende
-------------------------------------------------- -------------------------------------------------- ----------------------
[1] Tema desenvolvido por mim na obra “Regularidade e Reconhecimento - História e Posturas, Editions Conform, 2014.

1 comentário:

  1. Felicito a Comissão Editorial do Blog por mais este interessante texto, deste enorme estudioso e investigador maçónico que é R.Dachez. É pleno de significado a expressão "A patente ..., digamos francamente, tornou-se num instrumento de gestão de influência política e da persuasão exercida por uma Obediência sobre todas as outras". Considerações oportunas, hoje e sempre.....

    ResponderEliminar