Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

19 de abril de 2022

Há Dois Anos Atrás, em Loja

 


Há Dois Anos Atrás, em Loja

O filósofo Sul Coreano Byung-Chul Han diz-nos que todas as Épocas têm as suas características, estando a actual no crepúsculo da Era bacteriana e no dealbar da neuronal manifestando-se esta com clareza nas inúmeras depressões, transtornos de deficit de atenção e transformações da personalidade (síndroma de Burnout), dito de outro modo, a Era imunológica, onde nos defendíamos da negatividade dos microrganismos, está a ser substituída pelo excesso de positividade constituindo um enfartamento incontrolável, ou seja, o sistema imunológico distingue o que é amistoso e perigoso e o neuronal a não dar tréguas à alteridade e à estranheza (pronuncia-se o que pertence aos Outros)

Com efeito, hoje, tudo se expressa nas breves histórias disto e daquilo, tal é o volume da informação, sem aprofundarmos e consolidarmos necessariamente a digestão da mesma. Por tal creio que a vida humana terminará numa hiperactividade fatídica se for despojada do lado contemplativo. Porém, recordo S. Gregório: é muito útil que a alma regresse da vida contemplativa à activa, de modo a que a chama da contemplação transmita a perfeição à actividade. É o que vou tentar fazer com este Traçado. Assim: Este pequeno intróito levou-me a uma bela fita de cinema de Alain Resnais (L'Année Dernière à Marienbad-1961) em que o Autor revisitava locais que, por sua vez, despertavam sentimentos cruciais expressos, ora em ficção ora na realidade. Sim, a nostalgia invadiu os meus circuitos neuronais e a Loja destacou-se nas imagens com que o pensamento se revela. 

Logo me assaltou, e se pôs em ebulição, aquela procura frenética, nos dias das sessões em Loja, do lugar para estacionar a viatura (pois o antigo, tradicional e bafejado pela arte arquitectural Bairro Alto não se compadece com a poluição desenfreada que o estava a minar lentamente). Depois a vagarosa caminhada, sempre a subir, até ao Palácio em que os IIr∴ cavaqueiam por tudo e por nada, mas com um cunho de cumplicidade que lhes enche a alma reaproveitada. Chegados lá ao cimo ofegantes, e após o cumprimento caloroso do Sr. J que nos abre a porta e nos cede o instrumental necessário à sessão do dia, vamos encontrando IIr∴ de outras Lojas com quem mantemos uma amizade fraterna de longa data. Bebe-se um café ou se dá ao dente num petisco qualquer e lá nos vamos paramentar para podermos iniciar a respectiva sessão. Aqueles minutos, em que nos convidam a deixar os vícios profanos antes de entrarmos, tem um significado muito para além daquilo que se pede. É quando verdadeiramente sentimos o renascer e a transformação a que nos propusemos e, sobretudo, sentirmos que vamos partilhar (com seres humanos diferentes, mas tão iguais) a vontade e a perseverança de nos tornarmos melhor do que somos.  E, claro, quando termina a sessão, aquela sensação cristalina, não inquinada, quase pueril que nos abraça com mil tentáculos onde figuram a liberdade, tolerância, justiça, fraternidade, igualdade e tantas outras virtudes que elevamos bem alto.

De tão vasta e complexa, a Loja, tive que recordar a mim mesmo o que Pierre Audureau escreveu sobre as PPr∴ em Loja, quer dizer, não podem ser um discurso apesar da oralidade com que é apresentada, também não podem ser uma exposição embora tenham que ter uma estrutura sólida e nunca poderão ser uma confissão, mas apenas terem um cunho pessoal e introspectivo.

A Loja poderá ser considerada como uma das primeiras figuras simbólicas com que os Iniciados se deparam ao decidirem o renascimento (ou a sua segunda vida) em que abandonam (não os arquétipos, mas as formas com que se expressam) um Ser e um Estar obesos e entediantes de modo a que o Despertar se evidencie entusiasmante e profundo, dito de outro modo, tentar conjugar a razão pura com o isentar as coisas da sua factualidade e processualidade.

Estou a imaginar Diógenes, vindo de um pequeno vilarejo na Anatólia (Sínope) ter chegado a Atenas e, provavelmente, ter ficado embasbacado com a imponência física dos Templos e Construções com as suas colunas dóricas, jónicas e coríntias, os seus frontispícios magistrais e as suas naves imperiais que, em conjunto, revelavam uma majestosidade de difícil acesso ao comum dos mortais. Cedo deve ter constatado (julgo eu) que a física deveria ter uma correspondência psíquica pois é em nós próprios que a construção deverá ter um valor acrescentado. A pedra é eterna e sobrevive-nos, mas enquanto a nossa eternidade se não volatiza temos a obrigação de a engrandecer.

Lao Tsu escreveu que os que conhecem não falam e os que falam não conhecem. Será assim em Loja? Detalhando: o que muito fala não está a dizer aos IIr∴ que, por conhecer pouco, temos o direito e o dever de progredirmos no conhecimento? E o que não fala (Aprendiz) conhece muito, mas desordenadamente esbanja o seu saber? Nem uma coisa nem outra ou, as duas, revelando uma particularidade da Loja em que os que falam também sabem e os que calam não saberão tanto.

Enquanto duram os trabalhos, a junção entre a Terra e o Céu (elementos fundamentais de qualquer cosmogonia que, simbolicamente, traduzimos para matéria e espírito) é momentaneamente hierofântica, avessa ao racionalismo e à margem da modernidade? Mais outra particularidade da Loja pois sem eliminarmos o sagrado (laico ou religioso) socorremo-nos do raciocínio materialista para o dissecar, descrever, aplaudir, recusar, sintetizar e concluir.

O Mundo (macrocosmos) e o Homem (microcosmos) perfeitamente em harmonia na Loja – porta de entrada escancarada aos nossos sentidos (matéria) e às funções cerebrais mais elaboradas (espírito).

O homem é um Ser eminentemente social, de acordo com J. J. Rousseau? Pois é aqui que, em grupo, individualmente diferentes, socialmente idênticos e totalmente livres nos conglomeramos através de uma hierarquia, quer de funções (contingente e transitória) quer de Graus (iniciáticamente falando, que é como quem diz, fundada em graus e etapas progressivas do conhecimento). Sim, a ausência de laços e vínculos provoca uma crescente fragmentação e atomização da esfera social, coisa que contrariamos com todo o gosto quando estamos em Loja.

E a Egrégora que, etimologicamente significa vigiar ou velar? Poderá esta entidade colectiva invisível medrar fora deste espaço e com a mesma intensidade com que aqui a sentimos? Para muitos ela é independente do que é físico e mental por ser exclusivamente espiritual, mas é aqui que cada um de nós contribui para tal estado. Não é esta energia colectiva que nos ajuda a descer a nós para nos compreendermos, para colocarmos o destino nas nossas mãos sem nos comprometermos, para aceitarmos sem submetermo-nos, para saber perdoar e para ensinarmos sem nos tomarmos por Mestre de modo a que aprendamos a ler o esquadro e compasso? Se o sono é o clímax da descontracção física, não será a meditação conjugada o ponto alto da descontracção espiritual?


Sabemos (ou pelo menos desconfiamos) que a falsa ciência alivia a consciência, como também sabemos que a ciência sem consciência não é senão um ruído da alma (Rabelais), então, não será mais uma particularidade de, em Loja, conseguirmos o que parece uma não ciência ser transformada, conscientemente, em algo que nos eleva?

Não estará a Loja (conjunto de Obreiros) acima de qualquer sensibilidade obediencial sem, contudo, estar fora dela? Não é na Loja que o mergulho na linguagem analógica (que nos abre as portas do conhecimento) se torna relevante e útil? Explico melhor: melhora-nos e transforma-nos fazer um estudo enciclopédico das ferramentas, utensílios, sinais, toques, palavras, ritos e rituais, se não estivermos a olhar nos olhos dos nossos IIr∴ reconhecendo-nos mutuamente? É aqui que cada ferramenta que recebemos, e com o olhar dos Outros, aperfeiçoamos o conhecimento de Si.

O que poderá representar a passagem do exterior ao interior (Mestria) de cada um sem que os Outros e o Universo interajam? Não é aqui que entendemos que os dois pontos inferiores do triângulo representam as opiniões opostas e que o ponto superior não só os valida como os mediatiza?

Como damos conta dos 4 significados de um símbolo (literal, alegórico, moral e anagógico) sem ouvirmos, vermos, cheirarmos e tocarmos nos nossos Irmãos reunidos em Loja? Podemos fazê-lo, mas condenados a reduzirmo-nos e a limitarmo-nos, é que a Cadeia de União só se separa para anexar a totalidade e isso, só em Loja.

Sendo os Rituais considerados práticas gestuais e orais que não são um fim em si, mas os meios de acesso aos símbolos, poderemos dar-lhe um valor essencial sem ser em Loja? Recordo-vos Stefan Zweig que escreveu: um solitário de espírito não é acessível à humanidade por esta ser incapaz de compreender a tragédia se a não ver com roupagem teatral, ou seja, o Teatro (no sentido restrito de ser um lugar onde se passa um acontecimento memorável) é aqui, em Loja, viva, composta por nós, que somos diferentes uns dos outros, mas num total respeito pela diversidade que nos une, engrandece e nos faz progredir. É, o isolamento veda a vantagem marcante de sentirmos a soldagem das partes.


Concluo citando Henry David Thoreau: dirijam o olhar para o vosso interior, e descobrirão mil regiões, no vosso espírito, ainda desconhecidas. Percorram-nas e tornar-se-ão Mestres na cosmografia do Si

Diógenes de Sínope M∴M∴ (Resp L Salvador Allende-GOL)


Bibliographia

-Mainguy, Irène – “La Symbolique Maçonnique du Troisième Millénaire”, Dervy Éditions-2003

-Alain Subrebost – “Petit Manuel D’Éveil et de Pratique Maçonnique”, Dervy Éditions-2017

-Pierre Audureau – “Planches : comment les réussir”, Dervy Éditions-2013

-Hamill, J. – « Teorias Acerca das Origens da Maçonaria »

-Byung-Chul Han – « A Sociedade do Cansaço », Relógio D’Água Editores-2014

-Stefan Zweig – “Nietzsche : o combate com o demónio”, Guerra e Paz, Editores-2022



P.S. a grafia do Traçado está de acordo com o antigo Acordo Ortográfico


2 comentários:

  1. Maravilha sapiente Diógenes!...assim, quero lembrar tua prática, imaginando voce"Diógenes" com sua "lanterna", indo a uma LOJA e ao indagarem-te dirás : procuro um iniciado !
    Grato por compartilhar teu conhecimento e erudição !

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  2. Maravilha sapiente Diógenes!...assim, quero lembrar tua prática, imaginando-te "Diógenes" com tua "lanterna", indo a uma LOJA e ao indagarem-te dirás : procuro um iniciado !
    Grato por compartilhar teu conhecimento e erudição !

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