Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

4 de junho de 2020

A barriga vazia nunca foi boa conselheira!


Com a devida vénia se transcreve este artigo de Mário Jorge Neves:
A barriga vazia nunca foi boa conselheira!

Esta pandemia está a abanar as sociedades, acelerando uma crise que já existia e onde os sintomas de recessão eram claros, nomeadamente a nível do Estados Unidos e da União Europeia.
A crise financeira iniciada em 2008 foi um forte alerta que o sistema neoliberal imperante procurou dissimular porque colocava em causa a sua agressiva cruzada privatizadora e mercantilista.
Os países que estão hoje a sofrer maior impacto em números de infectados e de perda de vidas humanas são, no chamado mundo ocidental, aqueles que possuem maiores desigualdades económico-sociais, onde as políticas sociais e públicas sofreram maiores cortes de investimento e as acções predadoras do neoliberalismo mais destruição semearam.
Estas últimas décadas de hegemonia neoliberal têm servido para impor uma ditadura financeira nas nossas sociedades, para instaurar uma propaganda de “guerra” e para, de uma forma subtil, conduzir um processo de fascização progressiva de diversos espaços da vida social e política.
Um dos aspectos mais marcantes dessa propaganda é a criação de um contexto de alienação e de perda da consciência colectiva.
Tem sido feito crer aos cidadãos que não mandam nada, que nada podem fazer contra o mercado e que até o seu voto soberano não resolve nada.
Assim, quando os cidadãos se deixam submeter às leis do mercado e as reproduzem na vida do seu dia-a-dia, isso é alienação.

Perante a manifesta incapacidade dos países mais desenvolvidos em conseguirem gerir esta pandemia e as consequências que ela está a ter nas suas economias e nas vidas dos seus cidadãos, têm surgido múltiplas análises nos meios de comunicação electrónica que consideram estarmos perante os primórdios de uma nova era pós pandemia que irá colocar, inclusive, termo ao neoliberalismo.
A propaganda ideológica neoliberal que tem socavado importantes alicerces do Estado Democrático e de Direito só poderia conduzir a prazo, como estamos dramaticamente a verificar, a lideranças políticas e governativas inimigas dos direitos sociais e humanos e a uma preocupante ascensão da extrema-direita.
Países que elegem Trumps, Bolsonaros e afins, são países cujas sociedades entraram numa fase acelerada de decomposição social, política e económica.
Se há essas análises optimistas quanto a uma evolução progressista das sociedades mais desenvolvidas, importa ter bem presente que a experiência histórica mostra que a ascensão da extrema-direita se produz em situações mais duradoras de recessão económica.
As políticas de austeridade, a deterioração das políticas sociais, a maior polarização social e política, bem como o aumento do desemprego e da pobreza estão altamente correlacionadas com a ascensão da extrema-direita.
Há que lembrar o caso da ascensão ao Poder do partido nazi alemão e do Hitler em que depois das políticas de grandes cortes sociais entre 1930/1932 esse partido passou de 2% em 1928 para quase 45% em 1933.
Recentemente, o economista americano do Banco da Reserva Federal de Nova Iorque Kristian Blickel publicou um estudo (https://www.newyorkfed.org/medialibrary/media/research/staff_reports/sr921.pdf), onde demonstra a grande influência que a pandemia da gripe espanhola de 1918 teve no êxito posterior de Hitler.
Nas regiões da Alemanha onde a mortalidade tinha sido mais elevada foram onde o partido nazi obteve maior apoio eleitoral.
Nessas zonas, logo a seguir a essa pandemia verificaram-se maiores níveis de desemprego e maiores cortes nos gastos públicos e sociais.
Em vários países europeus, nas últimas décadas, temos também verificado que nas suas regiões mais deprimidas no plano económico e social é onde a direita e a extrema-direita mais têm capitalizado eleitoralmente o descontentamento popular.
Sendo previsível que a situação que estamos a atravessar com esta pandemia vai deixar mossas, ainda não é possível vislumbrar o que virá depois e em que sentido se fará a sua superação.
A vida e a história têm mostrado que a Democracia e a Liberdade não são direitos adquiridos e que se não os defendermos continuamente há sempre quem esteja à espreita para os tentar liquidar.
Desde a II Grande Guerra que este é o momento mais preocupante para as democracias.
As barrigas vazias conduzem ao desespero e a dar ouvidos a supostos “salvadores “.
Como me disse recentemente um amigo meu de longa data, é necessário empreender espaços de reflexão cidadã que conduzam à elaboração de políticas patrióticas cujo horizonte sejam a justiça e a equidade sociais.
Não demoremos a meter mãos à obra.
A Democracia e a Liberdade não podem ser mercantilizáveis, tal como a Dignidade Humana.

Mário Jorge Neves, Médico

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