Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

3 de dezembro de 2013

Maçonaria, ontologia e conhecimento


A ontologia é o ramo da filosofia que estuda a natureza do ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres, procurando determinar as categorias fundamentais e as relações do ser  enquanto ser. Na verdade, a ontologia é um aspecto da metafísica que intenta categorizar o que é essencial e fundamental em determinada entidade, tendo cabido ao filósofo alemão Christian Wolff a definição de ontologia como a ciência do ser enquanto ser. No século XIX, a ontologia foi transformada pelos neoescolásticos na primeira ciência racional que abordava os géneros supremos do ser. 

A corrente filósofica conhecida como idealismo alemão, de Hegel, partiu da ideia de autoconsciência para recuperar a ontologia como "lógica do ser". De acordo com a ontologia, as cinco instâncias do conhecimento normativo configuram cinco padrões lógicos bem definidos: 1_a lógica transcendental, 2_a lógica da diferença, 3_a lógica funcional, 4_a lógica temporal e, 5_a lógica holística ou da totalidade. Refira-se que o amor paternal  vincula-nos aos nossos antecedentes, em última instância, à nossa origem transcendental, o que corresponde à lógica presente na 1a dimensão do conhecimento, em que a lógica transcendental explica a emersão do ser no mundo relativo: a relação pai criador - filho criado. 

O amor conjugal, na sequência, busca o complemento estrutural inescapável e liga-nos ao género perdido na divisão celular, construtora do organismo e que nos deixou incompletos,  correspondendo à lógica da diferença e à simetria estrutural presente na 2a dimensão. 

O amor fraternal, por seu turno, associa-nos aos amigos e companheiros na jornada da vida e corresponde à lógica funcional e à lei de acção e reação que preside à instância da terceira dimensão, dentro da qual são viabilizados matéria e espaço. O amor filial vincula o homem à sua descendência biológica e corresponde, precisamente, à 4a dimensão a cuja lógica presidem a temporalidade e a história.

Finalmente, o amor social corresponde àquele sentimento de amor à humanidade como um todo e que corresponde à instância de totalidade do conhecimento, em que a lei é integrativa e a meta é a reconstrução e a preservação da unidade.
Há, portanto, coincidência de perspectivas entre o conhecimento normativo, aplicado no meio académico, e a doutrina de caráter espiritualista da maçonaria. A coincidência é tão precisa que a estrutura ontológica do ente, capaz de tornar a filosofia definitivamente integrada e útil ao homem, corresponde, fiel e exatamente, à palavra perdida perseguida pela maçonaria, simbolizada pelo “Verbo, aquele que era no princípio”, responsável também pela identificação das lojas maçónicas como sendo Lojas de São João.

Estamos, hoje, tanto na maçonaria como no mundo profano, a enfrentar a exaustão de um modelo social que dá prioridade ao ter relativamente ao ser. A crise financeira internacional representa apenas a fractura exposta mais evidente, mas é possível identificar inúmeros sistemas de preservação da vida comprometidos, crescentes ineficiências e limitados horizontes de sobrevivência. Nessas condições, os esforços no sentido de reforçar os valores da maçonaria e fornecer ao homem um paradigma efectivamente dotado de universalidade, além de uma base segura para o desenvolvimento dos demais ramos do saber, constituem nobres esforços intelectuais, que visam ao bem-estar da humanidade. Como foi visto, a reposição de um paradigma centrado no ser tem como consequência evidente impor correções profundas ao modelo civilizacional vigente.
As diferenças de método e de estratégia implicam, porém, resultados e potencialidades significativamente distintos. A maçonaria, ao trabalhar com símbolos e alegorias, convive melhor do que o mundo profano com o conceito de ser absoluto. Por outro lado, o símbolo, ao indicar a possibilidade de muitas versões sobre ele, cada uma delas válida no seu grau de precisão, habilita melhor o homem a conviver com a diversidade de opiniões e vincula essa diversidade, não a uma avaliação simplista  tipo certo-errado, mas a graus distintos de discernimento dos interlocutores. Pela mesma razão, a maçonaria convive melhor com o caráter intangível de tudo aquilo que se situa para além do actual campo humano de percepção, e admite, com mais naturalidade, o facto de o mundo e a existência comportarem, em proporções diversas, manifestações cuja utilidade não são imediatamente óbvias. O mundo profano, ao contrário, encontra dificuldade até para admitir a pluralidade lógica das suas próprias demonstrações, não porque lhes falte fundamento, mas porque ela insinua realidades situadas para além da matéria, e isso compromete a demarcação científica vigente alicerçada na imanência. Compreende-se a dificuldade, se considerarmos o ajustamento que é exigido das ciências para incluir nos seus objectos de investigação aspectos não materiais. Em contrapartida, as organizações ligadas à investigação científica operam com muito mais rigor lógico e metodológico, ao passo que a Maçonaria, em função das características dos seus símbolos, operam sobre uma racionalidade impregnada de emoções e sentimentos que, por vezes, ofuscam a lógica e lhe conferem certa coloração mística. É nesse sentido que se situa a diferença mais relevante entre as duas abordagens.

A maçonaria, ao compreender que o ser relativo tem origem no ser absoluto, a quem designa de Grande Arquiteto do Universo, faz a distinção entre ser humano e personalidade humana. Entende que a personalidade humana representa a consciência forjada na experiência de vida cumprida no âmbito do tempo e do espaço e que, em consequência, espelha valores e crenças determinadas pelas circunstâncias particulares que circunscrevem essa experiência no tempo e no espaço. Entende, porém, que lá no centro dessa consciência existe um discernimento efectivamente universal, habilitando-o a contemplar as leis do universo.

Uma metáfora bastante usada na maçonaria é a da pedra a ser trabalhada pelo obreiro. Essa metáfora serve para indicar que, quando o obreiro entra na Ordem, é uma pedra bruta irregular, recém-saída da pedreira. O trabalho do aprendiz realiza-se na pedra bruta procurando incessantemente transformá-la em pedra polida de formato retangular que possa ser usada de forma útil na construção do edifício social. Embora essa pedra polida seja o produto natural da Loja Maçónica, não representa o limite evolutivo.

Essa pedra pode, ainda, em certas circunstâncias, sofrer metamorfoses e transformar-se em cristal. Assim, o ápice do percurso maçónico dá-se quando esse ser consegue recordar-se de si e da estrutura ontológica que molda a existência do universo e a personalidade humana, compreendendo o seu papel de exercitar e habilitar a mente para operar de modo competente, permitindo desse modo que o ser assuma o comando da sua consciência.

Entenda-se, portanto, que o mundo profano, em face das suas exigências, tem como alvo e horizonte esclarecer o ser e torná-lo apto a lançar um olhar competente sobre o mundo, enquanto a maçonaria revela-se um pouco mais ambiciosa: quer tornar o ser humano uma realidade concreta, quer realizá-lo na prática, quer viabilizá-lo como uma entidade dotada de razão.

José Garibaldi M:. M:.

Novembro de 2013

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