Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

21 de fevereiro de 2023

Um Simbolismo Medieval da Pedra


Com a devida vénia, e respectiva autorização, se transcreve, do Blogue Jakim&Boaz, esta reflexão de Roger Dachez:

Um Simbolismo Medieval da Pedra

Sendo este um tema práticamente recorrente nas análises ou publicações maçónicas, tivemos algumas dúvidas em publicar esta «nova interpretação» do conhecido investidador e maçonólogo francês Roger Dachez.  Pesem embora  quase dez anos após a sua existência, cremos que esta  pesquisa apresenta enorme interesse, pela forma como aborda o tema, da qual o nosso primeiro e estimado Mestre Oswald Wirth, autor e investigador de tantos temas relativos à maçonaria e ao Simbolismo,  e cuja trilogia («La Franc-Maçonnerie Rendue Intelligible à ses Adeptes - I- L'Apprenti, II - Le Compagnon e III- Le Maître) foi a base (e de certo modo, mais actualizado, ainda é) de suporte à formação de tantos milhares de Maçons, desde o último quartil do Séc.XIX, até final do Séc. XX, A partir daqui em boa hora foram completamente actualizados e aperfeiçoados por Irène Mainguy, segundo os novos conhecimentos, perspectivas e teorias entretanto surgidos,  que mantendo o título original,  deu-lhes  uma expressão (mais concretamnte «seguimento», segundo o título original) mais conducente com o Século de avanço com que foram surgindo, face à versão inicial de Wirth («L'Apprenti»).

É pois em homenagem aquele que foi o meu primeiro mestre (aconselhado para leitura atenta de um Iniciado) que tomamos a liberdade de  publicar esta interessante análise de Roger Dachez, que embora aponte novas perspectivas  bastante inovadoras  e motivadoras, mas eventualmente questionáveis,  para a continuação de novas pesquisas, até aqui não geralmente divulgadas pela generalidade dos meios maçónicos (que tenhamos conhecimento), não anula de molde algum o trabalho pioneiro de Oswald Wirth, por quem  devemos manter a gratidão, por uma vida dedicada à causa da Maçonaria e em particlar à Simbologia (e outras), e cujas múltiplas obras ainda hoje são consideradas padrões de divulgação maçónica, embora com a relatividade respeitante à já provecta idade (cerca de 150 anos, face à versão inicial do «Aprendiz»). 

O simbolismo da pedra, a utilização alegórica das diferentes formas que este material pode revestir, o paralelismo do processo iniciático e a transformação de uma pedra bruta em pedra lapidada, são lugares-comuns do pensamento maçónico. É ainda este tema,  que foi explorado pelo querido e velho Oswald Wirth, que tanto fez para construir uma verdadeira mitologia maçónica moderna, apoiando-se, como muitos de seus colegas "simbolistas" e seus sucessores, sobre uma indiscutível sinceridade e uma sólida incompreensão da história e das fontes da própria tradição maçónica...

A pesquisa maçonológica e o aprofundamento da historiografia maçónica, no decurso das últimas décadas, levaram no entanto à morte essa simples ideia de que o "simbolismo maçónico" foi uma criação da Maçonaria: na sua quase totalidade, ele pre-existia antes do surgimento dos primeiros maçons e das primeiras lojas . E suportava-se num passado muito mais antigo que a Maçonaria e é nesta tradição, não simplesmente oral, mas amplamente escrita – para nossa maior felicidade – que esta última se arrastou fortemente para dar corpo aos seus rituais e mobilar as suas lojas. Podem ser dados rapidamente numerosos exemplos.

Assim, existiu, entre finais do século XV e finais do século XVII, toda uma literatura, muito difundida e muito popular: a «literatura dos emblemáticos», ou «literatura emblemática». Eram volumes que continham numerosas vinhetas, figuras e ilustrações, aliás de qualidade muito variável, representando cenas enigmáticas, "naturezas-mortas", objectos, signos, todas as imagens às quais se conferia um significado simbólico, dizia-se então «emblemático». 

As imagens em questão eram geralmente acompanhadas de um comentário ou de um “lema”, uma espécie de frase à moda antiga – ela própria por vezes um pouco enigmática – que sugeria ou explicava mais ou menos claramente o seu significado. O jogo consistia em folhear esses livros de emblemas e divertir-se, sozinho ou com próximos ou amigos, discutindo sobre esses enigmas e comentando a beleza ou a estranheza das figuras. Jogo de sociedade de qualquer modo, mas às vezes talvez um jogo mais sério do que parecia.

Assim quase sempre, no virar das páginas destas curiosas colecções, encontra-se frequentemente a representação de um quadrado, colocado sobre uma pedra com o lema "Dirigit obliqua" ("ela endireita os oblíquos"), ou ainda um compasso  seguro por uma mão celeste  emergindo das nuvens. Triângulos e cruzes encontram-se em abundância, assim como fios de prumo ou sinais alquímicos. Insistimos novamente neste ponto: tudo isto ocorre num contexto muito anterior (um século ou dois) ao aparecimento das primeiras manifestações da Maçonaria especulativa. 

É de facto sobre este repertório emblemático que os primeiros painéis maçónicos irão ser desenhados sem restrições. É necessário rendermo-nos  a esta primeira evidência: os "símbolos maçónicos" eram do domínio público muito antes de penetrar nas lojas...

Um outro aspecto deve ser sublinhado: a distinção entre a Maçonaria operativa e a Maçonaria dita especulativa, se corresponde bem a uma realidade histórica, não deve ser sobre-interpretada. Em particular, devemo-nos recordar  que ao longo de toda a época medieval e mesmo durante o Renascimento, a ideia mais difundida era que no mundo material, como na natureza em geral, tudo faz sentido e que há uma leitura subtil do mundo que percebe nele uma mensagem permanente vinda de uma outra ordem de realidade. 

Nas sociedades europeias tradicionais, nomeadamente as do campo e dos ofícios, os traços desse pensamento persistiram por muito tempo. Não há, portanto, nada que confirme que os maçons profissionais nunca tenham “moralizado”, para retomar um termo anglo-saxão, sobre as ferramentas de sua arte. De resto  possuimos talvez uma prova contundente disso com o esquadro da ponte de Limerick, na Irlanda.


No século XIX, durante as obras tornadas necessárias pelo estado de deterioração desta ponte, foi descoberto durante a sua demolição, um quadrado de metal dentro de uma das estacas da estrutura, no qual estavam escritas as seguintes palavras: "Vou-me esforçar para viver com amor e cuidado, segundo o nível e pelo esquadro" (« I will strive to live with love and care, upon the level, by the square»).  Fórmula notável de que podemos fazer um testemunho antigo do simbolismo maçónico, num contexto que claramente não é "especulativo". A data deste objecto é ainda mais interessante: 1507! É, portanto, no início do século XVI, muito antes dos  Estatutos de Schaw na Escócia (1598-1599), antes das primeiras versões "proto-especulativas" dos «Antigos Deveres» («Old Charges» inglesas), do último quartel do século XVI, em que este documento aparece.

O Esquadro  de Baal Bridge, Limerick, Irlande

Podemos voltar ainda mais longe? Sem dúvida, mas para isso é preciso abordar um terreno pouco explorado pelos historiadores da Maçonaria: o da teologia medieval!

Não é inteiramente correcto dizer que na Idade Média, período da omnipotência da Igreja Católica na Europa, os fiéis eram mantidos na mais completa ignorância dos relatos bíblicos ou evangélicos. É certo que será necessário esperar pela Reforma para ver o surgimento de muitas traduções em línguas “vernaculares” e, sobretudo, para ver impor-se, pouco a pouco, o princípio do livre acesso, no sentido próprio do  significado do texto sagrado, gradualmente afirmando-se  – em virtude do “livre exame”. No entanto, os homens da Idade Média, em grande parte analfabetos, não foram afastados da Bíblia: em vez de fazê-la ler, ela foi-lhes mostrada...

Duas grandes fontes de conhecimento bíblico foram colocadas à disposição de  todos – ou ao maior número – entre os séculos XI e XV em particular. A primeira é consttuida pelas inúmeras cenas esculpidas com as quais foram adornadas as fachadas das igrejas e catedrais. Longe de ceder ao capricho exclusivo dos "imaginadores", mais ou menos creditados com uma espécie de heresia silenciosa por autores imaginativos mas pouco informados, as esculturas em questão, na verdade responderam a um programa muito padronizado, fixado de acordo com regras precisas e especificadas pelos patrocinadores, isto é, por clérigos, monges ou príncipes da Igreja.

Muitos dos personagens dessas imagens de pedra  parecem-nos hoje enigmáticos  e suas ocupações bastante obscuras. Não era este o caso sete ou oito séculos atrás. As suas representações são perfeitamente codificadas e permitem uma fácil identificação por todos: o judeu usa um chapéu ponteagudo, um velho barbudo com uma espada não é outro senão São Paulo, São João carrega um livro, e São Tomás (assim como alguns outros ) um esquadro! Esses objectos associados aos personagens eram a sua "lenda", a sua etiqueta. Os fiéis eram assim convidados a mergulhar, durante cada uma das suas passagens junto a um edifício religioso, no mundo encantado da Bíblia: era, portanto, para eles um mundo de pedra povoado de símbolos - mas estes não tinham nada de especificamente maçónico, óbvio que se diga.

O público a que se destinavam essas obras era misto, por assim dizer. Por um lado, esses livros manuscritos incluíam texto, seja o texto da Bíblia, ou – mais frequentemente – passagens notáveis do livro sagrado, ou mesmo uma mistura de citações bíblicas e comentários mais ou menos elaborados. Destinavam-se, portanto, a pessoas que sabiam ler, uma minoria de eruditos no primeiro escalão dos quais  sacerdotes e todos aqueles que tinham uma missão de ensino entre o povo cristão. Mas a segunda componente essencial desses livros eram as suas ilustrações.

Estes reproduziam as cenas evocadas no texto, mas voluntariamente afastavam-se delas para representar o sentido moral em particular. Assim se constituiu todo um repertório de desenhos alegóricos, para não dizer cenas simbólicas: pensemos, por exemplo, na imagem de Deus traçando os limites do mundo com um compasso. Podemos supor que essas ilustrações possibilitaram sustentar o discurso de um clérigo que, ao mostrá-las ao povo, tornou a sua mensagem mais marcante. Ou algumas dessas cenas lidando com a Pedra.  Outra fonte de cultura bíblica foi encontrada nas obras especialmente  relativas à moral dos cristãos: os saltérios (livro com salmos do Velho Testamento; do latim: «psalterium»; do grego: «psaltérion») ilustrados, as Bíblias "moralizadas" e e outras obras mais eruditas, como o famoso « Speculum Humanae Salvatio» (Espelho da salvação humana),  mais «Espelho da Salvação Espiritual e Salvação Moral», que remonta a ao seculo XIV.

Para não citar apenas um exemplo, mas é muito notável, encontram-se nestas obras numerosas representações da "pedra de ângulo", ou "pedra angular", evocada no Salmo 118, retomada pelos Evangelhos e Epístolas que a aproximam do próprio Cristo : "a pedra que os construtores rejeitaram e que se tornou a pedra angular". Nesta ocasião, vemos como a ambiguidade do texto bíblico levou, pela necessidade de uma representação gráfica, ao surgimento de um significado novo que talvez tenha prolongamento directo na própria Maçonaria especulativa.

Se examinarmos atentamente as menções vetéreo-testamentárias (Antigo Testamento) desta pedra angular, percebemos facilmente que se trata de uma pedra em posição baixa, uma pedra que liga o canto de duas paredes para garantir sua coesão. É nesse sentido que o texto também a evoca como um fundamento. A repetição neo-testamentária (Novo Testamento) vai na mesmo sentido: O Cristo é a pedra angular sobre a qual podemos construir um novo Templo, desta vez feito de “pedras vivas”. É num sentido próximo que Pedro – o Apóstolo – será nomeado por Jesus para ser a base da nova Igreja. No entanto, as representações encontradas nas obras acima mencionadas alteram “gráficamente” o significado e o papel desta pedra.

                                                      Speculum humanae salvationis

Encontramos assim várias representações, tão estereotipadas que parecem ter sido objecto de uma tradição bem estabelecida e bastante difundida, onde dois trabalhadores, no topo de um edifício - o Templo de Salomão, fantasiaram, porque dotado de um plano comparável ao de uma igreja cristã – coloca no seu cume uma pedra que, de pedra angular "básica", torna-se de facto a pedra angular da abóboda em elevação. É fácil medir o que essa simples alteração gráfica induz em termos de significado profundo.

No entanto, no decorrer do século XVIII, em solo britânico, os símbolos maçónicos seriam enriquecidos com uma pedra angular encontrada na chamada "Maçonaria da Marca" (Mark Masonry) e no grau Supremo do Arco Real. Esta pedra, em ambos os casos – aliás, é a mesma – é uma pedra angular, no topo de um arco cuja finalização e cuja durabilidade garante. Na Maçonaria da Marca, o candidato terá que encontrar esta pedra “rejeitada” e no grau do Arco Real, protegerá o local onde se encontrará o verdadeiro nome de Deus. Nenhuma tradição “operativa” teria legado tal  contrasenso (má interpretação) – pelo menos tal confusão – entre uma pedra angular e uma pedra chave de abóboda. Vemos apenas que o modelo aqui invocado é o das glosas encontradas, na Idade Média, nas Bíblias moralizadas e nos saltérios ilustrados. Sobre este assunto, não esqueçamos que, como mostram as versões mais antigas dos «Old Charges», e em particular o poema Regius, de c. 1390, é precisamente aos clérigos que devemos a redação desses textos que então regiam o trabalho e os usos dos pedreiros profissionais...

Outros exemplos podem no entanto ser encontrados, pois muitas formas de pedra que existiam no repertório inicial da Maçonaria, e várias foram posteriormente esquecidas [1] . No entanto, para algumas dentre delas,  existiam também comentários da mesma natureza e da mesma origem. Este é todo um campo para redescobrir e explorar para uma exegese maçónica que não se alimenta mais  apenas de simbolismos rudimentares, referências abusivas à alquimia fantasiosa – para não falar em delírios pseudo-cabalistas!

A pedra do ângulo da Marca, a chave da abóboda do Arco Real, extraindo as suas fontes da teologia medieval da pedra e da interpretação gráfica da Bíblia por monges e sacerdotes da Idade Média? A tese ainda precisa ser fortalecida, mas a evidência documental é forte.

Ninguém sabe até onde o simbolismo maçónico pode conduzir – mas certamente leva a tudo, na condição de sair dele...

Roger Dachez

(22.Nov.2013 e:..v:.)

(selecionado e  traduzido do Blog «Pierres Vivants» de Roger Dachez,   por «Jakim & Boaz»)

[1] - Cf. nomeadamente R. Désaguliers, “Les pierres de la franc-maçonnerie”, Paris, 1995.




 

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