Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

12 de setembro de 2013

Salvador Allende, 40 anos após a sua morte

FNAC, Centro Comercial Colombo, Lisboa

Quero iniciar esta minha intervenção agradecendo o honroso convite que me foi formulado pela FNAC, em particular ao seu dinâmico responsável de comunicação Pedro Vinagre, para abordar um tema que tem tanto de dramático como de ensinamentos actuais, e sobretudo ter a possibilidade de falar sobre um cidadão e um político que é uma das maiores referências do século XX. Mário Jorge Neves

No momento político que atravessamos, em que voltam a sobressair aspectos preocupantes protagonizados pelas mesmas forças totalitárias que há 40 anos no Chile efectuaram uma chacina de largos milhares de seres humanos, incluindo o seu presidente democraticamente eleito, é fundamental que não se permitam apagamentos da memória colectiva.

O cidadão e o médico. Salvador Allende Gossens nasceu em Valparaíso, no Chile, a 26 de Junho de 1908, no seio de uma família burguesa e com grande envolvimento político.

O seu bisavô paterno, Dr. Vicente Padin, foi o decano da Faculdade de Medicina em 1863/64, o seu avô paterno, Rámon Allende Padin, foi médico-chefe durante a Guerra do Pacífico e o pai, Salvador Allende Castro, foi advogado.

A sua mãe, Laura Gossens, era uma senhora católica de origem belga.

Salvador Allende teve duas irmãs: Laura e Inês. Laura chegou a ser deputada e Inês foi casada com Eduardo Grove, destacado alcaide de Viña del Mar.

O facto do seu pai exercer as funções de notário, motivou que a família tenha vivido em várias cidades e que Salvador Allende tenha frequentado diferentes liceus.

Era um competitivo praticante de desporto com diversificadas facetas que iam desde a natação ao atletismo, à equitação, à luta greco-romana, ao boxe e à vela.

O pai e os tios foram militantes do Partido Radical, o avô paterno foi senador, vice-presidente do Senado e fundou a primeira escola laica no Chile.

Sendo um conhecido maçom, foi ainda Grão-Mestre da Grande Loja do Chile, eleito em 1884.


Em 1926, Allende ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade do Chile, em Santiago.

O ambiente revolucionário que então se vivia no país contribuiu para uma maior envolvência política da sua parte e, assim, foi presidente da Associação de Estudantes de Medicina em 1927 e vice-presidente da Federação dos Estudantes do Chile em 1930.

Durante o curso, Allende foi expulso temporariamente da universidade, preso e julgado por três vezes devido às suas empenhadas actividades políticas estudantis, e isto apesar de ser o representante dos estudantes no Conselho Universitário.

Em 1933, concluiu o seu curso de medicina com a apresentação de uma controversa tese com o título “Higiene Mental e Delinquência”.

Enfrentou enormes dificuldades para conseguir trabalho como médico porque embora tenha obtido uma classificação alta no curso, os poderes instituídos não lhe perdoavam a sua acção cívica e política.

A perseguição chegou a tais extremos que se apresentou a quatro concursos em que era o único concorrente e os lugares ficaram na mesma vagos porque não o aceitaram para exercer a profissão.

Acabou por regressar a Valparaíso para trabalhar como médico no único lugar onde lhe permitiram colocação: assistente de anatomia patológica.

Salvador Allende disse algumas vezes que: “ com estas mãos fiz mais de 1500 autópsias e sei o que quer dizer amar a vida e sei quais são as causas da morte”.

Chegou a afirmar que o seu grande desejo era ter sido pediatra, mas a morte prematura do pai e a necessidade de assegurar a sua subsistência económica e a da sua mãe não lhe deram outra possibilidade senão a de aceitar o lugar na morgue do Hospital Van Buren.

A Actividade Política. Allende participou activamente entre os grupos socialistas e contribuiu entusiasticamente para a unificação do Partido Socialista em Abril de 1933, quando o seu colega de profissão Óscar Schnake Vergara foi eleito secretário-geral.

Allende refere que na sua formação política teve grande influencia um velho sapateiro anarquista que vivia em frente à casa onde morava.

Além de lhe ter ensinado a jogar xadrez, foi-lhe recomendando diversas leituras que ajudaram a clarificar muitas das suas ideias políticas.

De 1939 a 1942 foi ministro da saúde, num governo da Frente Popular em que foi Presidente da república Pedro Aguirre Cerda, tendo construído as bases de um serviço nacional de saúde ao alcance de todos os cidadãos.

Em Janeiro de 1943 foi eleito secretário-geral do Partido Socialista, cumprindo o mandato até ao final do ano seguinte.

De 1945 a 1970 foi Senador da República Chilena.

De 1966 a 1969, foi Presidente do Senado, o que representava a segunda figura do  Estado.

De 1949 a 1952 foi presidente do Colégio Médico do Chile.

Foi candidato a Presidente da República quatro vezes: 1951; 1958; 1964; e 1970.

Em 1958 perdeu as eleições por 30.000 votos e foi apoiado por uma coligação de organizações partidárias designada FRAP (Frente de Acção Popular).

Em 1964, Allende era entre os três candidatos anunciados o que se encontrava em melhor posição, mas isso determinou que os sectores mais à direita tenham retirado o seu candidato e apelado ao voto no candidato da Democracia Cristã, Eduardo Frei.

Em 4 de Setembro de 1970, e apesar das enormes chantagens e ameaças políticas nacionais e internacionais, Salvador Allende conseguiu ganhar as eleições, obtendo 36,6% dos votos contra 34,9% do candidato da direita Jorge Alessandri.

De acordo com a Constituição chilena, os 150 deputados e os 50 senadores, em sessão conjunta, teriam de eleger um dos dois candidatos mais votados, dado que nenhum deles tinha obtido a maioria absoluta dos votos.

Após múltiplas movimentações políticas internas e externas que se sucederam a um ritmo intenso desde o dia 4 de Setembro, realizou-se a sessão no Congresso Nacional, a 24 de Outubro, para votar em urna o futuro presidente.

Os resultados deram 153 votos a Allende, 35 a Alessandri e 7 brancos. Previamente a esta eleição, no ano anterior, tinha sido constituída a Unidade Popular integrada pelo Partido Socialista, Partido Comunista, Partido Radical e três outras organizações políticas de menor expressão eleitoral como era o caso do MAPU (Movimento de Acção Popular Unitária) que representava uma dissidência de alguns
sectores da Democracia Cristã.

Em Março de 1973, meses antes da concretização do golpe, nas eleições para o Parlamento, a Unidade Popular tinha obtido 44% dos votos, numa situação económica muito adversa e reflectindo um claro reforço eleitoral junto dos chilenos.

Allende e a Maçonaria. Salvador Allende, tal como o seu avô, pai e tios, ingressou na Maçonaria. Esta tradição familiar, particularmente do seu avô, pesou, certamente, nesta sua decisão.

Foi o médico dentista Jorge Grove, Venerável Mestre da Loja “Progresso 4”, de Valparaíso, quem no final de 1934 lhe fez a proposta de pertencer à Maçonaria e em 18 de Julho de 1935 Allende subscreveu o documento que expressava essa solicitação.

Foi iniciado nessa loja na tarde de 16 de Novembro de 1935, então com a idade de 27 anos.

Quando lhe perguntaram na cerimónia que memória desejaria deixar de si mesmo, Allende respondeu: “A de haver cumprido a obrigação que me impusera de ser útil à sociedade, impulsionando em cada dia o seu aperfeiçoamento espiritual, moral e material”.

Salvador Allende pertenceu à Loja “Progresso 4” até final de 1940, tendo passado para a Loja “Hiram 65”, de Santiago, em 8 de Novembro desse ano, devido a ter fixado residência nesta cidade quando foi empossado como ministro e após ter casado com Hortênsia Bussi.

Em 1950 e 1951 desempenhou as funções de venerável mestre da loja.

No XVIII Congresso do Partido Socialista, realizado em Valparaíso, em Outubro de 1959, o comité regional de Santiago apresentou uma proposta de resolução para que os estatutos proibissem a dupla condição de socialista e maçom.

O primeiro congressista a contestar e a rebater de forma apaixonada esta proposta foi Salvador Allende.

Em 1965, na sequência dos resultados obtidos nas últimas eleições presidenciais, Allende enviou uma carta ao venerável mestre da sua loja em que de uma maneira respeitosa propunha mudanças no seu funcionamento e fez um apelo a um maior compromisso com os desafios de aquele momento histórico.

Nesta carta também solicitou a sua saída da maçonaria, mas os seus irmãos recusaram-na de forma unânime.

Esta loja “Hiram 65” era constituída por diversos políticos conhecidos nos meios progressistas e já tinha causado alguns problemas com a estrutura dirigente da Grande Loja por pretender admitir mulheres.

Em 1931 também se tinha distinguido na luta contra o regime “semiditatorial” de Carlos Ibáñes.

No dia seguinte ao golpe, a 12 de Setembro de 1973, os membros da Loja “Hiram 65” tiveram a valentia, a coragem e o elevado sentido ético de se mencionarem publicamente para prestar homenagem fúnebre ao Presidente Salvador Allende.

No ano seguinte, em 1974, esta loja teve a enorme honra de ser suspensa de todos os seus direitos maçónicos pelo Grande Conselho da Grande Loja do Chile por solicitação da ditadura militar devido a ter formulado “ posições críticas à actual situação político-governamental e ter procurado que outras lojas adoptassem também posições contrárias frente ao que se passa no país”.

Era a capitulação de uma potência maçónica em total violação de todos os seus princípios humanistas e da defesa da Liberdade.

Salvador Allende sempre se assumiu, em todas as circunstâncias, como maçon e sempre justificou essa sua opção com os valores mais sublimes e de maior profundidade humanista, distinguindo muito bem a natureza não partidária da Maçonaria, mas recusando-lhe a existência de um papel neutro no desenvolvimento civilizacional e no progresso da humanidade.

Numa entrevista ao conhecido escritor francês Régis Debray, que deu posteriormente origem a uma publicação editada em 1971 com o título “Conversación com Allende”, Salvador Allende afirmou, a dada altura, que:

“… Então, tu compreendes perfeitamente bem que por essa tradição familiar e, além disso, porque a maçonaria lutou por princípios fundamentais como a Liberdade, Igualdade e Fraternidade, uma pessoa pode ter essas ligações. Agora, eu defendi dentro da maçonaria que não pode haver igualdade num regime capitalista, nem sequer de oportunidades, por certo; que não pode existir fraternidade quando há exploração de classe e que a autêntica liberdade é concreta e não abstracta. É assim que eu dou aos princípios maçónicos o conteúdo real que devem ter “.

O Governo da Unidade Popular e o golpe. Salvador Allende era um homem culto e um trabalhador empenhado, não dormindo mais de 6 ou 7 horas por noite.

Simultaneamente, era um homem extraordinariamente inteligente, tinha uma notável intuição política, sabia ouvir as opiniões diferentes, tinha uma enorme tolerância na discussão política e adoptava sempre uma atitude frontal e transparente na abordagem dos problemas, mesmo os mais controversos.

Cultivou sempre o livre jogo das ideias e conseguia inserir na discussão política um requintado sentido de humor. Allende foi o grande arquitecto da construção da ampla coligação da Unidade Popular, num trabalho permanente muito difícil de conciliar pontos de vista, às vezes muito heterogéneos, entre parceiros com posicionamentos ideológicos diversos.

Muitos analistas classificaram Allende como um hábil negociador, escamoteando que uma habilidade deste tipo não resiste muito ao tempo que passa quando não assenta numa manifestação intrínseca de carácter e de formação cívica.

A “habilidade” negocial de Allende só dava frutos porque resultava de uma enorme seriedade de procedimentos e de uma frontalidade transparente.

Quando foi formado o governo da unidade Popular, o Chile estava confrontado com múltiplos problemas sociais e económicos.

O programa apresentado pela Unidade Popular, e na base do qual tinha sido eleito, estabelecia um conjunto alargado de medidas prioritárias para formular soluções para os problemas que afectavam os muitos cidadãos chilenos situados na “faixa” dos desfavorecidos.

Apesar das diversas vicissitudes do processo de coligação, ainda foi a nível do seu próprio partido que teve de enfrentar alguns dos maiores problemas que lhe foram colocados pela ala mais radical que se mostrava sempre impaciente porque a revolução não andava com maior rapidez e tinha de estar concluída no dia seguinte.

Às naturais dificuldades diárias para solucionar ou minimizar os graves problemas sociais e económicos, Allende e o governo da Unidade Popular tiveram de enfrentar uma guerra permanente de sabotagem e de campanhas políticas de grandes dimensões para infundir o medo em largos sectores da população chilena.

Os diversos processos de lockout, alguns deles disfarçados de greves de trabalhadores, em sectores nevrálgicos da economia como os transportes e a distribuição, bem como acções de violência urbana, sobretudo em bairros da pequena e média burguesia, e até atentados de destruição de linhas férreas e de um oleoduto foram criando um quadro político e social propício a aventuras golpistas e totalitárias.

A campanha difamatória e de intoxicação ideológica foi permanente, usando sempre chavões como, entre outros: o presidente marxista; o governo marxista; que estava em curso um processo para estabelecer uma ditadura comunista; que o governo e o presidente estavam a soldo da então União Soviética. Salvador Allende sempre se considerou como um politico influenciado pelas ideias marxistas.

Mas a sua compreensão do papel e da essência do marxismo foi bem sublinhada em declarações como esta:
“Mas penso que o marxismo não é uma receita para fazer revoluções; penso que o marxismo é um método para interpretar a história. Creio que os marxistas têm de aplicar os seus conceitos à interpretação da sua doutrina, à realidade e conforme a realidade do seu país”.

Por outro lado, eram bem conhecidas as suas divergências e até profundos distanciamentos em relação à política desenvolvida pela então União Soviética.

Esta situação está bem sublinhada nos seguintes factos concretos:
Em 1931, Allende pertencia à organização estudantil mais forte de cariz socialista, designada “Avance”. Esta organização decidiu elaborar um manifesto onde defendia a criação no Chile de sovietes de operários, camponeses, soldados e estudantes.

Allende insurgiu-se contra esta proposta, considerando-a “uma loucura” e acabou por ser expulso dessa estrutura. Dos cerca de 400 membros presentes na reunião, 395 votaram a favor da sua expulsão.

Passados poucos anos, e com as alterações verificadas na situação politica com forte pendor repressivo, somente Allende e outro membro se mantiveram na luta política e social.

Em 1948, Allende assumiu uma posição de solidarieddade com Tito, da ex- Jugoslávia, contra Estaline.

Em 1956, protestou contra a invasão da Hungria pelas tropas soviéticas.

Em 1968, protestou também contra a invasão da Checoslováquia pelas tropas
soviéticas.

Que Salvador Allende se inseria na vasta corrente de pensamento marxista, tal como acontecia com a generalidade dos militantes do Partido Socialista Chileno, e até com a sua consagração nos respectivos estatutos, não restam nenhumas dúvidas até porque o próprio o assumiu frequentemente.

Mas que Salvador Allende pretendesse implementar um tipo de sociedade análoga à dos países do então bloco socialista do leste europeu, já não corresponde ao mais elementar fundamento.

Num dos discursos publicados no livro “ Salvador Allende: pensamiento y acción” da autoria de Frida Modak, foram efectuadas afirmações que clarificam bem a essência programática e as preocupações mais profundas de Allende.

Importa citar, a título de exemplo, as seguintes:
“Nós lutamos fundamentalmente pela integração dos países latinoamericanos, cremos que é justo o caminho indicado pelos pais da pátria, que sonharam a unidade latinoamericana para poder dispor de uma voz continental frente ao mundo…”.

“… os povos como o nosso lutam pela paz e não pela guerra. Pela cooperação económica e não pela exploração. Pela convivência social e não pela injustiça”.

“Bolívar dizia: os Estados Unidos querem sujeitar-nos à miséria em nome da liberdade”.

“Na realidade a doutrina Monroe consagrou um princípio: América para os americanos. Mas isto não foi efectivamente concretizado porque na América do Norte há um desenvolvimento económico que não há no centro e no sul americano.

O problema não foi resolvido na base da igualdade de interesses, de comunidade de interesses. Defender o princípio América para os americanos através da doutrina Monroe significou dizer sempre América para os norteamericanos”.

“Quero dizer-lhe que tenho confiança no homem, mas no homem humanizado, o homem fraterno, e não o que vive da exploração de outros”.

“É importante que cada um de nós se compenetre da responsabilidade comum.

É tarefa essencial do Governo Popular, ou seja, de cada um de nós, repito, criar um Estado justo, capaz de dar o máximo de oportunidades a todos os que convivemos no nosso território.

Eu sei que esta palavra Estado infunde uma certa apreensão. Abusou-se muito dela e em muitos casos usa-se para desprestigiar um sistema social justo.

Não tenham medo da palavra Estado, porque dentro do Estado, no Governo Popular, estão vocês, estamos todos. Juntos devemos aperfeiçoá-lo, para fazê-lo eficiente, moderno, revolucionário”.

 “Não há dinheiro suficiente em nenhum Estado do mundo para atender a todas as aspirações dos que os compõem se estes não adquirem primeiro a consciência de que junto aos direitos estão os deveres e que o êxito tem mais valor quando surgiu do próprio esforço”.

A questão política fundamental para Salvador Allende era tornar o Chile um país moderno, com políticas sociais avançadas e com uma economia ao serviço dos seus cidadãos e, como tal, que não estivesse dominada por oligarquias representantes locais das multinacionais americanas.

Defendeu a criação de uma sociedade socialista democrática, pluralista e de base parlamentar, mas o seu grande objectivo último era, na minha simples análise, a criação de bases sólidas para o desenvolvimento de uma política de integração dos países latinoamericanos e de uma acção enérgica de autonomização política, cultural e económica em relação aos Estados Unidos.

Naturalmente, que estas perspectivas constituíam um novo mau exemplo na América Latina, a seguir ao caso de Cuba, com o perigo efectivo, aos olhos dos Estados Unidos, de alastrar a outros países do continente.

Por isso, ainda durante a campanha eleitoral em 1970, o governo americano desenvolveu todos os esforços ao seu alcance para impedir a eleição de Salvador Allende.

Quando se concretizou o golpe sangrento chefiado pelo general Pinochet, múltiplas entidades a nível internacional fizeram acusações claras acerca do envolvimento decisivo dos Estados Unidos.

A isto, os dirigentes desse país responderam que se tratava de mera propaganda comunista e que eram alheios aos acontecimentos.

Se já na altura eram escandalosos os factos reveladores desse envolvimento, a recente desclassificação dos arquivos secretos dos Estados Unidos relativos a este período veio confirmar tudo.

Aliás, já no final da década de 1970, William Colby, chefe da CIA entre 1973 e 1976, publicou as suas “Memórias” onde referiu que a CIA se encarregou de organizar uma vasta campanha de propaganda contra a candidatura de Allende e que a operação foi designada “Segunda Via”.

Colby afirmou também nesse seu livro que o então presidente Richard Nixon entrou em cólera quando Allende ganhou as eleições e encarregou Henry Kissinger de implementar o plano golpista.

No desenvolvimento deste plano, desempenhou um papel activo, mesmo decisivo, nas campanhas de boatos e de intriga permanentes junto da opinião pública o jornal “El Mercúrio” que tinha como principais editores Jaime Guzman e Álvaro Puga, membros supranumerários da Opus Dei.

Diversas reuniões preparatórias do golpe realizaram-se nas instalações de um chamado “Instituto de Estudos Gerais” que teve como fundadores Álvaro Puga, Jaime Guzman, Herman Cubillos e Pablo Barahona, todos membros da Opus Dei.

Dos quatro elementos da junta militar fascista, três eram membros da Opus Dei:  Augusto Pinochet, Jaime Estrada Leigh e José Merino.

Após o golpe, Álvaro Puga foi o porta-voz de Pinochet, Herman Cubillos ministro dos negócios estrangeiros, Pablo Barahona ministro da economia e Jaime Guzman foi o redactor da nova constituição.

Pouco tempo depois do golpe, o próprio fundador da Opus Dei, Escrivá de Balaguer, deslocou-se a Santiago do Chile para celebrar uma missa em honra do que chamou “o seu filho espiritual”, Augusto Pinochet.

Em 1994, João Paulo II, a propósito do aniversário de Pinochet enviou-lhe a bênção por vídeo-conferência, chamando-lhe “defensor da fé”.

Inacreditavelmente, quase um mês depois do golpe, Henry Kissinger receberia o Prémio Nobel da Paz, a 16 de Outubro.

O golpe fascista no Chile e as políticas que foram desenvolvidas pela junta militar constituíram um verdadeiro laboratório de experiências das primeiras aplicações práticas do modelo neoliberal concebido na Escola de Chicago.

Ao contrário de toda a propaganda que ainda hoje é difundida, Salvador Allende tinha um projecto político autónomo e patriótico para o seu país, por um lado, e para o continente latino americano, por outro, dentro das melhores e mais profundas tradições históricas de grandes figuras como Simon Bolívar.

A emancipação e a dignidade dos povos latino-americanos estavam nas primeiras linhas do seu combate político.

Salvador Allende foi um político que se distinguiu pela concepções efectivas de tolerância e de humanismo que conseguiu imprimir à sua acção política, levando-o a acreditar em indivíduos como Pinochet que numa semana jurou cumprir a Constituição e ser leal ao governo democraticamente eleito e na outra encabeçou um golpe sangrento.

Allende concretizou uma ampla coligação de forças partidárias, assegurando o respeito pelas diferenças e conseguindo harmonizar políticas que, no essencial, visavam a contínua melhoria das condições de vida da generalidade dos cidadãos do seu país, o que demonstra que quando a preocupação central das forças partidárias à esquerda são os problemas daqueles que mais sofrem, não existem obstáculos irremovíveis na construção de plataformas de convergência e de unidade na acção.

Num momento em que assistimos a novas campanhas de descrédito contra a generalidade dos políticos, afirmando que são todos uns aldrabões e que não merecem qualquer confiança, Salvador Allende é um exemplo marcante de como em todas as actividades os indivíduos não são todos iguais.

Allende demonstrou que a actividade política é uma nobre missão cívica quando se subordina ao bem comum.

É habitual, desde há largo tempo, ouvir dizer que o exercício do Poder corrompe as pessoas, que as modifica e que as torna insensíveis, mas aquilo que se passa, de facto, é que o Poder revela-as!

E Salvador Allende revelou-se no Poder em clara consonância com os princípios que sempre defendeu nas suas declarações, mostrando que se pode fazer política com P grande quando se defendem interesses ao serviço dos cidadãos e do progresso da humanidade.

Numa das suas últimas declarações difundidas pela rádio disse:
“Eu estou aqui, no Palácio do Governo, e aqui ficarei defendendo o governo que represento por vontade do povo”.

E ficou, pagando com a sua própria vida a lealdade e o compromisso de honra que tinha assumido perante o seu povo ao receber os votos que o elegeram.

Recordar Allende, é ter bem presente que a Democracia e a Liberdade não são bens ou conquistas irreversíveis e que os seus inimigos conspiram sempre sob várias capas muito dissimuladas.

Recordar Allende no momento presente é ainda um acto do mais elevado cariz humanista, porque significa acreditar que mais cedo ou mais tarde se abrirão de novo as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor, tal como ele vaticinou nas suas últimas palavras.

FNAC_CC Colombo, 40 anos após a morte de Salvador Allende, 11.9.2013

Mário Jorge Neves

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