Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

3 de novembro de 2017

A Vida Comunitária em Loja e o Simbolismo das suas Funções


Este será mais um traçado que não poderá ser considerado de Instrução, pois apenas pretende percorrer pistas que necessitarão de ser aprofundadas com um rigor reflexivo para nos guindar à Luz, Luz esta, que tem uma tripla pronúncia: amor, conhecimento e trabalho que, como escreveu Daniel Béresniak, …são indispensáveis sem que nenhum deles possa ser privilegiado ou posto de lado para se não correr o risco de se tornarem paródias
Assim, e sabendo nós que uma Loja designa uma comunidade de francos-maçons que se reúnem à volta do Templo numa perspectiva simbólica, podemos começar, usando a analogia como procedimento essencial do pensamento simbólico, por imaginar que o ser humano é um microcosmos e o universo o macrocosmos representando o Templo a intimidade entre estes dois opostos, ou seja, comecemos por tentar racionalizar e compreender a obra humana (nas vertentes racional, imaginativa e intuitiva) para a situar no universo. Esta relação entre sonho e realidade é feita decifrando os símbolos de modo a proporcionar a verdadeira libertação da dicotomia objectividade/subjectividade.
Para que se …reúna o que está esparso…,é necessário que esta vida comunitária, aqui expressa na Loja/Templo, tenha regras surgindo assim a funcionalidade bem visível nos Ofícios e Oficiais que a compõem. É desta funcionalidade e suas implicações que vos quero falar.
Convém recordar que as viagens são um dos princípios essenciais do ensino iniciático e se as cito é para remarcar que nenhuma pessoa deve permanecer numa função durante demasiado tempo para se não correr o risco de esquecermos as três facetas de uma função: fazer, proteger e ensinar. As funções de uma vida comunitária foram-se buscar às das sociedades humanas, tanto no plano material como espiritual com a particularidade de, na F-M serem fraternas, quer dizer, sem primazia de nenhuma delas sendo todas importantes, como na construção de um edifício em que uma pedra sustenta a outra sem nenhuma delas, isoladamente, ser superior à outra. É claro que há uma hierarquia, nunca no sentido profano em que as diferenças geram conflitos. Aqui, o V.’.M.’. cessante passa a G.’.Int.’. numa demonstração de grande humildade e igualdade, ou seja, cada um cumpre o seu papel numa ordem programada e útil ao funcionamento onde a cada um dos Oficiais cabe uma função específica que se for correctamente cumprida toda a Loja fica beneficiada.

Independentemente dos Ritos (em que o número de Oficiais varia consideravelmente) há em todos uma tríade fundamental: V.’.M.’.,1º e 2º VVig.’. (as chamadas Luzes da Loja) e uma grande variabilidade nas restantes funções podendo ir desde os dez Ofícios no R.’.E.’.A.’.A.’. e Francês aos oito nos de Menphis-Misrain ou ainda como nos Ritos anglo-saxónicos (Emulação e York) que tem 8 obrigatórios e sete não obrigatórios. Quanto à denominação dos Ofícios a mesma variabilidade se mantém (por exemplo nos ritos anglo-saxónicos não há Ir.’. Orad.’.) mas o que interessa saber é que todos os Rituais são discutíveis por serem baseados em rituais mais antigos que foram sendo descontextualizados e adaptados às realidades do espaço e tempo de cada época. Remarco que as diferenças entre eles são apenas superficiais mas o ensino é o mesmo, ou seja, aprender a separar o trigo do joio que é captar a unidade fundamental do espírito humano para se abrirem as portas do saber e do progresso, e isto sem prepotências (um conjunto de Lojas constitui uma Obediência e não uma Potência), quer espirituais quer materiais.

Uma palavra para vos recordar alguns documentos mais antigos sobre a organização das Lojas, um data de 1630/50 nominado Edimburg Register e que cita o V.’.M.’., os VVig.’. e os Stewards e o outro data de 1735 do Colégio de França em que só cita o Venerável e os Vigilantes.
Quanto à nomeação e qualificação dos Oficiais começarei por dizer que durante a história da F-M elas foram feitas, primeiro por nomeação directa, depois por cooptação (ainda existe em alguns Ritos) e finalmente eleitos devendo estes ser instalados e depois substituídos por novas eleições. Há normas universais que norteiam a qualificação sendo a primeira que tem que ser M.’.M.’., sendo a segunda a incompatibilidade entre a função de Venerável e outra qualquer e a última é a de nenhum Oficial poder ser vitalício.

No que diz respeito à localização dos Oficiais a variabilidade permanece nos diferentes Ritos desde as referências aos Séphiroths da cabala, às particularidades do cristianismo e sem esquecer as da ciência astronómica, porém, existem pontos comuns como o V.’.M,’ se sentar sempre no centro do Oriente. Os vigilantes trocam de posição nos vários Ritos assim com o dos restantes cargos. O que é certo e sabido é que cada um dos ritos fornece uma simbologia como base para a colocação dos Oficiais, e desde o estritamente solar dos Ritos anglo-saxónicos às do desenho da árvore sefirótica e da correspondência com metais e ferramentas, há particularidades que vale a pena referir por serem clássicas, a saber: o Venerável está associado a uma coroa e ao Sol Nascente; os Vigilantes à força e beleza, o Orador à sabedoria; o Secretário à inteligência; os que seguem a via planetária ligam o Venerável a Júpiter, o Secretário à Lua, o Orador ao Sol, o 1º vigilante a Marte e o 2º a Mercúrio levando a interpretações, tais como, o Venerável ser o alquimista que transmuta em amor fraternal os vícios e as paixões iluminando as trevas e tanto estimula como acalma (activo e passivo), ou seja e citando D. Béresniak…um M.’.M.’. espera o anúncio de ser Venerável com temor mas assume o cargo com alegria…ou que os Vigilantes estão associados às duas Colunas orientando os Obreiros nelas sentados,  ajudando o V.’.M.’. a abrir e encerrar os Trabalhos e sendo responsáveis pela formação; Enfim, toda uma série de rótulos e práticas que apenas têm como missão proporcionar o aprofundamento do espírito libertando dogmas e vícios para que a viagem iniciática seja feita sem sobressaltos. Não é demais recordar que a Loja é a única estrutura abalizada para o ensino iniciático (a Obediência é apenas uma federação de Lojas com vocação administrativa) sendo livre e soberana (foi-lhe passada uma patente para a prática do Rito) para construir e ensinar.

Dos restantes Ofícios e Oficiais pouco vos vou falar (por não ser o propósito deste traçado e por haver milhares de páginas escritas disponíveis sobre o assunto) mas não se pode esquecer as missões do Orad.’. responsável pela correcta execução da Lei, do Sec.’. como a memória da Loja em que usa o espírito da geometria (pesa, estima, calibra e mede os pensamentos dos IIr.’.) para registar o que bom e belo aconteceu. Também o Exp.’. que é responsável pelo cumprimento dos aspectos ritualísticos dos Trabalhos, o M.’.CCeri.’. que por excelência conduz e orienta os movimentos e deslocações da Loja e do Hosp.’. que visa a solidariedade. Uma referência ao Arqui.’. e M.’.Harm.’. pois sabemos que, e cito mais uma vez D. Béresniak…a escrita e a leitura são formas superiores de comunicação por não estarem submetidas à necessidade da aproximação visto transcenderem o espaço e tempo e assim multiplicarem os intercâmbios de todas as ordens e naturezas. O mesmo com a música que é portadora de uma mensagem que escapa à análise racional porque se expressa numa linguagem à margem do pensamento conceptual, ou seja, que fala directamente ao coração sem auxílio das palavras…
Num breve resumo saliento que todos são importantes no papel de fazer cumprir a viagem iniciática e que todos devem ser activos para que seja útil a vivência do grupo.
Finalmente, vou abordar alguns aspectos referentes à utilização dos chamados Livros Sagrados (Torah e Bíblia) no simbolismo funcional e no seu bom uso pelas lojas. Foi a partir do Séc. XVIII que a F-M se debruçou por aquilo que poderemos definir como as origens da vida sob os pontos de vista exotérico e religioso. É irrefutável que, bem e mal, a chamada Kabaláh (substantivação do verbo lekabel que significa receber), não só associou a via mística à gnose como também influenciou todos os pensadores desde a Idade Média (Abner de Burgos e os Rosas-Cruzes), do Renascimento (Pico della Mirandola e os Reformistas) e chegando mesmo aos Séc. XIX e XX (Wirth, Boucher, Guénon) que acabaram por a relacionar com a F-M dita especulativa.
Pensa-se que o conjunto de escritos e de relatos orais da cabala foram pela primeira vez compilados por Moisés de Leon no séc. XIV após consulta de fontes que remontam aos egípcios e persas. No início, o pensamento cabalístico ajustava-se á tradição hermética recusando confundir deus com o universo por aquele estar acima deste. Mais tarde os neo-platonistas introduziram novos aspectos dando origem a duas cabalas que foram a cristã e a judaica. A primeira, no Séc. XIII, sofreu um grande crescimento com os judeus convertidos ao cristianismo e mais tarde outro surto de crescimento com a academia platónica fundada pelos Médicis em Florença que se esforçou por introduzir, não só o ensino pitagórico mas também a preocupação mágica em que visavam aumentar os poderes do individuo tornando-se esta preocupação uma ponto crucial pois esta substituição do poder pelo conhecimento condicionou toda a cristandade futura. Em relação à cabala judaica, de tão complexa e imaginativa, não poderá ser abordada profundamente mas é importante referir que tomou um percurso muito diferente da cristã e que os F-M procuraram nela alguns aspectos que justificassem a chamada parte invisível da existência. Assim, entre outras coisas, relacionaram o Templo maçónico (que representa o cosmos) e a árvore sefirótica (o mundo invisível). Infelizmente tentaram simplificar a noção dos Séfiroth (atribuindo aos Ofícios e Oficiais da loja cada uma das dez partes que a compõem) resultando nalguma incoerência tal desidrato, pois na tentativa de justificar a ortodoxia exotérica desnaturalizaram a transmissão do conhecimento que lhes é inerente. Concluindo, direi que tem que se ser reservado e atento e só com prudência e muito estudo reflexivo se poderá abordar o assunto da cabalas não esquecendo que o simbolismo e cito Béresniak…é igual a uma linguagem que pode estimular e despertar mas também embrutecer…

Termino este traçado salientando que aqui, em Loja, devemos trabalhar maçonicamente, ou seja, com ordem e regras que os Ritos e Símbolos nos transmitem para que o homem velho esmoreça renascendo um homem novo com um nível de consciência mais elevado. Para isto, é necessário enriquecer o espírito e apurar a matéria como opostos que se complementam. Quando a um Oficial se atribui, simbolicamente, um planeta, ferramenta ou coroa invisível está-se a …reunir o que está esparso… criando uma energia que, longe de ser puramente administrativa, tem um significado para além da evidência e transcendência.

Diógenes de Sínope M.’.M.’.

Bibliographia
-Jules Boucher – “La Symbolique Maçonnique”
-Marie Delclos, Jean-Luc Caradeau – « Les Symboles Maçonniques Éclairés par Leurs Sources Anciennes »
-Daniel Béresniak – « Los Oficios e Los Oficiales de la Loja », Ediciones Detard 1992

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