Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

16 de março de 2021

Regularidade» /Adogmatismo - A Maçonaria no Séc. XXI – que perspectivas?

 


«Regularidade» /Adogmatismo  - A Maçonaria no Séc. XXI – que perspectivas?»

 (Editado pela Comissão Editorial do Blogue) sobre o tema da «Regularidade vs Adogmatismo» e, atento esse contexto, sobre que perspectivas se colocam hoje para a evolução da Maçonaria no Séc. XXI.

Este é talvez um dos temas mais debatidos entre os investigadores que se têm debruçado sobre a história e a situação actual da Maçonaria, porque a necessidade de reconhecimento da “regularidade” entre Potências, tem sido usada pela GLUI e a maçonaria anglo-saxónica como forma de exercer e expandir o seu poder e porque o apego ao sentido dogmático ou não dogmático da prática maçónica foi, e continua a ser, um dos mais importantes elementos de diferenciação dos dois principais ramos da Maçonaria mundial.

Como diz o historiador Roger Dachez,[1] foi em Inglaterra que as palavras “regular” e “regularidade” fizeram a sua aparição na linguagem maçónica. O sentido mais comum da palavra inglesa “regular” é «banal, corrente, standard».    A palavra “regular” distingue assim os maçons «normais», conformes ao estatuto corrente, que reconhecem uma autoridade oficial, face aos «irregulares» a quem não é reconhecido um estatuto normal.

No século XVIII, é regular em Inglaterra uma Loja que se submete à autoridade duma Grande loja e…. que lhe pague as capitações. Os Regulamentos Gerais da G.L.L., publicados nas Constituições de 1723, definem claramente no seu ponto VIII, este conceito: “se um número qualquer de Maçons resolvem entre eles formar uma Loja sem patente do Grão-Mestre, as Lojas Regulares não poderão considerá-los ou reconhecê-los como Irmãos conveniente e correctamente constituídos, nem aprovar as respectivas actividades ou decisões».

A origem desta disputa situa-se no primeiro quartel do Séc. XIX, com a defesa por uns da versão inicial da Constituição da Grande Loja de Londres (de 1723) e, por outros, das alterações que lhe foram sendo introduzidas até à sua versão última da responsabilidade da Grande Loja Unida de Inglaterra – GLUI – constituída em 1813[2].

Mas a polémica sobre a «regularidade» ou “irregularidade” das Grandes Lojas estendeu-se às diferentes latitudes, em estreita relação com as influências geo-estratégicas e políticas que lhe têm estado de um modo geral subjacentes.

De facto, com a Formação da G.L.U.I. ("Grande Loja Unida de Inglaterra") em 1813, o Grande Oriente de França passou a considerar-se herdeiro directo das Constituições de Anderson e a Obediência mais antiga no activo, não reconhecendo à GLUI a herança directa da G:.L:. de Londres, tendo por base as alterações doutrinais que entretanto esta introduziu. Este posicionamento reforçou as divergências entre as duas Obediências, que foram acentuadas no 3º quartel do Séc. XIX, com a aprovação pelo GOdF, no seu Convénio de 13 de setembro de 1877, da proposta do pastor Fréderic Desmons, no sentido de retirar a menção ao G.A D.U. do 1º Artigo da sua Constituição, na parte que apontava para que a Maçonaria tinha «por base a existência de Deus e a imortalidade da alma».


De acordo com os princípios aprovados, o novo texto constitucional do GOdF preconizava que: “A Maçonaria tem por princípios a liberdade absoluta de consciência e a solidariedade humana. Não exclui ninguém em razão do seu credo». Este acto, a par da defesa pela Maçonaria francesa de temas sensíveis como o ideal da República, da democracia liberal e da laicidade, originaram diferenças conceptuais e políticas significativas que vieram a justificar o corte oficial de relações entre ambas, passando a GLUI a não reconhecer o GOdF como potencia «regular».

Esta posição foi reforçada posteriormente, com a adopção pela GLUI em 1929 dos «Princípios Básicos para o reconhecimento das Grandes Lojas», obrigando estas a cumpri-los para serem reconhecidas como «Regulares». O seu oitavo ponto, sobre as "Grandes Lojas irregulares ou não reconhecidas”, ditava mesmo que “Existem algumas chamadas potências maçónicas que não respeitam estas normas, por exemplo, que não exigem de seus membros a crença num Ser Supremo, ou que encorajam seus membros a participar como tais em assuntos políticos. Estas potências não são reconhecidas pela Grande Loja Unida da Inglaterra como sendo maçonicamente regulares, e todo o contato maçónico com elas é proibido.”

Assim se “cavaram trincheiras” entre aquelas que se tornaram as duas principais tendências da maçonaria mundial, que traduzem rivalidades históricas e diferenças reais de abordagem espiritual, social e simbólica e que se dividem entre “regulares” e “liberais”. A primeira de matriz anglo-saxónica e de cariz mais conservador e a segunda representada sobretudo pelo GOdF e pela Federação Mista Internacional du Droit Humain, de cariz mais progressista e adogmático, na qual o GOL se enquadra[3].

Para além das razões ideológicas ou filosóficas (com a defesa de lojas femininas, mistas, a liberdade de credo e consciência, ou a defesa da república e o combate activo a regimes ditatoriais), esta divisão resulta de circunstâncias geopolíticas ligadas à influência respectiva da França e da Inglaterra no mundo desde o final do século XVIII e acentuada com a partilha da influência colonial em várias regiões do mundo, sabendo-se que a Maçonaria operava tanto para o poder colonial francês como para o do Império Britânico, como um traço de formação e de união com as elites locais. Para as obediências francesas as possessões na África, Indochina e do Pacífico. Para a GLUI a Índia, Oriente Médio e suas colónias africanas, especialmente a África do Sul. Assim foi delimitado o mapa da maçonaria mundial fora da Europa até à descolonização[4].

Com o fim dos impérios coloniais, desaparecido o interesse geo-político na utilização da Maçonaria como elemento facilitador da colaboração das classes dirigentes das ex-colónias, o conceito de «regularidade» sobrevive, assente no desconhecimento geral da sua origem e nos conflitos maçónicos internos em cada país, resultantes das diferentes abordagens políticas, sociais e simbólicas e da resistência à adopção dos princípios democráticos e republicanos defendidos pelo sector maçónico de origem francesa.

Por exemplo, sabemos hoje que a Revolução Francesa, a independência dos Estados Unidos, ou os movimentos de libertação na América do Sul, foram lideradas por muitos dos agora chamados Maçons «irregulares» ou «liberais».

Em 1989, a GLUI introduziu algumas alterações aos «Princípios Básicos» aprovados em 1929 e, apesar da timidez das alterações feitas, uma leitura comparativa entre os “Princípios” de 1929 e os de «1989», permitem retirar em especial duas conclusões importantes:

1ª - Embora continue a não reconhecer Obediências mistas ou Femininas, a proibição de reconhecimento permanece agora somente para as Lojas e os Maçons e não para a Grande Loja, o que representa um avanço significativo face à versão anterior; e

2ª - A obrigação da fé num Deus e na sua vontade revelada, é substituída pela simples crença num «Criador Supremo», outra abertura significativa no caminho da tolerância.

Deste modo, entreabriram-se portas para o futuro no relacionamento maçónico formal da GLUI com as Lojas e Obediências que caminharam no sentido de concretizar as duas grandes tendências da Ordem, nos séculos XX e XXI: a incorporação da Mulher nos trabalhos Maçónicos e a liberdade de consciência.

Hoje e na Europa, além dos seus dois pilares que são a França e a Bélgica, a Maçonaria liberal é representada por potências nacionais ligadas principalmente ao Grande Oriente de França e ao Droit Humain, à GLdF (Grande Loja de França) e à GLFP (Grande Loja Feminina de França), em cerca de quinze países europeus. Com exceção da Sérvia, as potências liberais desses países, a que se juntam a Turquia e Marrocos, constituíram há dois anos a Aliança Maçónica Europeia que agrupa 22 potências, incluindo o GOL[5].

Trata-se de representar junto às autoridades europeias uma força de diálogo e proposta baseada no secularismo e nos valores de escuta e tolerância da Maçonaria adogmática. Julgamos ser útil fazer-se ouvir por meio de lobbies junto a Bruxelas para não deixar este terreno às religiões e à extrema-direita. Atualmente, somos signatários da petição "Wake Up Europe" denunciando os abusos do regime autoritário de Viktor Orban na Hungria. Não nos opomos a que os “regulares” se juntem a nós, mas por enquanto eles estão ausentes neste terreno”, explica Henri Sylvestre, Grande Secretário para os Assuntos Externos do GODF, potência que, junto com o Grande Oriente da Bélgica e as federações do Droit Humain estiveram na origem deste projeto.

(Seria muito interessante termos melhor informação do nosso Conselho da Ordem sobre o desenvolvimento deste e de outros projetos de solidariedade internacional em que a N.’.A.’.O.’. esteja envolvida.)

Além disso, é hoje na América Latina que a Maçonaria liberal mais se desenvolve. Tradicionalmente ligada à emancipação dos povos da região através da memória de maçons ilustres que foram José Marti em Cuba, Giuseppe Garibaldi no Uruguai e Simon Bolívar, o libertador do subcontinente, a maçonaria liberal ali se desenvolve há bastante tempo uma fraternidade matizada de cultura latina e secularismo. 

Mas infelizmente e sem prejuízo de excelentes iniciativas, como a já referida Aliança Maçónica Europeia, tendentes a reforçar e a dar um sentido à “Cadeia de União Universal”, o facto é que a divisão entre “Regulares” e “Liberais” continua a verificar-se, sem sinais claros de melhoria. Aliás, apesar das alterações aos «Princípios Básicos» aprovados pela GLUI em 1989, esta tem em geral feito «letra morta» delas, continuando a reger-se, na prática, pelos princípios de 1929, assim dificultando o entendimento entre os dois ramos, cujo interesse maior justificaria antes acções no sentido de “reunir o que está disperso”.

Esta divisão continua, pois, a caracterizar a situação maçónica a nível mundial e a sua superação decidirá o futuro da Maçonaria nas próximas décadas. Ela justifica a desagregação das Obediências a nível nacional (em Portugal são já mais de 20) e reflete o forte declínio global verificado desde os anos 1960, sobretudo nas organizações de origem ou afiliação anglo-saxónica.

De facto, e em contraponto com a pujante, mas ainda insuficiente, recuperação da corrente «adogmática / liberal» após a 2ª Guerra Mundial, a dita Maçonaria Regular tem vindo a sofrer uma acelerada erosão. Segundo Jean-Moïse Braitberg[6], a Maçonaria americana e inglesa registou desde 1960 uma diminuição de cerca de 75% dos seus efectivos, passando de cerca de 8 para 2 milhões, dos quais quase metade são “inactivos”.  

Nos Estados Unidos da América do Norte, os maçons que encarnaram até a Segunda Guerra Mundial, as ideias fundamentais da democracia americana, gradualmente abandonaram qualquer pensamento social, em favor de uma visão conservadora, congelada, antiquada da sociedade americana. Brancos e negros têm uma maçonaria separada com base no princípio da segregação e o lugar da mulher ainda é um tabu na Maçonaria americana, onde lojas mistas estão ausentes e lojas femininas quase inexistem.

Reduzida a uma actividade de clube de serviço, a maçonaria americana, que teve quase quatro milhões de membros nos anos 1950 não conta hoje nem com metade disso, sendo o número real de membros activos de perto de duzentos mil, na sua maioria com idade superior a setenta anos.

Esta situação não é muito diferente no Reino Unido, onde a maçonaria está também em declínio constante. Embora os rituais sejam praticados de maneira mais séria do que nos EUA, as sessões obrigatórias têm lugar apenas uma vez a cada dois meses e a Maçonaria britânica, no seu todo muito conservadora e comprometida com a crença num deus revelado, está separada duma sociedade cada vez mais multicultural e cada vez menos religiosa.

A ausência de debates sociais em loja, o envelhecimento dos membros, a recusa absoluta das lojas mistas e a quase ausência da maçonaria feminina completam um quadro pouco dinâmico que se pode, com apenas alguns detalhes a mais ou a menos, transpor para a Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Canadá e Israel, países onde a maçonaria ligada à GLUI foi por muito tempo poderosa[7].


Em suma, a influência dos ideais maçónicos tem vindo a perder terreno em todo o mundo e Portugal não é excepção. O que exige de todos nós, homens e mulheres de livre pensamento, não desistirmos de desbastar a pedra bruta da intolerância, porque os sólidos anéis da cadeia que nos une devem ser mais importantes do que os formalismos ritualísticos que nos diferenciam.

Este não será um caminho fácil nem um futuro sem escolhos.

Num mundo em constante mudança, em que as relações sociais, económicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, uma época de “modernidade líquida” como lhe chama Zygmunt Bauman, a maçonaria precisa estar atenta e presente nessas mudanças, sob pena de não mais ser necessária aos seres humanos.

Na famosa sessão do convénio do GoDF em 13 de setembro de 1877, o pastor protestante Fréderic Desmond, membro do conselho da Ordem, colocou à votação a proposta do «princípio do agnosticismo» da Obediência, obtendo na altura uma ampla maioria de apoio. Entre outros pontos, no discurso em que sustentou o pedido, referiu[8]:

“[...] Pedimos a supressão desta fórmula, porque se é embaraçosa para o Veneralato e para as Lojas, não o é menos para os profanos que, animados de sincero desejo de formar parte da nossa grande e bela Instituição, generosa e progressista, vêm-se bloqueados por esta barreira dogmática que a sua consciência não lhes permite ultrapassar” e, mais à frente, exortou a que “[...] Deixemos aos teólogos o cuidado de discutir os dogmas, deixemos as igrejas autoritárias ao cuidado de formular as suas Syllabus, para que a Maçonaria se situe no que deve ser, uma instituição aberta a todos os progressos, a todas as ideias morais elevadas, a todas as inspirações amplas e liberais”.

Sigamos pois o seu exemplo, assegurando que a instituição mais universalista que existe, não exclua do seu seio, por meras razões doutrinárias de cariz dogmático, aqueles que têm todas as qualidades e condições para nela ingressarem e estão sinceramente comprometidos com a liberdade de consciência, o respeito pelos outros na sua diversidade e a vontade de pugnar pela melhoria do homem tanto nos seus aspectos morais como materiais.

E trabalhemos todos na busca da luz, trilhando os caminhos da aproximação e convergência para que a Maçonaria e as organizações que asseguram o seu funcionamento deixem de se digladiar e reforcem a Cadeia de União Universal, sem perda da sua identidade e origens, mas diluindo (e se possível eliminando) o estigma da «regularidade» até aqui imposto pelo mundo anglo-saxónico.

 Cândido, MM


[1] “Franc-Maçonnerie: Régularité e Reconnaisance – Histoire e Postures” – Roger Dachez – Éditions Confome nº 5 - Paris 

[2]A propósito do(s) conceito(s) de "Regularidade" na Maçonaria”, Out2016 – Salvador Allende, MM

[3]A polémica da Regularidade - Origens e Evolução”, Mar2015 – Salvador Allende, MM

[4]Regulares Ingleses contra Liberais Franceses – Um panorama atualizado da Maçonaria Mundial em 2016” – Jean-Moïse Braitberg

[5] Jean-Moïse Braitberg

[6] Idém

[7] Idém

[8] Citações do Desmond retiradas de : “Dictionnaire de la Franc-Maçonnerie” -  Coord. Daniel Ligou – èditions PUF , 6ª ed. – Paris (2005)

 


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