Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

19 de janeiro de 2021

Modernos versus Antigos na conflitualidade Maçónica Inglesa no Século XVIII

 


Modernos versus  Antigos na conflitualidade Maçónica Inglesa no Século XVIII - o que Consta e a Realidade

 I – O Século XVIII e o desenvolvimento do conflito

O grande conflito que sacudiu a Maçonaria inglesa ao longo de cerca de 60 anos (de 1751 até 1813), é normalmente designado como o diferendo entre "Antigos" e "Modernos”. Não é por acaso que este período e este assunto têm sido estudados, até ao primeiro quartil do século XX,  como um facto histórico interno à própria Inglaterra. Contudo, as suas implicações foram profundas para o desenvolvimento da Maçonaria a nível inglês, europeu e mundial, através da expansão do imperialismo Britânico, em que a Maçonaria óbviamente assumiu um papel importante, quer na exportação de quadros (militares e outros), quer posteriormente na formação dos novos quadros coloniais. Para perceber a evolução da Maçonaria especulativa (em geral) e da inglesa em particular, é essencial conhecer as etapas  do confronto entre "Modernos" e "Antigos". Resumem-se classicamente da seguinte forma:   em  Inglaterra até 1750  a Maçonaria «oficial» era unida e uniforme, já que na primeira metade do século XVIII existia uma única organização maçónica dominante,  a Grande Loja de Londres (G:.L:.L:.), considerada vulgarmente a partir de 1717, o berço fundacional da moderna Maçonaria, dado que  Gr. Loja de York  e algumas poucas lojas autónomas foram progressivamente reduzindo a sua actividade, apesar de contestarem e não reconhecerem  oficialmente a existência daquela. No entanto a história dos primeiros tempos da  Maçonaria  inglesa  é mais complexa do que na maior parte das obras e  textos  nos foi transmitido até ao século passado, graças ao aprofundamento da pesquisa e aos avanços registados nas investigações sobre este período. É claro que a história da Maçonaria Inglesa não se limita "stricto sensu"  à Inglaterra. Na verdade é a história duma Maçonaria que está exposta a vários tipos de influências, desde as internas, de base britânica, mas também às componentes externas, sobretudo as influências escocesas e irlandesas. É no segundo terço do século XVIII, que se constitui em Inglaterra um sistema maçónico, produto de todas estas influências e que, evidentemente, também teve em seu redor influências doutras «paragens», especialmente de alguns «ventos» reenviados a partir de França. Ao renovar a abordagem sobre este período essencial, devemos aprofundá-lo como desenvolvimento Inglês, mas de recorte irlandês, contribuindo decididamente para deslocar e influenciar a Maçonaria continental,  sobretudo as Maçonaria francesa e alemã. Quase 100 anos mais tarde após a fundação «oficial» da G:.L:.L:., a  Grande Loja Unida de Inglaterra (G:.L:.U:.I:.) surge  da fusão entre «Modernos» e «Antigos», em 1813. Desde logo e a  pretexto de se auto-designar herdeira e continuadora da Grande Loja de Londres (G:.L:.L:.), obviamente não tem interesse em fazer emergir o diferendo que opunha as duas anteriores G:.L:.s  para o exterior do estrito âmbito inglês, passando posteriormente a utilizar o manto diáfano da «Regularidade», que  passou a atribuir “dogmaticamente” às Obediências (predominantemente de base anglo-saxónica, mas não só) que se vieram colocar perante a sua autoridade, por forma a  estender o seu domínio à escala mundial. Como bem evidenciou Alain Bernheim [5], tanto a Maçonaria Inglesa como a francesa foram, no que respeita aos graus azuis, substancialmente idênticas pelo menos até 1750,  altura do aparecimento dos "Antigos". Philip Crossle, talvez um dos maiores historiadores da Maçonaria irlandesa, a partir de 1928  começou a chamar a atenção para as especificidades desta Maçonaria e especialmente, para a existência de um sistema composto por 3 Graus, anterior ao sistema revelado (não oficialmente) em Londres por Samuel Prichard,  em 1730.  Este sistema era dotado dum conteúdo diferente, ao compreender um novo grau, denominado de “Arco Real”. Ao apresentar o seu trabalho de investigação,  Crossle estava implicitamente a levantar também uma questão complexa, a do aparecimento e influência dos Altos Graus na história geral da Maçonaria.

II – Inglaterra - dos «Modernos» aos «Antigos»

Historicamente recordemos  que a afirmação de que a G:.L:.L:. constitui o despontar da nova Maçonaria especulativa é inexacta.  Nada permite fundamentar, face à sequência temporal e histórica actualmente conhecida,  que a maçonaria especulativa tenha nascido  (de parto quase «espontâneo») em 1717. De facto esta data é quase irrelevante no longo processo de desenvolvimento do movimento, como referem  Knoop e Jones [2].  Contudo a nova forma de organização instituida pela G.L.L., com uma estrutura de coordenação centralizada,  em que a cúpula é ocupada por um Grão-Mestre, constitui uma inovação, face à organização predominante até à altura, de raiz mais escocesa e centrada essencialmente nas Lojas. Anderson, segundo D. Ligou [2] terá sido encarregue pelo duque de Montagu, em Setembro de 1721, da redação dum texto de interligação entre os «Antigos Deveres / Old Charges» com as lendas bíblicas, adaptando as velhas obrigações corporativistas à nova situação, no sentido de efectuar uma síntese com as exigências operativas tradicionais, desprovidas de sentido face à nova realidade existente à data,  e de que vieram a resultar as primeiras Constituições da G.L.L. - 1723. Esta situação traduz também, agora no âmbito da Maçonaria «oficial» nascente, as  lutas intestinas entre o catolicismo e as diferentes correntes protestantes, corporizadas pelo choque entre a tradição operativa que se pretendia adaptar, face à abertura aos novos valores da «moral e religião natural»,  transmitidos pelos fundadores da Royal Society (nascida em 1666), parte dos quais eram Maçons. A evolução do litígio posterior foi polarizada a partir do  final do 2º quartil do século XVIII, sobretudo por  Lawrence Dermott (e outros irlandeses), levando ao levantamento de colunas a partir  de 1751/3, duma nova Grande Loja (já após o falecimento de Désaguliers e Anderson). Esta nova organização,   denominada Grande Loja dos “Antigos Maçons” (G:. L:. A:.), ou dos «Antigos», passará desde logo, a rivalizar com a G.L.L. pela disputa e controlo da Maçonaria inglesa. No entanto tal não invalida que  a Grande Loja de 1717 seja  reconhecida  como a primeira "Grande Loja" do Mundo. A Grande Loja dos Antigos  rejeitava, por diversos motivos, parte dos rituais e da Constituição  da G:.L:.L:. de 1723.  A Irlanda e a Escócia constituíram  também as suas Grandes Lojas,  respectivamente em 1725/8 e 1735.  A. Bernheim [5]  salienta  que estas só reconheceram efectivamente a Grande Loja dos «Antigos», tendo até então,  um relacionamento muito limitado ou quase inexistente com a G:.L:.L:. .  Em  resultado do acordo bilateral entre «Antigos» e  irlandeses, nenhum Maçom dos «Modernos» se podia incorporar numa loja Irlandesa sem ser “re-iniciado e instruído” no ritual dos «Antigos» (o chamado «ancient working»), situação que só se veio a alterar após o processo de  constituição da G.L.U.I., em 1813. Quando da constituição da sua G:.L:., os «Antigos»   alteraram as Constituições da G:.L:.L:. de 1738, adaptando-as às suas necessidades. Modificaram substancialmente o primeiro capítulo das «Obrigações», por forma a dar-lhe o formato religioso que actualmente conhecemos, desaparecendo o espírito de tolerância que emergia do texto de 1723 (nomeadamente: “Um Maçom está obrigado a observar a lei moral,  a compreender a Arte e não será jamais um ateu estúpido nem um libertino irreligioso...”) que nada indiciava ou sugeria a obrigação na «crença num Deus revelado» como fórmula  administrativa numa Loja. Os «Antigos», argumentavam que os «Modernos»  interpretavam de uma forma laxista os ensinamentos cristãos, repudiando os dogmas e dando preferência à razão, relativamente à Bíblia e às tradições, privilegiando a moral face à doutrina e evidenciando uma ampla tolerância em matéria religiosa. A Grande Loja de Londres («Modernos»)   publicou as suas Constituições em 1723 /38/ 56 /67 e 1774, correspondendo esta data à última versão publicada.  Até ao final do século XIX,  foi  perfilhada pelos principais historiadores maçónicos da época (Gould, Hugham, etc.), a teoria de que que a Grande Loja do "Antigos" era proveniente duma cisão da Grande Loja dos Modernos (G.L.L.).  Segundo esta tese, um certo número de lojas teriam saído da Grande Loja de Londres e criaram uma nova obediência, por recusarem a inovações aprovadas e introduzidas pela G.L.L.., desde o início.  Esta tese era evidentemente defendida pelos "Antigos", sobremaneira desde 1756,  com a publicação do seu livro das Constituições, o conhecido  “Ahiman Rezon” da autoria de Laurence Dermott.   Será Henri Sadler, no seu livro "In Masonic Facts and Fictions" [6], que demonstrará finalmente em 1887, que a fundação de 1751 não é o resultado de um cisma, já que "essa Grande Loja é constituida de raiz”, tendo por isso uma origem distinta da Grande Loja de Londres. Na realidade, do que estamos a falar é de uma grande Comissão que aparece em 1751, tomando o título de “Grand Lodge” a partir de 1753, quando consegue ter um irmão "nobre" para presidi-la como Grão-Mestre [6] e [8].  Os seus membros fundadores foram irlandeses  emigrados em Inglaterra,  que provavelmente tiveram dificuldades em ser recebidos pelas lojas inglesas,  quer pelas diferenças face aos rituais que praticavam, quer também pelo facto da sua condição social,  tornando difícil, e até quase impossível, uma integração na  G:.L:.L:. [6].  Ao fundarem a sua própria Grande Loja puderam praticar os rituais que trouxeram da Irlanda e que tinham proclamado como  mais antigos, face aos da  Maçonaria inglesa. A controversa classificação de 'Antigos "atribuída a uma Grande Loja  que é 34 anos mais jovem do que a primitiva, é curiosa e até um pouco injusta. Todavia não se devem perder de vista ou esquecer algumas questões fundamentais subjacentes ao diferendo, como iremos referir.

III – O que diferencia  efectivamente as 2 Grandes Lojas?

Entre as diferenças rituais e procedimentais, eram estas realmente mais antigas e, a partir dessa perspectiva, devemo-nos interrogar: quando, onde, como e porquê, se deu este passo dos Antigos contra os Modernos? As diferenças ritualísticas principais, reclamadas pelos «Antigos» e que segundo eles traduziam essencialmente  a defesa da chamada antiguidade de raiz operativa transmitida pelas “Old Charges” (Antigos Deveres) , eram as seguintes:

- Abandono das orações nas cerimónias maçónicas;

- Abandono da celebração das festas de S. João;

- Inversão da ordem das palavras sagradas,

- Critica forte da inexistência quer da “cerimónia de instalação secreta do Venerável”, que reputavam de essencial, quer do grau do “Arco Real”. 

Em resumo e segundo salienta  Philip Crossle em “The Irish Rito” [5], tal deve-se à história da Maçonaria Irlandesa ser diferente da Inglesa e profundamente original, já que terá evoluido por conta própria, sensivelmente a partir de  1680,   independentemente das ligações e raízes escocesas e inglesas. Estas questões não receberam ainda, até hoje,  respostas satisfatórias, embora possam existir formas de esclarecimento fornecidas pelo  estudo cuidado da Maçonaria na Irlanda. O conhecimento da maçonaria irlandesa passa obrigatóriamente pelo estudo da obra fundamental de John H. Lepper e Philipp Crossle, “História da Grande Loja dos Maçons Antigos e Aceitos da Irlanda”, Dublin, 1925, reeditado em 1987, [7] e [8]. Neste trabalho, os autores indicam existirem provas documentais da existência duma maçonaria especulativa na Irlanda, que surge também  documentada na Inglaterra.  Históricamente pode-se comprovar que na Irlanda existia já uma Maç:. especulativa no último quartil do século XVII, através do discurso «Terrae Filius», datado de 1688, no Trinity College de Dublin.  Nos arquivos do Trinity College, existe um documento que menciona a existência de uma loja de maçons em 1688 (principalmente estudantes).   Em 1711, cerca de seis anos antes da fundação da G:.L:.L:.,  surge em Dublin  o manuscrito do “Trinity College, Dublín” ,  especificando a palavra de Mestre, para além de  definir uma loja perfeita como sendo constituída por “três mestres, três companheiros e três aprendizes”, e também os sinais e toques relativos aos três graus. A data é comprovada por  Knoop & Jones [3] quando afirmam que este manuscrito é o documento mais antigo em que se regista  o conhecimento maçónico desenvolvido em três graus (“trigradal system”) [7]. Em 1730 são finalmente publicadas as Constituições da G:.L:. da Irlanda, denominadas «Constituições de Pennel», muito semelhantes ao texto de Anderson, sendo a diferença mais importante o facto de mencionar já o grau de Mestre, o que não é ainda o caso da Constituição inglesa de 1723 (atribuída a Anderson). À luz desses documentos, parece claro que a Maçonaria irlandesa é mais antiga e diferente da Maçonaria inglesa da primeira metade do século XVIII, comprovando-se que todas as manifestações conhecidas da primeira Maçonaria irlandesa são notáveis, quer pela data quer pelo conteúdo. Em 1778,  numa edição das Constituições da G::L:.A:., Laurence Dermott emite uma lista de “reclamações” que os "Antigos" dirigem aos "Modernos".  Dessas sómente a negligência ou ignorância da instalação secreta dos Veneráveis Mestres, que no sistema dos "Ancients" é capital, abrindo o caminho para o «Arco Real», é credível. Na verdade, a instalação era desconhecida em Inglaterra - pelo menos não existe nenhum testemunho documental antes de 1760 e da divulgação dos "Threee Distinct Knocks". Para além desta acusação, as outras queixas carecem singularmente de fundamentos documentais e são, elas próprias, contrárias a todos os documentos que se conhecem. Em suma, se os "Antigos" se agarram ao atestado de antiguidade original, quem melhor pode definir a originalidade real deles próprios em relação aos "Modernos" senão a:

1. A sua antiguidade efectiva;

2. A contribuição da instalação secreta do Venerável e do grau de «Arco Real».

Phillip Crossle, no citado artigo  (“The Irish Rite” [7] e [8]) propõe uma interpretação subtil da hierarquia dos graus na Irlanda até 1730. Nas “Constituições de Pennel”, os 3 graus:  Aprendiz, Companheiro, Mestre,  não corresponderiam aos três graus homónimos da Maçonaria inglesa,  tal como são definidas na divulgação de Prichard (1730) e mais tarde (e oficialmente) na Constituição de 1738.  De acordo com a teoria de Crossle, pode ser estabelecida a seguinte tabela de correspondência:

Irlanda                                                            Inglaterra

Aprendiz                                        Aprendiz e Companheiro

Companheiro Mestre

Mestre = Instalação e «Arco Real»                        ------------

Pela análise deste artigo, podemos agora  reanalisar o diferendo "Modernos" / "Antigos", a partir duma outra perspectiva e também refazer as perguntas relativas às origens e antiguidade da Maçonaria dos “Antigos” e das fontes desta Maçonaria.

IV – Fundamentos das divergências

A análise e debate dos pontos seguintes, é essencial quer para uma melhor compreensão deste período.

.1 - O aspecto sociológico das Maçonarias inglesas e  irlandesas.

Embora pareça que os "Antigos" são pequenos grupos que praticam um "técnica ritual" mais rigorosa do que os "Modernos", a uniformização das duas Grandes Lojas levará a que esta se constitua como uma questão muito avançada no início do século XIX,  precisamente pela compreensão, até ao nível da Grã-Mestria, do que poderia explicar a união de 1813.  Por essa altura a  origem irlandesa dos "Antigos" tinha-se atenuado fortemente e  quase desaparecido. No entanto não resulta daqui que possamos concluir pela atenuação do papel e preponderância dos «Ancients» na consolidação e estruturação ritualística e procedimental da recém-formada G:.L:.U:.I:..

.2 - As relações entre Irlanda e Escócia.

As relações entre estes dois países são antigas. De salientar que o povo primitivo da Irlanda são os "Scots".  Por outro lado, na época das duas grandes Lojas rivais inglesas e da Grande Loja da Escócia, esta manteve fortes relações de amizade com os  "Antigos" e com a Grande Loja da Irlanda. Talvez por isso tenha sido o «Arco Real» implementado rápida e facilmente na Escócia. Como já referimos de início, as Grandes Lojas da Irlanda e da Escócia mantinham relações privilegiadas com a G:.L:.A:. sendo praticamente inexistentes as com a G:.L:.L:..

.3 - Laurence Dermott

Laurence Dermott é a  figura emblemática dos Antigos. Personagem pouco conhecida e que alguns pensam que terá sido Católico [7] e [8],  mas certo é que já seria maçom quando chega a Inglaterra. Como  irlandês, é provável que o seu acolhimento nas oficinas inglesas fosse um pouco difícil, quer pelos usos ritualísticos quer pelo conteúdo dos graus, que eram diferentes no conjunto e diferentes em relação ao que tinha conhecido e recebido na Irlanda. 

Todo este  processo fará crescer  nele o objectivo da polémica com os  Modernos, cujo testemunho é o de que o «Arco Real» não é, para os Antigos, um alto grau [8] sendo, de acordo com a famosa fórmula de Dermott, "a raiz, o coração e a essência da Maçonaria". A hipótese de Crossle  vai nesse sentido: o primeiro sistema maçónico de 3 graus é irlandês e contém o «Arco Real» (ver correspondência no ponto anterior). Assim, à luz da história maçónica irlandesa, as afirmações dos Antigos tomam mais peso:  a sua Maçonaria era  talvez a verdadeiramente "Antiga" e o Arco Real é parte do Ofício. O diferendo  Antigos / Modernos surge assim como um choque de duas culturas e duas concepções diferentes de maçonaria, para além de potenciado pelos óbvios problemas de/entre pessoas (tão comuns em casos idênticos, no historial maçónico….). A Grande Loja da Irlanda, desde o início, tem excelentes relações da G:.L:.U:.I:..  As 2 Grandes Lojas (bem como a da Escócia) vieram a adoptar, já no Séc.XX, posições comuns sobre as questões internacionais (“Aims and Relationships of the Craft” – Home Grand Lodges - Inglaterra , Escócia e Irlanda - 1949). No entanto é curioso verificar que a Grande Loja da Irlanda, que tem autoridade sobre toda a ilha é  composta  principalmente de protestantes e anglicanos, num país maioritária e profundamente católico.  Pelo exposto, o diferendo entre "Antigos" e  "Modernos" (1751-3 / 1813) deve ter em linha de conta a história da Maçonaria Irlandesa, se o pretendermos explicar correctamente. Dois autores importantes, Heron Lepper e Crossle [7]e [8] ajudam-nos neste processo.  Podemos assim concluir que, de todas as censuras direccionadas pelos Antigos aos Modernos, duas delas necessitam de uma análise aprofundada: 

1) - a antiguidade real  da ritualística e procedimentos  destas duas Grandes Lojas, e 

2) - a pergunta sobre a instalação secreta, e do Arco Real (este último também implica implicitamente efectuar a pergunta sobre os altos graus maçónicos). 

Sendo as origens da Maçonaria na Irlanda relativamente obscuras, cumpre colocar a seguinte questão:  Poderia ser importada da Inglaterra, em finais do século XVII, na década de 1680??. A Irlanda era então uma colónia britânica. Esta Maçonaria irlandesa seria aquela anglo-irlandesa que temos vindo a referir e que tinha formado toda uma classe aristocrática que dominava a Irlanda?   É mais ou menos evidente que esta aristocracia estava separada não só do resto do país, no plano económico e social, mas também e sobretudo no plano religioso, uma vez que eram anglicanos enquanto os irlandeses autóctones eram (e continuam a ser)  profundamente católicos. Existiam pois em 1730, tanto na Inglaterra como na Irlanda, sistemas maçónicos em 3 graus, embora pareça que estes sistemas não tenham a mesma antiguidade e não resultem da  mesma realidade. Como é que está então constituído na Irlanda o sistema de graus?  Fazemos referência ao já referido  artigo  de  Philipp Crossle, “The Irish Rite” [7] , também citado por Bernheim e R. Dachez [8]. Convém salientar desde já, que "as ilhas britânicas" são compostas de 3 países muito diferentes e em grande parte das vezes opostos: Inglaterra, Escócia e Irlanda. Há espaço também para entender que há uma distinção real entre as maçonarias desses países.   A Maçonaria obediencial aparece em Inglaterra por volta de 1717-1723 e na Irlanda em 1725, mas, aparentemente, de forma bastante diferente. Deve observar-se o facto de que essa Maçonaria irlandesa, comprovada e documentada pontualmente desde 1688, embora provavelmente de origem Inglesa, teria evoluído por sua própria conta, independentemente da Inglaterra. Na década de 1720, é provável que as maçonarias  Inglesa e irlandesa  sejam bastante diferentes, apesar de antiguidade semelhante, e também se poderia supor que os irlandeses mantiveram os usos dos Ingleses, que eles próprios  tinham alterado ou perdido (e aqui entroncamos de novo na «criatividade» de Anderson / Désaguliers  relativamente ao texto das Constituições de 1723…) [1], o que corresponderia a que houvesse uma velha maçonaria inglesa, derivada da aposta irlandesa. É aqui que se poderia chegar uma certa reivindicação de antiguidade, desde sempre proclamada pela Grande Loja dos «Antigos». No entanto as Constituições de 1723 (G:.L:.L:.), definiam uma Maçonaria de 2 graus, que são em 1730 acrescidos pelo grau de Mestre,  pela primeira vez na Inglaterra,  através da publicação de Samuel Prichard  («The Masonry Dissected»). No entanto sómente  em 1738 o grau de Mestre será formalizado, com a segunda edição das Constituições.  Contudo em 1730 (como já referido), a Grande Loja da Irlanda publica as Constituições de Pennell, em que pela primeira vez  e de modo oficial, é descrito explicitamente um sistema em 3 graus: Aprendiz, Companheiro e Mestre (ver Philipp Crossle).  Além disso deixa expresso a existência dum diácono, um vigilante, um Mestre eleito,  que tinham já sido "Companheiros" e poderiam conferir o grau de "Mestre" após a respectiva instalação. Para explicar essas “esquisitices”, e isso pressupõe toda a tese de Philipp Crossle, precisamos de compreender que as palavras "Aprendiz", "Companheiro" e "Mestre" não designam nem têm o mesmo significado, nessa época, na Irlanda e na Inglaterra, pelo que não podemos colocar no mesmo plano o texto oficial das Constituições de Pennell e a divulgação de Prichard . Em 1730 na Irlanda, o grau de Aprendiz corresponderia ao conteúdo dos graus de Aprendiz e de Companheiro, em Inglaterra o grau de Companheiro [7] corresponderia a um conteúdo semelhante (mas talvez sem a lenda) ao futuro grau de Mestre [8] e o grau de Mestre que é sempre descrito na Irlanda como essencial, será conhecido sob a designação de "Arco Real", mais tarde. Isso justificaria a queixa principal que os «Antigos» (irlandeses) endereçavam aos Modernos (ingleses), de que estes últimos desconheciam o Arco Real, e explicaria também  que a introdução deste grau em Inglaterra tenha aparecido como um 4º Grau. Deste modo a  tese de Crossle  encaixa-se perfeitamente no que sabemos sobre a origem dos graus de finais do século, na Inglaterra, Escócia e Irlanda. 

V – A Constituição da G.L.U.I. (Grande Loja Unida de Inglaterra) e as suas consequências

As ondas de choque da Revolução francesa desencadeadas do lado de lá da Mancha terão sido a  envolvente social e política determinantes para a união das duas Grandes Lojas (R .Dachez, A. Bernheim [2],[5]e[8]), mantendo obviamente o controlo firme da casa Real sobre a nova Instituição, que surge assim quase 100 anos após a fundação da G:. L:. de Londres e 60 depois da fundação da G:.L:. dos «Antigos». O processo foi facilitado pelo facto de dois elementos da casa real (duques de Kent e de Sussex) serem na altura os dirigentes máximos das 2 Grandes Lojas, vindo este último a ser o primeiro G:.M:. da recém-criada  G:.L:.U:.I:..  Na sequência da união das duas Grandes Lojas (1813), foi estratégicamente delineado e imposto pela G:.L:.U:.I:. um objectivo de supremacia absoluta na condução da Maçonaria mundial,  facto nunca registado na Maçonaria até  essa data,  suportado  na «meia-verdade» de se reclamar como herdeira directa da G:.L:.L:. (o que vimos não ser exacto) e desta como origem da maçonaria especulativa.  Desde essa altura, os ingleses passam a desqualificar a Maçonaria continental, especialmente as que consideram a  maçonaria «política» francesa e a aristocrática alemã, por  não se sujeitarem aos seus interesses e ditames, não capitulando perante os imperiais interesses ingleses (óbviamente que esta pretensão só pode ser acatada por aqueles que têm particular interesse nesse tipo de subordinação). Como curiosidade, recorde-se que em 1799 o então primeiro-ministro inglês William Pitt fez aprovar a lei das «sociedades ilegais» (que nos recorda tristemente algumas práticas do passado recente,  nomeadamente o período negro do fascismo do século XX....). Esta medida foi uma consequência óbvia dos receios provocados nas classes dirigentes (nobreza e burguesia) britânicas, pelo desenrolar e consequências da revolução francesa. Numa primeira fase os «Modernos» ficaram isentos, mas finalmente tiveram que passar pelo crivo, e juntamente com o «Antigos», registaram-se perante as autoridades. Em resumo o detonador que acelerou a formação da G.L.U.I:. foi essencialmente o receio de que as ondas de choque da Revolução francesa transpusessem o Canal da Mancha e que os maçons ingleses pudessem ser contaminados pelos «irreverentes e revolucionários» maçons franceses, desestabilizando as estabelecidas e conservadoras classes dominantes (nobreza, clero anglicano e burguesia). Com a unificação das duas G:.L:.s inglesas,  a Bíblia passar a estar presente solenemente em todas as sessões em loja, consolidando as pretensões eclesiásticas do anglicanismo na Maçonaria inglesa. Como consequência as novas versões, se comparadas com as  anteriores Constituições de Anderson,  passaram a  adoptar a referência a “Deus e ao Grande Arquitecto do Universo (GADU)”, que não existiam anteriormente. Sob a batuta da G:.L:.U:.I:., em 1844,  é introduzida uma outra alteração significativa, traduzindo  toda uma nova interpretação da Constituição maçónica original (1723).  O objectivo essencial consistiu em eliminar as anteriores divergências entre  «Antigos» e «Modernos»,  que passam a ser protagonizadas a partir de 1877,  pela G:.L:.U:.I:. e pelo Grande Oriente de França (GOdF),  agora com o canal da Mancha de permeio.  Este conflito ultrapassou as fronteiras naturais da Inglaterra e por via da expansão do império britânico, propagou-se também à Nova Inglaterra (aqui com menos visibilidade, já que a corrente anglo-saxónica era absolutamente predominante), bem como  à América Central e do Sul. 

VI - Concluindo

A história  da constituição da G:.L:.U:.I:. em 1813,  evidencia a preponderância dos «Antigos»,  com a aprovação dos principais pontos e questões que sempre defenderam. No entanto e apesar dessa preponderância,  na sequência dum compromisso elaborado a partir de  1760,  este últimos vieram contudo a adoptar, sem grandes problemas, o sistema Inglês,  deixando cair o «Arco Real» para uma posição secundária. Em 1835,  na célebre  Loja de Reconciliação (“Reconciliation Lodge”), que preparou a fusão e foi «a grande empresa de descristianização da maçonaria Inglesa», sob a direcção do duque de Sussex, primeiro Grão-Mestre da G:.L:.U:.I:, .realizou-se um certo   "banho / limpeza", passando o “Arco Real” a representar um grau vetero-testamentário,  do mesmo modo que tinha sido feito para os primeiros 3 graus entre 1813 e 1816. A origem do “Arco Real” é misteriosa. É de origem Inglesa? É  importado de seguida para a Irlanda, no final do XVII,  sendo depois "esquecido" pelos ingleses, ou será, pelo contrário de origem puramente irlandesa? A inexistência de documentos comprovativos não permite responder a esta pergunta, embora a segunda hipótese pareça mais provável. O que é certo é que este  grau era profundamente cristão. Tentámos focar nos pontos anteriores as origens e as principais divergências que estiveram na base do conflito fundacional da maçonaria inglesa. Estas divergências, pelas suas consequências e desenvolvimentos, extrapolaram o limite do território britânico,  daí não podermos concordar com a posição tradicional seguida pela G:.L:.U:.I:., ao pretender restringir arbitrária e históricamente esta questão ao estrito âmbito inglês, ao mesmo tempo que se proclama como herdeira e continuadora da G:.L:.L:..  Se o notável trabalho de pesquisa de Phillip Crossle permitiu lançar novas luzes e caminhos para uma correcta compreensão histórica deste diferendo, ainda subsistem vários pontos de penumbra. Enquanto Maçons, não devemos descurar a pesquisa, continuando a limar as arestas da história, com a mesma perseverança com que o fazemos na transformação da pedra bruta, até atingir a beleza e o esplendor da pedra polida. Temos a obrigação e o dever de não só estar atentos, quer quanto às etapas fundamentais da nossa história e evolução, quer principalmente quanto ao futuro.  É um facto inegável que desde o século XVIII, a Maçonaria «regular» não participou nos enormes acontecimentos sociais e políticos de que a Ordem se orgulha. Na maior parte dos casos as G:.L:.s “regulares” actuaram persistentemente em prol da defesa do «establishment» e dos interesses do império britânico. Em nossa opinião, a Maçonaria não poderá (muito pelo contrário) excluir do seu seio aqueles que têm as qualidades e condições para nela ingressarem, pelo simples facto de não “acreditarem num Deus revelado” (e aqui estamos conformes à versão original das Constituições de Anderson, que também não o exigiam, como referimos de início…). É perfeitamente natural que estes «homens livres e de bons costumes» tenham as maiores reservas (ou até se recusem) em  efectuar juramentos sob «o livro sagrado».  A exclusão indevida e a divisão não potenciam a Força que, mais do que nunca, necessitamos....Desde o início o GOdF («Grande Oriente de França»), reclamando a continuidade da GLdF (“Grande Loja de França), proclama-se como herdeiro das Constituições de 1723, no pressuposto de “que para se estabelecer uma comunidade com laços fraternais entre todos os homens, não se pode impor nenhuma crença, ao mesmo tempo que a qualidade maçónica de qualquer membro não pode obrigar à adesão a um dogma determinado” [9],  precisamente o contrário do que obriga a G::L:.U:.I:. (e exigiam os «Antigos»)….Se os Maçons se dedicassem a conhecer melhor as suas raízes e  evolução, no fundo a história da Ordem à qual livremente aderiram, seria talvez mais fácil interiorizarem que o que é por vezes apresentado como a aplicação de princípios imutáveis, não representa na realidade, mais do que a  tradução duma decisão tomada em momentos historicamente determinados, por pura necessidade ou oportunidade. O caminho é difícil, mas temos esperança que, face ao rápido  desenvolvimento da sociedade e da tecnologia nos últimos decénios,  os homens e mulheres de livre pensamento não desistirão de desbastar a pedra bruta de algum fundamentalismo «doutrinal», atenuando progressivamente as arestas do dogmatismo anglo-saxónico (ou doutros) ainda reinantes, sem desrespeitarem a Tradição. Os sólidos anéis da cadeia que nos une, devem ser mais importantes do que  alguns formalismos concepto-ritualísticos, algo anquilosados e actualmente pouco consistentes com o tempo em que vivemos (a diminuição acentuada dos efectivos e a alta média etária, principalmente das Obediências anglo-saxónicas,  são prova inequívoca do que acabámos de afirmar).  Finalizando, esperamos que as questões levantadas por estas humildes notas possam contribuir para um melhor esclarecimento  desta fase, bem como ao incentivo  da aprendizagem individual, tarefa que qualquer Maçom, independentemente do grau em que se situe, nunca deverá  dar por concluída,  no caminho permanente  em direcção à Luz e ao Conhecimento.   

Salvador Allende,     M:. M:.

Bibliografia:   

1) - “Anderson’s Constitutions for Freemasons-1723 / The Wilson Manuscript”

2) – “Les Origines de la Maçonnerie Spéculative” – Roger Dachez, revista “Renaissance Traditionnelle - RT”

3) – “The Genesis of Freemasonry” – Douglas Knoop e G.P. Jones” – Manchester University Press – 1947

4) – “Historia de la Masoneria” – Ivan Herrera-Michel 

5) – “Franc-Maçonnerie: Régularité e Reconnaisance – Histoire e Postures” – Roger Dachez – Éditions Confome nº 5 - Paris 

6) – “Dictionnaire de la Franc-Maçonnerie” -  Coord. Daniel Ligou – èditions PUF , 6ª ed. – Paris (2005)

7) – “De les «Ancients» à la Grand Loge Unie d´Angleterre (GLUA)” – Roger Dachez – Revista «RT» (tradução para espanhol por Victor Guerra)

8) – “Une certaine idée de la Franc-Maçonnerie” - Alain Bernheim – Éditions Dervy – Paris (2008)


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