Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

8 de março de 2023

A Ecologia, o Urbanismo e as Cidades Sustentáveis _ perspectivas actuais


A Ecologia, o Urbanismo e as Cidades Sustentáveis _ perspectivas actuais

Introdução

No âmbito dos trabalhos a que nós, homens livres e de bons costumes, nos comprometemos para cumprir o caminho que conduz à pedra cúbica, foi-me proposto como temática de uma prancha uma reflexão relativa à actualidade das sinergias ecologia/urbanismo/cidades sustentáveis.

Certamente que as razões para tal proposta tiveram em conta a minha formação base, arquitectura, os subsequentes exercício profissional e experiência como professor universitário/investigador e ainda a vivência resultante de muitas viagens pelos cinco continentes – não é no entanto suficiente para me considerar um especialista naquela temática.

Não é pois objectivo deste breve ensaio construir uma teoria, muito menos uma teoria científica, mas apenas contribuir para o enriquecimento do debate, com a consciência de que uma reflexão sobre qualquer tema é sempre um jogo circunscrito pelo saber pessoal específico acumulado, pela cultura, pelos princípios e pelos fins, no caso presente delimitados pelo contexto atrás referido e que ainda restrinjo um pouco mais – a incidência da reflexão, com enquadramento universal, será sobretudo focada no que se passa em Portugal

A sustentabilidade e as cidades inteligentes (Smart Cities)

A sustentabilidade é um conceito abrangente assente em três pilares, dos quais o primeiro é prioritário, nomeadamente a protecção ambiental, a equidade social e a viabilidade económica, que conjuntamente fornecem uma matriz de soluções para um mundo melhor – “Podemos representar o conceito através de um diagrama de Venn, com cada pilar representado por um círculo, sendo que o que os sistemas devem ambicionar é o centro desses círculos, o ponto onde os três se cruzam e se sobrepõem” (1)

Um sistema que procure e maximize todos esses objectivos simultaneamente é considerado sustentável, mas se um pilar for fraco compromete todos os outros. Citando: “Sem uma origem definida os três pilares da sustentabilidade tornaram-se mais prementes nos anos 1980. Mas foi em 2015, quando todos os estados membros das Nações Unidas adoptaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável que a sustentabilidade passou a fazer parte do léxico dominante” (2)

Essa Agenda estabeleceu 17 metas de desenvolvimento sustentável que visam preservar o meio ambiente, respeitar os direitos humanos e garantir viabilidade económica, facilitando a organização das pessoas, das empresas e/ou dos governos, com vista à organização dos sistemas sustentáveis. São objectivos abrangentes que cobrem áreas muito distintas como a pobreza e a educação, a energia limpa, a conservação dos oceanos ou as cidades e comunidades sustentáveis.

Na actualidade e no âmbito deste último item, Cidades e Comunidades Sustentáveis, a prossecução dos respectivos objectivos remete para um outro conceito, o de Cidade Inteligente (Smart Cities) ou seja, uma urbe onde supostamente as tradicionais redes de comunicações e de serviços se tornam mais eficientes, através de soluções digitais para benefício dos habitantes e dos negócios – implica por exemplo uma mais inteligente rede de transportes, melhor abastecimento de águas, melhor sistema de esgotos, mais eficaz iluminação e aquecimento de edifícios e ainda uma administração da cidade mais interactiva e responsável, mais segurança nos espaços públicos e/ou melhor resposta às necessidades dos idosos.

Mas o tornar as cidades “inteligentes”, apesar de ser uma ideia relativamente recente, é um caminho em progresso e, para além da instalação de interfaces digitais em infra-estruturas tradicionais, inclui também a utilização propositada de dados e da tecnologia no sentido de uma melhor qualidade de vida – estudos há que, considerando as várias dimensões dessa qualidade de vida referem, por efeitos desta metodologia, um acréscimo de 10 a 30% no número de vidas salvas, a diminuição do número de crimes, menos comutações, redução dos encargos com a saúde, menos emissões de carbono…

Tais performances, uso de interfaces digitais nos sistemas de serviços e na gestão, incluindo influência na decisão, são optimizadas através da Inteligência Artificial (IA), ou seja da capacidade de uma máquina para reproduzir competências semelhantes às humanas como é o caso do raciocínio, da aprendizagem, do planeamento e da criatividade – a IA permite que os sistemas técnicos percebam o ambiente que os rodeia, recebendo dados por sensor ou já preparados, que lidem com o que percebem (analisando os dados por comparação com situações anteriores) e que reajam.

Numa interpretação institucional actual, a sustentabilidade urbana é pois optimizada tornando as cidades cada vez mais inteligentes, pressupondo esta acção um recurso também cada vez maior e mais eficaz ao digital, nomeadamente cumprindo três níveis: “Primeiro a base tecnológica, incluindo uma massa crítica de “smartphones”e de sensores ligados por redes de comunicação de alta velocidade; o segundo consiste em aplicações específicas, pois a tradução de dados brutos em alertas, entendimentos e acções requer ferramentas apropriadas, sendo este o campo dos fornecedores e dos fabricantes/investigadores das “apps”; o terceiro nível é o uso pelas cidades, empresas e público – muitas aplicações só têm sucesso caso sejam largamente adoptadas e administradas para alterar comportamentos” (3)

A IA, já presente em muito do nosso quotidiano, é o motor de tais transformações através das quais se optimizam também as intervenções dos vários agentes que concorrem para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, da competitividade das cidades e das indústrias Europeias e para o alcançar das metas energéticas e climáticas. Está pois criado um novo paradigma de desenvolvimento urbano sustentável – as Cidades Inteligentes.

Portugal já aderiu. Já existe a “Estratégia Nacional de Smart Cities – Portugal digital”, documento orientador para acelerar a transformação dos municípios portugueses e, exemplificando um desempenho, Guimarães é um município escolhido para cidade piloto no “Pilot Cities Programme–NetZero Cities” que visa testar localmente formas inovadoras de descarbonização e, por outro lado, lidera um consórcio europeu de Smart Cities milenares, para partilha de experiências baseadas numa cooperação triangular entre comunidade, empresas e universidades.

Reconhecendo as mais-valias e o potencial do novo paradigma Smart Cities, no entanto algumas dificuldades advêm para as autarquias, como por exemplo:

. falta de fiabilidade dos dados e da tecnologia disponíveis

. falta de competência dos técnicos e dependência de terceiros

. dificuldades em regulamentar dados e infra-estruturas interdependentes

. novos desafios éticos relativos ao enviesamento do uso da IA

Esta última questão, os novos desafios éticos, transcende a problemática das Smart Cities e coloca-se como um problema transversal da humanidade.


Um artigo de Daniel Costa publicado em 4/1/2023 intitulava-se “Perguntámos ao ChatGPT se a IA é perigosa para os humanos. A resposta foi brutalmente honesta” – e a resposta foi sim, dada pelo ChatGPT nas suas próprias palavras.

O ChatGPT é um modelo de linguagem pré-treinado desenvolvido pela OpenAI, capaz de gerar respostas a perguntas e comandos de forma quase indistinta da de um ser humano e, na resposta aquela pergunta, ainda especificou as razões:

. “… a IA pode ser utilizada para realizar ataques cibernéticos ou para controlar sistemas críticos como redes eléctricas ou sistemas de transporte, o que pode levar a danos materiais e até à perda de vidas… pode ser perigosa porque pode ser usada para actividades ilegais ou imorais… pode ser usada para manipular ou falsificar informações… pode ser utilizada para ampliar as desigualdades económicas e sociais… pode levar a uma perda de privacidade e a uma diminuição dos direitos civis”(4)

É pois elucidativa a “opinião” da própria máquina que, no essencial, põe água na fervura relativamente ao deslumbramento tecnológico, estando implicitamente alinhada com aqueles que, como eu, consideram necessário um controle metafísico mas de consequências concretas relativamente a tais novidades.

Citando José Pacheco Pereira, “… o deslumbramento pelas novidades tecnológicas (não é novo, entrámos no século XX assim e depois de 1914 percebemos que não era bem assim) tem efeitos perversos em áreas como a educação e o ensino, a sociabilidade, o saber, a política democrática e essencialmente a nossa liberdade. Tudo isto tem uma razão simples – nunca nenhuma tecnologia mudou o mundo per se, nem a máquina a vapor, nem a electricidade, nem a computação, tudo coisas conhecidas muito antes de serem usadas. A chave é o seu uso social, através do modo como a sociedade as usa e isso depende de movimentos sociais, económicos e políticos profundos, que tanto podem dar melhorias significativas à condição de vida humana, como gerar monstros… O que torna estas tecnologias perigosas numa democracia não são apenas os interesses económicos das grandes empresas do sector, ou a ganância de poder dos governantes, mas é a combinação entre a preguiça, o facilitismo, o desprezo pela privacidade como valor, a falsa noção de empoderamento por se ter uma voz numa rede social, as concessões ao poder político, a arrogância e a indiferença pelo valor da liberdade e da individualidade…”(5)

Por uma verdadeira sustentabilidade inteligente

Então, se reconheço as mais-valias e o potencial do novo paradigma Smart Cities mas simultaneamente constato os perigos efectivos do deslumbramento tecnológico, que atributos pode esta reflexão pessoal trazer para o argumentário relativo a esta temática?

Relembro não ser meu objectivo teorizar, mas apenas contribuir para o debate com base na minha experiência, constituindo, portanto, a arquitectura um factor importante a ter em conta, na sua materialidade e na sua metafísica.

A defesa do digital, embora extremamente tecnocrata, para além de outra facetas afasta-nos por vezes da realidade físico-material ou pelo menos coloca-a em planos muito secundários. Convirá no entanto ter sempre presente as regras imutáveis que percorrem os tempos, dando força ao passado com que se constrói o futuro, como por exemplo a Gravitação, que dá sentido à vertical e rege o movimento e equilíbrio da matéria, mesmo enquanto a tecnologia tenta ultrapassar os seus condicionalismos.

Enquanto arquitecto, professor e investigador, dei e continuo a dar, com renovada convicção, um papel de relevo à Geometria, tanto como essência do desenho consubstanciando uma epistemologia arquitectónica ou “arquitecturologia”, no dizer de Phillipe Boudon, como enquanto estrutura da forma e do espaço tendo em consideração os condicionalismos técnico/materiais, ou seja a estereotomia e a estereomorfologia, os condicionalismos funcionais, que requerem geometrias específicas e ainda os aspectos metafísicos, sejam eles de índole estética, religiosa ou energética (fluxos).

A Geometria foi e é essencial ao desenvolvimento urbano, e a par das suas regras perenes, evolui nas suas aplicações, dando a quem a saiba utilizar uma capacidade acrescida e essencial, com efeitos mais profundos que as tecnologias da moda.

A sua utilização por si só, enquanto Geração espacio-formal, institui-se como paradigma. Segundo Inês Moisset, a um já tradicional debate entre o racional e o orgânico, ou seja, entre o paradigma da ordem em que a tónica recai sobre os traçados, em que a Geometria se concebe como geradora de formas e o paradigma dos processos, intuitivo, em que a arquitectura é concebida como um organismo que cresce segundo as suas próprias regras, numa unidade completa do processo total de gestação, procurando comunicar mais por meios emocionais que intelectuais, instituindo-se assim como um certo modelo de desordem sem previsão do resultado final - ao debate entre estes dois paradigmas dizia, segue-se, sem anular os predecessores, o aparecimento de um terceiro paradigma, o da complexidade, contemplando uma dialéctica entre caos aparente e rigor subjacente – o paradigma da complexidade vincula princípios e noções antagónicas que deveriam repelir-se mas que são indissociáveis e indispensáveis para compreender uma mesma realidade superando as noções de hierarquia; complexidade significa multi-dimensionalidade ou seja, respeitar as diversas dimensões da realidade

Subjacente a essa complexidade está uma nova ordem geométrica, cunhada por Benoit Mandelbrot como geometria fractal – a dimensão fractal mede o grau de irregularidade e interrupção.

Metaforicamente, aplicado ao desenvolvimento das cidades, poder-se-á dizer que é um processo que controla esse desenvolvimento como se controla o desenvolvimento de uma árvore – a poda determina e optimiza o crescimento, mas não consegue o controle absoluto da forma.

E considerando novamente o caso português, poder-se-á também dizer que é uma forma de Geração em consonância com outro paradigma de desenvolvimento urbano, expresso em legislação relativamente recente e intitulada ”Reabilitar como Regra” – a predominância do desenvolvimento urbano, sem prejuízo de novas construções, passa para a reabilitação das pré-existências, relativamente ao que o paradigma da complexidade é adequado como pensamento anterior a qualquer tecnologia.

Julgo que aqueles que subscrevem este tipo de ideia devem exercer o seu Génio, influenciando a comunidade em prol de um desenvolvimento urbano com “alma”, na senda da poderosa afirmação de Nelson Mandela – “A educação é a ferramenta mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo”

Efectivamente, aquela “alma”não resulta, nem só nem fundamentalmente, de estereótipos da tecnologia digital, mas antes de vontades esclarecidas e com princípios correctos, o que é espelhado numa das definições de arquitectura que mais me apraz – “A arquitectura é a construção de um sonho num sítio” – ou nas palavras de Carlos Moedas quando diz ”Uma cidade é olhar para os sonhos a longo prazo e realizá-los”.

Se conseguirmos libertar-nos, sem os repudiar, dos ditames tecnológicos da moda e, sem esquecer a História, se usarmos no desenvolvimento urbano o principal factor de progresso, a vontade de aprender cada vez mais, alcançando a Gnose, então estaremos mais perto da Sustentabilidade.

Sintetizando, uma cidade verdadeiramente inteligente deve incorporar na sua matriz a letra G.

Amadeu M:.M:.

A Or:. de Lisboa, R.'.L.'. Salvador Allende


Referências bibliográficas

Costa, Daniel – “Perguntámos ao ChatGPT se a IA é perigosa para os humanos. A resposta foi brutalmente honesta”, in https://zap.aeiou.pt , 4/1/2023                                                           (4)

Ferreira, António – Ritual do Grau de Companheiro, Lisboa, 1914

McKinsey Global Institute –“What makes a city smart?”, in https://mckinsey.com                   (3)

McKinsey Global Institute –“Smart Cities: digital solutions for a more livable future”, in https://mckinsey.com

Moisset, Inés – Fractales y formas arquitectónicas, I+P division editorial, Córdoba / Argentina, 2003

Parlamento Europeu – « O que é a Inteligência Artificial e como funciona?”, in https://www.europarl.europa.eu , 4/9/2020

Pereira, José Pacheco – “A cultura do papel e a democracia – os efeitos sociais do deslumbramento tecnológico”, in Público (Ano XXXIII, nº11913), 10/12/2022                            (5)

The Navigator Company – “O que é a sustentabilidade?”, in https://myplanet.pt ...........(1) e (2)



 

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