Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

1 de agosto de 2022

Mar, sempre o Mar

Com a devida vénia se transcreve este Artigo, escrito por António Valdemar, na Revista  Tempo Livre (Viajar com Livros)

Mar, sempre o Mar 

Poetas, escritores e dramaturgos portugueses aprofundaram todas as motivações da vida 

no mar. Encontram-se na poesia dos Cancioneiros medievais, na obra épica e lírica 

de Camões, nos sonetos de Antero, na Ode Marítima de Pessoa, nos roteiros do litoral 

e das ilhas dos Açores de Raul Brandão. 

O mar permanece desde sempre vinculado a Portugal. É um dos elementos que definiram parte significativa do território, estabeleceram uma das fronteiras com a Galiza, consolidaram a administração pública e privada, determinaram relações comerciais com o exterior e, alguns séculos depois, contribuíram para a expansão de Portugal através do Mundo. A presença do mar refletiu-se logo nos primórdios da literatura portuguesa. Encontra-se nos Cancioneiros que recolheram a poesia medieval e um dos exemplos mais relevantes é Martin Codax ao confessar a sua insatisfação afetiva marcada por interrogações sucessivas: «Ondas do mar de Vigo, / se vistes meu amigo? (…) Ondas do mar levado, / se vistes meu amado? E ai Deus, se verrá cedo?»

Camões é, quase sempre, nestas circunstâncias, citação obrigatória. Localizou n’Os Lusíadas os contornos de Portugal, seguindo a disposição do cartógrafo Álvaro Seco, no primeiro mapa impresso (1561) que representou a nossa extensão geográfica e que se mantém até hoje: «eis aqui, quase cume da cabeça / da Europa toda, o Reino Lusitano, / onde a terra se acaba e o mar começa.» É com orgulho que Camões se identifica: «Esta é a ditosa Pátria minha amada». Também relata com orgulho a memória das origens de Portugal e dos portugueses: «mandas-me, ó Rei, que conte declarando / de minha gente a grã genealogia; / não me mandas contar estranha história, / mas mandas-me louvar dos meus a glória». Através d’Os Lusíadas menciona as qualidades e não oculta os defeitos do povo português. Sentimentos nobres como a generosidade, a coragem e a honra. Defeitos lamentáveis como a corrupção, o suborno e a inveja. Incentiva D. Sebastião a defender Portugal entre os povos europeus: «fazei, Senhor, que nunca os admirados / alemães, galos, ítalos e ingleses, / possam dizer que são pera mandados, / mais que para mandar, os Portugueses». O génio de Camões descreveu com a garra e a energia de um grande repórter a fúria das tempestades ou a serenidade do mar no acordar das manhãs; a luz envolvente das tardes repousadas e a agonia do sol a extinguir-se e a transformar-se na escuridão cerrada da noite. Retratou n’Os Lusíadas o dia a dia de bordo, as horas de confusão e de angústia e as horas de fascínio vividas em todos os oceanos e continentes. Um dos seus biógrafos e críticos, Aquilino Ribeiro destaca «a agudeza de retina insuperável» de Camões quando procede à «anotação do real». Isto só foi possível – observou – por ter sido «soldado raso, sujeito a todos os trabalhos da mareação, calejando os dedos a puxar as adriças, tressuando a dar à bomba, e ouvindo, com torva, mas obediente cara, as ordens, descomposturas e impropérios» dos mestres das naus em que viajou. Daí a obra de Camões ser um testemunho «da sua vida incerta, precária, cheia de baldões e rica de polpa, tanto para o bem como para o mal». Por tudo isto, tanto a sua poesia épica, como a sua poesia lírica e elegíaca (sonetos, éclogas, canções) – conclui Aquilino – «deita sangue, o rubro e generoso sangue dos corpos animados».

O mesmo não entendeu Eduardo Lourenço. Ao ocupar-se da importância que o mar exerceu na vida e na obra de Antero, é da opinião que, enquanto «o mar em Camões é um elemento exterior, uma estrada para chegar a um porto já sabido», o mar tem outra ressonância em Antero. Na literatura portuguesa – salienta ainda – o mar «só irrompeu em Antero» com a força da sua evidência oceânica e da sua profundidade cósmica. O mar que acompanha Antero e que envolve a ilha de São Miguel – insiste Eduardo Lourenço – «identifica-se com a sua luta espiritual, fluxo e refluxo eterno, entre ser ou não ser como a vida».

Outro caso singular, Fernando Pessoa. conheceu o mar, na viagem de Lisboa para a África do Sul, na permanência nos Açores, na ilha Terceira, de onde a mãe era natural, e, no fim da vida, ao frequentar a casa da irmã Madalena e do cunhado Francisco Caetano Dias, em São João do Estoril. Ali se instalava, muitas vezes, aos fins de semana. A ligação a Cascais e ao Estoril ficou registada nas Cartas para Ofélia e no Livro do Desassossego. A Boca do Inferno constituiu o cenário para Fernando Pessoa colaborar com o mago Aleister Crowley, quando veio a Portugal e ali fabricou um suicídio, para se libertar da não menos excêntrica e impetuosa «mulher escarlate» Hanni Larissa Jaeger, sua cúmplice nas práticas ocultistas. Independentemente deste episódio, Cascais permitia a Fernando Pessoa sentir a luz, o sol, as árvores, o silêncio. Sentir e respirar o mar, na praia do Guincho ou, então, no Cabo da Roca, o limite mais ocidental da Europa. 

Álvaro de Campos poderia ter escolhido aquele espaço para construir a sequência torrencial da Ode Marítima. Coloca--nos perante a inquietação, a diversidade e a amplitude do Mar Absoluto. Inundado de mar por todos os lados é o livro Os Pescadores de Raul Brandão. Página a página retém o sobressalto dos olhos e a concentração dos ouvidos. Desde as fronteiras do Minho com a Galiza até à solidão imensa de Sagres. Descobriu as cores e os sons de tudo o que o rodeava. Ao ir da Póvoa de Varzim até Âncora nunca deixa de estar «com dois jatos de azul metidos pelos olhos dentro». Pouco lhe interessa o verde tranquilo dos pinhais e os moinhos a rodar as velas como se fosse um bater as asas. O que o surpreende, o que o extasia, o que o assombra é o «mar azul, o céu azul», «um azul que entontece», (…) «uma luz doirada de iluminura», que se prolonga «até à noite e morre com aflição». Aveiro e os prodígios da ria causaram-lhe espanto. “Na ria o ar tem nervos. A luz hesita e cisma e esta atmosfera comunica distinção aos homens e às mulheres, e até às coisas, mais finas na claridade carinhosa, delicada e sensível que as rodeia. A luz aqui estremece antes de pousar…»Muito diferente foi o que escreveu acerca de Sagres. Reconhece estar em face de «um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar. Nos dias sem sol os dedos parecem de ferro – apontam e subjugam». «Sagres – prossegue – é o cabo do mundo: as pedras são caveiras, as ervas cardos negros, os tojos são espinhos e algumas folhas de zinco». «Em frente o mar ilimitado; em baixo o abismo, a cem metros de altura. Ventanias ásperas descarnam o morro cortado a pique, e no inverno as vagas varrem-no de lado a lado». «Os dias neste sítio magnético pesam como chumbo.» Não resiste a afirmar: «Só agora entrevejo o vulto do infante (D. Henrique). Cerca-o e aperta-o a solidão, a solidão de ferro. Pedra e mar torna-se de pedra. Está só no mundo e contrariado por todos. Obstina-se durante doze anos. Contra o clamor geral. Diante deste infinito amargo só vê o sonho que o devora. Não lhe basta um grande sonho – há-de por força realizá-lo.»

Enquanto percorre o litoral nada escapa a Raul Brandão. Tudo o que é mar e vem do mar: a faina dos pescadores, a variedade dos peixes, o alvoroço das lotas, a realidade quotidiana das famílias. Que se poderá dizer d’Os Pescadores e, também das Ilhas Desconhecidas (roteiro das viagens aos Açores e da Madeira)? Existem centenas ou milhares de obras de poetas, de escritores e dramaturgos portugueses acerca do mar. Mas Os Pescadores e as Ilhas Desconhecidas conseguiram aprofundar as surpresas e os mistérios do mar. O modo de vida das populações, atingidas pela miséria e a fatalidade da morte. Um destino feito de audácia e desgraça e, ao mesmo tempo, uma cadeia ininterrupta de solidariedade. Raul Brandão soube, em todos os momentos, olhar para dentro. Faz-nos mergulhar em nós próprios para estarmos mais atentos ao pequeno grande mundo dos outros. 

António Valdemar

1 comentário:

  1. Excelente “António Valdemar “ , que peço vênia chamá-lo
    “ Mestre das Letras “...
    Humildemente, creio não haver maior ligação mar-homem fora de Portugal, a exemplos... Duarte Pereira, Fernão Magalhães, Fernando Pessoa, Luís de Camões...

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