Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

5 de agosto de 2021

OPORTUNIDADES, AMEAÇAS, PONTOS FORTES E PONTOS FRACOS DO PRR PARA A SAÚDE

 


OPORTUNIDADES, AMEAÇAS, PONTOS FORTES 

E PONTOS FRACOS DO PRR PARA A SAÚDE

Cipriano Justo

No documento Recuperar Portugal 2021-2026, Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), de 15 de Outubro de 2020 (Plano preliminar), da autoria do governo português , quando se refere ao SNS no capítulo OS ROTEIROS PARA A RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA , a descrição da componente começa da seguinte maneira: “A promoção da saúde é um elemento decisivo para a criação de condições de desenvolvimento sustentado, no médio e longo prazo, e um fator determinante na coesão social e no crescimento económico inclusivo e inteligente. Portugal, à semelhança de outros países da Europa, tem enfrentado transformações demográficas, caracterizadas pelo aumento da longevidade e da população idosa, que, em conjunto com outros fatores, têm vindo a colocar desafios ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) (pág.19) . A prioridade que é dada à promoção da saúde no âmbito do contexto das vulnerabilidades sociais e das reformas e investimentos que têm de ser realizados para lhes dar resposta, é o reconhecimento de que aquela dimensão da política de saúde representa a importância que ela tem para que qualquer política de saúde consiga obter os melhores resultados, ou seja, pessoas e comunidades mais saudáveis, que o mesmo é dizer mais ganhos em saúde traduzidos em maior esperança de vida saudável.

O custo do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), para ser executado entre 2021-2026, tem um custo total de 16 664 milhões de euros, dos quais 13 944 milhões de euros representam subvenções da UE. Para o sector da saúde foram atribuídos 7% daquele montante (1 180 milhões de €) destinados a recuperar estruturas e tornar o SNS mais resiliente, querendo dizer mais habilitado a responder às situações de maior risco.. O programa insere-se no capítulo das respostas às vulnerabilidades sociais, procurando-se que os serviços públicos de saúde contribuam para dar respostas mais céleres, mais organizadas, mais efectivas e de melhor qualidade.

Deve-se lembrar que no topo dos fundamentos da política de saúde, acolhidos na Lei de Bases da Saúde (LBS) (Lei 95/2019), estão a) a “promoção da saúde e a prevenção da doença, devendo ser consideradas na definição e execução de outras políticas públicas; b) a melhoria do estado de saúde da população, através de uma abordagem de saúde pública, da monitorização e vigilância epidemiológica e da implementação de planos de saúde nacionais, regionais e locais; c) as pessoas, como elemento central na conceção, organização e funcionamento de estabelecimentos, serviços e respostas de saúde; d) A igualdade e a não discriminação no acesso a cuidados de saúde de qualidade em tempo útil, e) a garantia da equidade na distribuição de recursos e na utilização de serviços e a adoção de medidas de diferenciação positiva de pessoas e grupos em situação de maior vulnerabilidade; e) a promoção da educação para a saúde e da literacia para a saúde, permitindo a realização de escolhas livres e esclarecidas para a adoção de estilos de vida saudável; f) a participação das pessoas, das comunidades, dos profissionais e dos órgãos municipais na definição, no acompanhamento e na avaliação das políticas de saúde”. 

As medidas enunciadas no PRR hão-de submeter-se à Base 4 da LBS, cujos principais fundamentos estão enunciados atrás. Mas também ao futuro Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (ESNS), enquanto conjunto de regras que organizam e habilitam o funcionamento dos serviços a cumprir a sua missão. Embora, no que é importante, o PRR não colida com a LBS, nomeadamente na sua declaração de princípios, falta-nos conhecer o ESNS para podermos fazer um julgamento sobre a practibilidade do PRR. Será o ESNS que estabelecerá o modelo de SNS que irá ser posto em prática, nos próximos anos, onde está incluído o PRR. Existe, por essa razão, um razoável grau de contingência quanto ao cumprimento de todas as medidas previstas naquele programa. No limite, e no pior dos cenários, as medidas preconizadas no PRR podem ficar-se pelos seus enunciados.

Nos quarenta e dois anos que leva de vida, esta será a quarta reforma do SNS, das quais a primeira foi da responsabilidade da então ministra Maria de Belém, que, tendo sido aplicada em alguns dos seus aspectos, só não foi concluída por razões que a maior parte das pessoas que acompanha esta área política está lembrada. Embora a designação seja outra, o PRR é também uma reforma do SNS. Podemos afirmar que muito do que está agora previsto, há muito que vinha sendo reclamado, tanto por vários sectores profissionais como por grupos informais e pela população, sobretudo daqueles sectores que desesperam para ver os seus problemas de saúde resolvidos e daqueles que olham para os principais indicadores de saúde e verificam que, comparativamente, temos capacidade de estar mais bem situados. 

Com algumas reservas, nesta ou naquela medida de real importância, saudamos esta quarta tentativa de recuperar e tornar resiliente o SNS.  Viu-se, com a resposta que deu à pandemia, que existe energia, vontade, conhecimento e competência para responder, em condições adversas, aos desafios mais críticos. É verdade que estamos perante uma doença aguda, cuja resposta, a imunização, está bem identificada. Este programa chega, por isso, no momento em que o SNS ganhou a credibilidade e o prestígio que vinha perdendo de há uns tempos a esta parte. Existem, por isso, as melhores condições subjectivas para o pôr em prática. 

Globalmente, o PRR para o SNS procura capacitar e habilitar os CSP, os cuidados continuados e a saúde mental para dar respostas mais integradas e mais próximas da população, com os CSP mais bem equipadas e com maior capacidade resolutiva e de diagnóstico precoce. Razão pelas qual lhe são atribuídos 39% da verba consignada à saúde. Porém, ao incluir as autarquias na gestão de todas as áreas que não digam respeito à gestão clínica, é criada uma figura gestionária  em que passam a existir duas linhas de comando numa única estrutura com todos os riscos que isso acarreta, nomeadamente conflito de poderes dentro da sua estrutura, em que a cooperação, complementaridade e  partilha da mesma cultura   entre as várias funcionalidades são essenciais para que o ambiente laboral seja suficientemente compreensivo e útil para os cidadãos. Embora se queira chamar a esta dicotomia de funções descentralização, ela representa sobretudo um risco para a criação de elevados graus de entropia organizacional e de relações de dependência executiva indesejáveis. É, no final de contas, um ensaio para a municipalização dos serviços públicos de saúde.

Uma vez que o PRR se reclama da necessidade de completar a reforma dos CSP, retome-se para o efeito a leitura da Declaração de Alma-Ata sobre os cuidados de saúde primários  e a Carta de Ottawa  sobre a promoção da saúde.  Em ambas é defendida a participação das populações e a intervenção sobre os determinantes da saúde. Se bem que a participação deva ser remetida para o ESNS, já os determinantes deviam merecer outra atenção e desenvolvimento, tanto mais que hoje eles estão bem identificados. No entanto o PRR inclui exclusivamente a vida activa e a alimentação. Fica de fora o principal determinante da esperança de vida saudável, o ensino. Numa meta-análise realizada nos países da UE15, verificou.se que a prevalência das doenças crónicas é maior na população com menos de 12 anos de escolaridade e vai diminuído à medida que o grau de escolaridade aumenta . Em Portugal essa razão inversa é particularmente notória, ultrapassando todos os restantes determinantes. 

Fica por explicar a razão pela qual não são incluídas na reforma e investimentos nos CSP a prevenção do tabagismo e do consumo do álcool, sabendo-se que estão ligados a estes dois determinantes muitas das doenças crónicas, entre as quais as doenças oncológicas e as doenças cardiovasculares. Não sendo referido o papel da escola na promoção e na prevenção deixa-se de fora um parceiro insubstituível sobre os determinantes da saúde que acabámos de referir.  Porventura, faria mais sentido para a saúde ratear dos PRR de outros sectores algum financiamento e fazer-se um maior investimento nos determinantes referidos, incluindo o consumo de substâncias ilícitas. 

Das medidas preconizadas para a saúde mental, devem destacar-se a desinstitucionalização dos doentes e a conclusão da cobertura nacional dos serviços locais de saúde mental (SLSM). A inserção destes doentes nas comunidades locais são duas medidas que, não esgotando todas as respostas, vão no sentido de não alienar as referências sociais desta população tão importantes para a sua reabilitação. Podem-se considerar de circunstância o que fica escrito sobre a prevenção da doença mental, uma vez que o seu melhor instrumento é a melhoria das condições de vida da população – emprego, rendimento, habitação e escolaridade - e os acontecimentos críticos deles decorrentes. Embora alguns destes aspectos sejam tratados noutros capítulos do PRR, seria desejável que fosse chamada a atenção ao contexto em que as doenças mentais surgem e se desenvolvem. 

Sendo reconhecida a importância dos cuidados continuados no âmbito do tratamento da doença, e dos cuidados paliativos nas situações terminais (19% dos custos do PRR), representando uma escolha que reforça o SNS, a construção de 275 novas unidades e o aumento de 5 500 camas, fica-se sem saber se a outra alternativa, a criação de mais equipas comunitárias dedicadas a esta área, não teria resultados clinicamente mais efectivos do que a institucionalização e mais satisfatórios para os doentes. O outro aspecto que deve ser sublinhado e que traz ganhos de bem-estar físico e psicológico aos doentes é a promoção da sua autonomia. Pela sua complexidade, os ganhos em saúde que se obtêm com este investimento, previnem o aparecimento de outras patologias, mantêm o doente hospitalizado durante o tempo estrictamente necessário, além de potencialmente aumentarem a sua esperança de vida. 

Na transição digital (25% do PRR) deve-se sublinhar a criação de um Data Lake (repositório nativo de dados nativos), universal e transversal ao SNS, que permite assegurar futuras necessidades de dados e um sistema inteligente de suporte à decisão para qualquer âmbito de informação e conhecimento. Sem ele o SNS mantinha o seu sistema de informação balcanizado, desconforme e insuficiente para os níveis de análise e decisão que são necessários realizar. Ao permitir a criação de um sistema transversal, único e integrado dos CSP, hospitais e cuidados continuados, reforça a agregação e a partilha da informação sobre o processo único do doente, entre outros.  

Compreende-se e aceita-se que o PRR para o SNS não tenha de invadir territórios que não lhe digam respeito, nomeadamente o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde. No entanto, talvez o PRR não apresentasse várias falhas detectadas se, como ficou expresso na Lei de Bases da Saúde, incluísse parte do seu  investimento na criação dos Sistemas Locais de Saúde enquanto dispositivo intersectorial que faz das comunidades locais um dos principais actores do SNS, e que o Estatuto do SNS há-de expressar o aproveitamento que vai fazer dele. Porque como já está afirmado nos documentos fundadores dos CSP, a participação das comunidades na organização dos serviços de proximidade é indispensável para que o alinhamento com as suas necessidades se faça de acordo com os seus perfis epidemiológicos, tanto na vertente da distribuição da doença como da saúde (Fig. 1). A referência à vida activa e à actividade física, além da alimentação saudável, sendo importante fica bastante aquém do portfolio da promoção da saúde .  Estando para breve, segundo as palavras da ministra da Saúde, a publicação daquele Estatuto espera-se que ele preencha esta lacuna, de acordo, aliás, com o que a Lei de Bases da Saúde tem inscrito no seu articulado  

 


Fig1.  Visão geral das abordagens de apoio às comunidades para melhorar sua saúde. 

           Communities and health | The King's Fund (kingsfund.org.uk) (2021)


A natureza dos investimentos que o PRR se propõe atribuir à saúde, só cumprirão plenamente os seus objectivos se simultaneamente promoverem as mudanças de relacionamento com as comunidades, abrindo-se e deixando-se influenciar por elas. É uma cultura de partilha e cooperação que está em causa e que é necessário criar e desenvolver. É adoptando, pois, este espírito que com os 7% se conseguirá um retorno em melhoria da saúde muito superior àquele que tem sido obtido com o modelo tradicional de prestação de cuidados. Porque, no final das contas, o que todos desejamos é viver o maior número de anos, mas vivê-los com saúde.


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