Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

25 de maio de 2021

Maçonaria e Psicanálise: conflitualidade ou afinidade?

 


“Seria mais discreto prestar atenção a este grande truísmo: a civilização é filha da barbárie e neta da selvajaria”.

Ortega Y Gasset in Notas (1938/1967)

Maçonaria e Psicanálise: conflitualidade ou afinidade?

Maçonaria e Psicanálise apresentam-se como duas entidades distintas, quer do ponto de vista histórico, das suas origens ou dos seus propósitos; não obstante as naturais características que as distinguem, partilham contudo, segundo Daniel Béresniak, da mesma opinião sobre o conceito de “bem-estar”, ou seja, o poder agir em lugar de reagir, consubstanciando assim a condição de liberdade.

Apesar de a suas origens mergulharem na mais remota antiguidade, a Maçonaria, e mais concretamente a palavra freemason, surge pela primeira vez em 1376 em Inglaterra, sendo o mais antigo regulamento maçónico datado de 1390. As primeiras Constituições do GOL (de 1806 e 1821) não definiam a Maçonaria, mas a de 1836 estabeleceu que a Ordem maçónica “tem por objecto o exercício da beneficência, do estudo da moral universal, das ciências, das artes, e a prática de todas as virtudes”. Em 1878 (sob o Grão-Mestrado do Conde de Paraty, a maçonaria é considerada “uma associação de homens livres, unidos pelos laços do amor fraternal”; e a Constituição em vigor, de 1990, aponta para o “aperfeiçoamento da Humanidade através da elevação moral e espiritual do individuo”. 

A Maçonaria é definida por António Arnaut como “uma Ordem iniciática, ritualista, universal e fraterna, filosófica e progressista, baseada no livre-pensamento e na tolerância, que tem por objectivo o desenvolvimento espiritual do homem com vista à edificação de uma sociedade mais livre, justa e igualitária. Não aceita dogmas, combate todas as formas de opressão, luta contra o terror, a miséria, o sectarismo e a ignorância, combate a corrupção, enaltece o mérito, procura a união de todos os homens pela prática de uma Moral Universal”.

Por seu lado, a Psicanálise encontra-se incontornavelmente ligada à figura de Sigmund Freud (1856-1939), e conta com cerca de 100 anos de existência. Podemos entender a Psicanálise como constituída por 3 partes: 1) um conjunto de técnicas psicoterapêuticas específicas (como a associação livre e a interpretação, 2) um modelo do desenvolvimento psicológico e 3) uma “metapsicologia”, ou seja, hipóteses especulativas sobre a natureza e estrutura da mente (Bateman & Holmes).


 As ideias de Freud tiveram um profundo efeito de choque pela descoberta de novos territórios, particularmente os conceitos de “Inconsciente” e de “Sexualidade”, que confrontaram respectivamente, preconceitos de ordem “intelectual” e “estético-moral”, nas palavras de Freud (M. Haar). O Homem, sempre analisado na tradição filosófica, desde Platão, como “animal racional”, controlado pela razão e pela vontade, é agora tocado pela existência de um pensamento e vontade inconscientes: o Homem deixa de ser senhor de si próprio. E, ainda para mais, esta parte que determina as motivações mais profundas, representa um domínio bem mais vasto que a dimensão do Eu consciente (imagem do iceberg de 1/10). Na teoria e prática analítica, são temáticas essenciais, as questões em torno da “filiação”, do “desejo” e da “morte”.

No seguimento destas breves enunciações sobre Maçonaria e Psicanálise, procuraremos identificar pontos de encontro e de divergência entre os dois discursos. Baseamo-nos para o efeito em Daniel Béresniak (Le Jeu d´Hermès) e Jaques Demoulin & Guidino Gosselin (La Franc-Maçonnerie au risque de la psychanalyse). Em nossa opinião estes autores complementam-se na abordagem da relação entre maçonaria e psicanálise: enquanto Béresniak realça as afinidades, Demoulin & Gosselin assinalam também importantes distinções.

Além do conceito de “bem-estar”, anteriormente referido e definido como a finalidade da condição humana no desenvolvimento harmonioso da vida, também a noção de “mal-estar” é para Béresniak, partilhada. O autor compara o sofrimento a uma passagem obrigatória pela cama de Procusto, situação proverbial que simboliza a intolerância do ser humano face ao seu semelhante. O “mal-estar” é definido como uma relação defeituosa entre o espirito, o corpo e a realidade que os contém. Seja um acidente que provoca lesões cujas causas são visíveis, seja uma depressão, cujas causas são invisíveis, aquilo que “está mal”, inscreve-se numa relação defeituosa com a realidade.


Tanto psicanalistas como maçons pensam que um bom conhecimento de si, permite libertar-se da repetição e tornar-se artista do seu próprio destino sem prejudicar os outros. Também partilham um propósito ético, sem no entanto pregarem uma ordem moral onde reconheçam patogenia. Sabem que o conhecimento de si conquista-se na sequência de uma viagem interior. Aspiram à luz e procuram-na através da palavra. Uns e outros defendem igualmente teorias, reagrupam-se em Escolas e intercomunicam. Sombras e luzes alimentam-se mutuamente. Um paciente pode interromper a sua análise por se ter decepcionado, o que também pode acontecer a um maçom pela mesma razão; estes podem ser as vítimas da sua crença de adesão como panaceia. Os maçons não partilham das mesmas opiniões filosóficas, religiosas e politicas. Partilham a visão de um mundo em processo de construção e acreditam na perfeccionabilidade do ser humano. 

E há ainda a prática, com as suas errâncias e derivas. A maçonaria tem as suas obediências e federações de Lojas com os seus administradores; a psicanálise também tem as suas Escolas, inventa estruturas e hierarquias; as obediências e as Escolas apresentam as suas clarificações/abordagens, como toda a luz, fabricam ortodoxias e condenam as heresias.

Neste sentido, e para Béresniak, o que se diz sobre os maçons pode reproduzir-se palavra por palavra para os psicanalistas, o que justifica uma postura de aproximação.

O processo de Iniciação, parece igualmente apresentar semelhanças entre maçonaria e psicanálise, se bem que um apresente caracter colectivo e o outro individual. A Camara de Reflexão é um bom exemplo; lugar fechado, obscurecido (representando o interior da terra) com uma mesa, uma cadeira e a presença de alguns objectos e sentenças que sugerem a morte. Uma folha branca questiona sobre o sentido da busca e convida à redação de testemunho filosófico; trata-se de um momento precioso e intransmissível que poucas pessoas têm o privilégio de vivenciar no tumulto da existência moderna. Reflectir sobre as suas convicções filosóficas nestas condições particulares, constitui o início de um exercício salutar que poderá ter continuidade ao longo de toda a vida. 

A morte é neste espaço institucionalizada, contudo não é finitude, mas serve como mediação de um novo nascimento; a vida passa, de algum modo a um plano simbólico, significando como que uma passagem além da vida biológica.

A Camara de Reflexão convida ainda à introspecção e ao conhecimento do seu “íntimo”. Apesar dos perigos, dúvidas e ilusões, este louvável convite tem o mérito de permitir ao recipiendário reflectir sobre o acto que vai tomar. Saído da Camara, continua a sua jornada solitária e enfrenta as três viagens da Iniciação. De olhos vendados confronta com a força do seu imaginário, as exigências do ritual e os significados maçónicos. Receberá com emoção a promessa de laços afectivos indefectíveis, se souber permanecer digno. Em toda a sua vida maçónica será sempre aprendiz – também Freud fala do conceito de “análise interminável”, que o analisado passaria a continuar, já sem a presença do analista, num processo de autoanálise sem fim. 

Por outro lado, Demoulin & Guidino realçam, aquilo que designam como oposição radical dos discursos: enquanto a maçonaria exalta os ideais e intensões altruístas, a psicanálise declara trabalhar na desmontagem dos ideais e assegura inequivocamente, não ser um humanismo. A psicanálise assemelha-se mais a um racionalismo sombrio, ferido pelo inconsciente, e convidando a pessoa a uma experiencia singular de clarificação.

Os autores retiram algumas constatações desta primeira confrontação. Enquanto que o percurso analítico produz um renascimento ao contrário, a partir de um pedido, de uma interrogação ou de um sofrimento, a maçonaria apresenta-se como uma sociedade iniciática e propõe, muito globalmente a cada um, o começo de uma “vida nova”. A maçonaria confronta-se ainda, para estes autores, com um grande inconveniente: o facto de o homem moderno parecer pouco receptivo à noção de iniciação; ele volta-se mais facilmente para outras respostas na tentativa de diminuir a sua angústia face ao facto inexplicável de existir neste mundo e neste corpo.

Um outro aspecto apontado, remete para o facto de a maçonaria se afirmar, do ponto de vista institucional, como sociedade de perfeccionamento individual e colectivo; mesmo que seja problemático responder a questões fundamentais como: 1) o ser humano tende para o seu progresso, ou somente para a sua satisfação pessoal? 2) de que meios dispõe ele para se perfeccionar, ou seja, em aprender mais do que o que tem necessidade no seu ser, para sobreviver como corpo?

 Em síntese:

São significativas as afinidades e adesões entre maçonaria e psicanálise, sendo que a conflitualidade parece assumir a forma de uma saudável discussão, evidenciando oposições e contradições.

Relativamente às afinidades encontramos aspectos como a procura de um processo de aperfeiçoamento e liberdade individual.

A “utopia do Homem civilizado” parece ser comum, embora a psicanálise pareça apresentar algumas reservas (dada a importância da dimensão inconsciente do pensamento e do comportamento humano).

Ambos os discursos enfatizam a importância da dimensão simbólica, na organização dos respectivos percursos.

A intransmissibilidade das vivências é comum à maçonaria e à psicanálise; de igual modo, a experiencia da Iniciação e do exercício do Ritual, bem como a experiencia analítica são irrepetíveis e só apreendidas pela participação.

Em ambos os domínios, também se verifica a passagem de uma relação externalizada para uma interioridade, introduzindo espessura de símbolos, valores e sentidos, mediados pela intersubjectividade entre os actores envolvidos.


O recurso à palavra, é um elemento central tanto na progressão maçónica como na “cura analítica”, se bem que em maçonaria a palavra é contida em fase inicial do processo, a pretexto de o aprendiz “melhor apreender os ensinamentos veiculados pelos vigilantes e pelos mestres”, enquanto que em psicanálise o analisado é incentivado a falar sem qualquer constrangimento, adoptando o analista, tendencialmente, uma posição de escuta activa (em silêncio). Em sentido semelhante, ao aprendiz é entregue um par de luvas brancas “para recordar que se deve manter puro”, asserção que em psicanálise é desprovida de validação, já que a noção de “pureza” é estranha à sua conceptualização e metodologia; pelo contrário, o seu propósito é precisamente alcançar a linguagem do inconsciente, origem por excelência, de todas as pulsões avessas à conduta socialmente aceite.

Orlando Ribeiro, M:.M:.

Referencias Bibliográficas

 Arnaut, A. (2006) – Introdução à Maçonaria, (5ª edição). Coimbra: Coimbra Editora.

Béresniak, D. (2001) – Le Jeu d´Hermès - Psychanalyse et Franc-Masonnerie. Paris: Éditions Véga.

Demoulin, J. & Gosselin, G. (2007) – La Franc-Maçonnerie au risque dela psychanalyse. Bruxelles: Editions Luc Pire.

Pinto dos Santos, M. (2012) – Dicionário da Antiga e Moderna Maçonaria. s/ cidade: Socingraf, Lda.




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