Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

4 de maio de 2022

Para uma nova realidade – que Maçonaria e Democracia no Séc. XXI ?

 


Para uma nova realidade – que Maçonaria e Democracia no Séc. XXI ?

I – Introdução

Maçonaria (a Liberal, Adogmática e Progressista, que defendemos) e Democracia serão sempre um assunto inesgotável. Partilho convosco algumas reflexões, que venho coligindo, desde o avanço da extrema-direita (ou de regimes «iliberais») na Europa e no Mundo.

Desde os antigos filósofos gregos, a Democracia, define-se com razoável clareza, por contraponto ao seu oposto, a ditadura, como sendo um sistema cujos poderes («cratos») emanam do povo («demos»), por oposição à autocracia despótica. M. Pinto dos Santos [1] define-a como sendo “politicamente uma doutrina que remete para os cidadãos a soberania total sobre o poder exercido”.  

A relativa estabilização democrática e civilizacional, que tínhamos assumido no mundo ocidental, como adquirida e estável (ou mesmo irreversível) após a derrota do eixo fascista em 1945, e talvez mais após a queda do muro de Berlim, reforçada posteriormente com a consolidação da UE, tem vindo a ser progressivamente ameaçada, neste Século. Segundo a ONU, o número de democracias no mundo tem vindo a decair, substituídas por novas ditaduras ou regimes iliberais, grande parte decorrentes dos conflitos entre os interesses geoestratégicos da Rússia e dos EUA e seus peões da UE (quando simultâneamente lhes convém), como é exemplo da actual, escandalosa, perigosa e trágica guerra na Ucrânia.  Mais grave ainda é o facto de tudo isto coincidir com a enorme crise pandémica com origem na China, que afectou gravemente em termos económicos, sociais e de saúde (e ainda continua, mas de forma mais suave) todos os países a nível mundial, sobretudo os mais pobres ou menos desenvolvidos. 

A generalidade das tradicionais famílias políticas europeias e dos seus líderes, face aos interesses dominantes, progressivamente foram-se esquecendo (pelos mais diversos motivos e crises geradas interna ou externamente) de cumprir com os eleitores, as promessas com que foram ganhando as eleições. Neste contexto e recorrendo fortemente ao suporte das   Novas Tecnologias e Redes Sociais, os extremistas de direita foram envenenando e divulgando rapidamente, aos crescentes milhões cada vez mais excluídos da globalização, as suas ideias (recauchutadas) do passado, sem, contudo, terem qualquer solução para tal. 

Entretanto a China, transformada na fábrica do Mundo, pela globalização sem limites, iniciada nos anos 70/80 do Séc. passado, tem vindo de forma cuidadosa e bem planeada, a estruturar o seu poderio crescente, preparando o futuro domínio a nível mundial.  Além de se agudizarem as tensões com os EUA (que se sentem cada vez mais ameaçados como «donos do Mundo»), (sobretudo a nível da Ásia / Pacífico), inteligentemente tira agora partido das sanções aplicadas à Rússia, aproveitando para aumentar a aquisição de bens essenciais (gás e petróleo ou outros) a preços bem mais em conta…, enquanto continua pacientemente a estender a parte em falta das malhas da nova «rota da Seda», pelos «caminhos» que delinearam.

Com clarividência (mas simultaneamente com significativo atraso), recentemente o ex-Presidente Obama afirmou: “A internet e as redes sociais “enfraqueceram a democracia” e “aceleraram alguns dos piores impulsos da humanidade”.  Esta simples frase e as suas tremendas implicações, devem fazer-nos pensar seriamente, já que estamos no início pleno da 4ª Revolução Industrial.

II – E a Maçonaria? Que desafios no futuro?

M. Pinto dos Santos [1] refere que “a Maçonaria, por regra e como defensora da liberdade, defende os sistemas democráticos, mas o exercício interno do poder nas lojas, até das Obediências, não segue por vezes as regras democráticas, mas outro tipo de regras ligadas mais a um regime tipo monárquico”. 

A democracia na Loja está muito presente, já que as eleições para o seu corpo, são anuais: A loja é soberana e tem por princípio "um homem livre numa loja livre". Todas as responsabilidades são claramente delimitadas e electivas. Todos os irmãos Mestres são elegíveis para os diferentes cargos. O poder dos oficiais dignatários é muito limitado e as decisões são colegiais. 

No entanto, em nosso entender, uma das questões centrais que cada maçom deve colocar de forma periódica, desapaixonada, e consciente é a de saber se a Maçonaria tem razão de ser tal como está e/ou se terá futuro enquanto tal.

O mundo mudou e está a mudar a uma velocidade acelerada, suportada numa evolução tecnológica dificilmente imaginada há quarenta anos atrás. A Globalização generalizou a utilização da Informática e Redes Sociais, por todas as sociedades (sobretudo e inicialmente as mais desenvolvidas), suportando-se na Internet, chegou à robótica, nanociência, realidade virtual, mecatrónica, neurociências e outros avanços. 

No mesmo discurso o ex-presidente Obama explicitou (segundo o «Business Insider»). “Nem todos estes efeitos são intencionais ou até evitáveis, são simplesmente a consequência de milhares de milhões de humanos subitamente ligados num curso instantâneo 24 horas por dia de informação global”. Após ter declarado que as redes sociais contribuíram para divisões mais profundas e uma polarização maior da sociedade Obama ainda enfatizou. “Estou convencido que as tendências que estamos a ver vão piorar”, dizendo ainda que “acredita que um maior desenvolvimento da inteligência artificial vai tornar mais difícil detectar a desinformação que circula online”.   Sugeriu ainda que “é necessário fazer alterações à Secção 230” (lei norte-americana que escuda de uma forma ampla as empresas tecnológicas da responsabilidade por aquilo que os utilizadores publicam nas suas plataformas).


De um modo geral e em especial para a Maçonaria progressista e Adogmática, não foi fácil a sobrevivência até ao presente (perseguição e proibição pelas ditaduras, Igrejas e extremistas de direita e esquerda) construindo apesar disso um verdadeiro e desenvolvido percurso Maçónico contribuindo, muitas vezes decisivamente, para a estruturação e desenvolvimento das democracias nos países em que actuavam. Do outro lado da Mancha e do Atlântico, a dita «regular» teve um percurso relativamente bem mais cómodo, sempre ao lado e na defesa do tradicional conservadorismo britânico, omnipresente no alargamento e protecção ao império anglo-saxónico.

Como questiona o Ir:. H. Spoladore [9]: “Qual a função do Maçom no futuro? Social, cientifica, política, cidadão do universo? Ou será apenas de estudos e auto-aprendizagem e conhecimento? Qual será o conceito de fraternidade entre os maçons do futuro? Haverá potências como as conhecemos hoje? Qual será o conceito avançado do G.A.D.U.? “

Com todas guerras, revoluções e golpes de estado, a Maçonaria aí continua, dividida entre a absurda «regularidade» dogmática anglo-saxónica, em permanente recessão desde os anos 70 do Séc. passado (apesar de ainda constituir cerca de 90% dos efectivos mundiais…), e a «irregularidade» continental (adogmáticos e laicos). Têm sido dados alguns passos no intercâmbio e formação de algumas Lojas (embora poucas e mais de raiz latino-americana), em algumas zonas dos EUA (Califórnia, New York, etc.), é contudo uma realidade que não conseguimos recuperar minimamente, as perdas significativas dos «regulares». 

Com a «balbúrdia» surgida na última década, assistimos ao aparecimento de cada vez maior número de pequenas «obediências» (fruto de cisões, muitas vezes artificiais, normalmente para satisfazer as vaidades e ambições dos «Chefes» que acabam por as dirigir). Apesar de Roger Dachez [7] e outros afirmarem que tal facto representa um sinal de vitalidade, temos significativas dúvidas quanto a esta interpretação. Na nossa modesta opinião, estas divisões só contribuem para enfraquecer a Maçonaria em geral e muito em especial a Adogmática e liberal, quando a união contra as crescentes forças da extrema-direita é a nossa prioridade máxima, para quem defende a pluralidade democrática e os ideais humanistas, como nós, Maçons. Além do mais acabarão por levar a enquistamentos em micro-organizações, olhando para o «umbigo», cada vez mais ou menos «exotéricas», chefiadas eventualmente por um líder autoritário (não será só na política… ), que se irão desligando da sociedade real,  até gradualmente desaparecerem, vítimas da sua limitação, desadaptação  e ineficácia. Mas terão cumprido a sua missão, enfraquecer e «desvanecer» a verdadeira Maçonaria, perante as sociedades.

Face à redução progressiva da aceitação dos ideais maçónicos nas Sociedades ocidentais, cada vez mais individualistas, consumistas e afastadas do estudo filosófico, da simbologia e do estudo da Tradição que aquela embeleza e referencia, poderemos eventualmente assistir a um «desmembramento» das maiores Obediências.

Talvez daqui a 50 anos (pelo menos), acreditamos que a Maçonaria existirá, mas quase por certo em moldes relativamente diferentes dos actuais.

Poderão existir eventualmente menos potências, controladas e suportadas por potentes e inteligentes computadores, suportados nas últimas versões de SW e integrando plenamente os últimos desenvolvimentos da Inteligência Artificial. Tudo poderá ocorrer de forma muito diferente da actual ou até do que a nossa imaginação possa alcançar. Contudo já que a verdadeira Maçonaria só se aprende e pratica nas Lojas, tal como os nossos Mestres nos ensinaram «ab initio» (com a excepção destes dois anos de período pandémico), como «desmaterializar» parcialmente este requisito essencial?

No mundo em geral, com a actual Revolução Tecnológica, o software irá desactivar a maioria das actividades humanas tradicionais nos próximos cinco a dez anos. Com todas e tantas inovações tecnológicas, com o  poder económico e  a riqueza na mão de cada vez menos, em prejuízo da esmagadora maioria, a democracia corre o risco de se ir desfigurando em autocracias crescentes, já que os políticos serão cada vez mais «telecomandados» pelo poder económico global transnacional e seus ramos nacionais, com a complacência da maior parte dos cidadãos, devido à eficaz «anestesia» de quase todos os meios de «(des)informação» que os  oligarcas adquiriram, implementam e controlam. Basta ver o que acontece com a China, Rússia, até às tendências “republicanas” nos EUA (com Trump), passando pela Europa, Ásia e América do Sul). 

Sendo esta ameaça cada vez mais pertinente na Europa e no mundo, pode representar contudo  uma oportunidade essencial para a Maçonaria estar mais atenta e se entranhar na Sociedade, já que compete aos cidadãos «livres e de bons costumes», desmistificar, combater e anular as ameaças totalitárias e as cada vez mais gritantes desigualdades, uma vez que a fome, miséria, falta de solidariedade e apoio aos mais carenciados, mais fracos, idosos e porque não, ao já catastrófico e angustiante estado do Clima e meio ambiente, que a todos afecta e ameaça, se tornou prática «normal» dos ideólogos do  neo ou ultra-liberalismo, que só se preocupam com os  fabulosos lucros da nova religião monoteísta dos sacrossantos «Mercados», que só beneficia largamente os 1 a 10% % dos mais ricos (como muitos conceituados economistas comprovam e sustentam técnicamente ). 

Se não emergir uma nova geração de políticos éticamente determinados, activos, competentes e cultos (razoávelmente melhores do que os actuais), o que passará pela regeneração dos aparelhos partidários (com mais liberdade, competência e diminuição da confusão da influência e/ou domínio dos aparelhos dos Estados, com os seus próprios), teremos o inevitável surgimento de novos partidos, com novas ideias, mais abrangentes e sustentadas, (em que a Maçonaria deverá ter um papel fundamental), representando as crescentes camadas da população mais cultas, mobilizadas e activas, sendo determinante uma prática inclusiva e não elitista.

Se não o conseguirmos, as crescentes franjas populistas e extremistas da direita, com o acentuado reforço que vêm alcançado, aliado às enormes desigualdades e desequilíbrios mundiais, podem crer que o futuro próximo se nos afigura cinzento, para não o sobrecarregar com tons um pouco mais escuros (exemplo último: eleições presidenciais em França).


Parece-nos pois essencial, que a «velha» Maçonaria Adogmática e liberal, em vez de se dispersar, surja cada vez mais unida  e sobretudo se reforce, pois tem aqui um campo primordial de intervenção, para que a Liberdade,  Igualdade e a Fraternidade subsistam e a Humanidade progrida com Solidariedade, Justiça, Verdade e Tolerância, tirando partido eficiente e livre dos novos meios e desenvolvimentos tecnológicos que irão surgindo. 

Os cientistas admitem que o potencial mental médio do homem esteja em 10% ou até menos e que a capacidade mental poderá chegar até 40 a 50%. E quando o homem tiver todo este poder mental não se julgará Deus ou o G.A D.U? Ou será o contrário? Quando o homem tiver esta capacidade mental tornar-se-á melhor, compreendendo que as guerras são inúteis e vencerá a ancestralidade animal que tem dentro de si?  Todavia, isto é apenas especulação, pois até lá ainda muito irá acontecer. Existirão provavelmente mais Sessões «digitais», suportadas em SW apropriadamente desenvolvido para tal.

O homem ou a mulher procuram, na vida material mundana, os motivos subjacentes à sua existência / permanência, motivos esses que não encontram nem na religião, nem nas igrejas, nem nas ideologias político-partidárias. Daí o caminho para filosofias alternativas, como aconteceu no século XVIII, com o aparecimento da maçonaria especulativa, cujo objectivo inicial era o de conseguir agregar num amplo centro de união, todos os homens, independentemente das suas crenças religiosas e/ou politicas. Os que prestam alguma atenção à evolução da Maçonaria, apercebem-se que ela vai vivendo e subsistindo, pior ou melhor, mas que já há muito ultrapassou os seus tempos áureos (sobretudo a «anglo-saxónica»).

Conforme qualquer organismo vivo, temos de questionar se a Maçonaria segue as leis da natureza e, portanto, passará pelas etapas de nascimento, vida e morte, ou se eventualmente, este derradeiro momento poderá ser adiado. Muitos adversários da Maçonaria – e até mesmo maçons – defendem que ela será incapaz se adaptar aos tempos actuais, e ainda mais ao Séc. XXI. Outros defendem o contrário e muitos têm bastantes incertezas, existindo ainda uma última categoria, que se agarra desesperadamente (quais náufragos perdidos) a princípios, que criados em determinados contextos e momentos históricos, se tornaram actualmente dogmas [8].

Face ao exposto permito-me concluir, com esperança e algumas dúvidas,   que a Maçonaria terá futuro, mas as Obediências ou se adaptam aos novos tempos, trabalhando em novos moldes (não esquecendo contudo a Tradição, princípios e as origens histórico-filosóficas), mas continuando a estudar as suas origens, deverão deixar de evocar menos o glorioso passado, passando a trabalhar mais para consolidar de forma progressiva o presente, de forma a preparar melhor o futuro, ou passarão à história, perdendo gradualmente influência até à eventual extinção.

Platão escreveu que a democracia inevitavelmente tem a tirania como sua sucessora, por causa dos excessos de liberdade. Sejamos porém mais optimistas e lembremo-nos de uma das frases mais conhecidas de Winston Churchill: “A democracia é a pior forma de governo, com a excepção de todas as demais”. 

Será que conseguiremos continuar a construi-la, reforçando-a até, ou voltaremos a cair progressivamente nos mais diversos totalitarismos (autocráticos ou não), sejam eles mais brutais ou mais «iliberais»? Tenhamos esperança e trabalhemos unidos para que tal não aconteça, apesar das envolventes que actual e crescentemente ameaçam todos os «homens livres e de bons costumes», a nível mundial. 

Para finalizar, deixo-vos uma citação [8]: “nós (maçons) imitamos a iniciação, mas já não a vivemos”.

Salvador Allende M:. M:.

(R:. L:. Salvador Allende – G:.O:.L:.)


Bibliografia

1 - “Dicionário da Antiga e Moderna Maçonaria” – Manuel Pinto dos Santos, Lisboa 2012

2 – “Democratie et Franc-Maçonnerie”  – L´Edifice.net@ledifice.net»”  – s/ autor expresso («X.M.»)

3 – “Dictionnaire de la Franc-Maçonnerie” – Daniel Ligou,  Éditions PUF, 2015 (3ªÉdition), Paris

4 – “L’Apprentissage Maçonnique - Une École de L’éveil» - Béresniak, Daniel, Éditions Detrad – 2009, Paris

5 – “Le Petit Dictionnaire de la Franc-Maçonnerie” -  Guy Chassagnard – Éditions Alphée, 2005

6 – “O Mundo de Amanhã – Geopolítica contemporânea” – Carlos Gaspar – Fundação FMS

7 – “A Maçonaria no Século XXI - algumas Interrogações” – Salvador Allende M:.M:. (blog “Jakim & Boaz”)

8 – “As Três Romãs”- Manuel Pinto dos Santos - Facebook (2022).

9 –  “Avanços Tecnológicos e o Futuro da Maçonaria“ – Hercule Spoladore - Revista digital “ACML News” nr.3,      20.Ago.2017.

10 – “Grand Orient.- las vérités do G.M. do GOdF” - ALain Bauer – Éditions Denoel, 2002.


Sem comentários:

Enviar um comentário