Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

27 de setembro de 2016

O que se Pode e Deve Ler no Poema Régio e Manuscrito de Cooke



Reestudar a história é coisa que me agrada e faço-o tantas vezes quantas as vezes que a vicissitude dos factos históricos o induz. Confesso o particular fascínio que a obscuridade da Idade Média me desafia a iluminá-la e, porque estes manuscritos estão relacionados com uma das prováveis origens do ofício de pedreiro-livre, vou dedicar algum estudo aos mesmos.
Por e para quê esta fixação, por vezes teimosa e outras hilariante, de relacionar as maçonarias ditas operativa e especulativa? Responda quem melhor estiver apetrechado para tal pois, eu, há muito que deliguei os fios e as conexões entre ambas, aqueles sim, muitíssimo especulativos, e assim poder sentir-me livre e, com bons costumes, dedicar-me ao conhecimento de ambos os períodos com os seus factos, ideias, práticas e respectivas lições.

É um grande chamariz à minha vontade aprofundar o período em que decorreu a franco-maçonaria profissional (a tal dita operativa) e, se há documentos históricos (não confundir com textos literários marcadamente especulativos) em que posso mergulhar, são eles, sem dúvida alguma, os chamados Poema Régio e o Manuscrito de Cooke. Estes, foram tão exaustivamente estudados, confundidos e trabalhados que conseguiu a comunidade intelectual um aproveitamento (pode pronunciar-se descontextualização) tal que fizeram de puros textos medievais, reveladores de regras e costumes dos pedreiros-livres da Idade Média, uma das bíblias justificadoras de quase toda a história da franco-maçonaria.
Passemos, então, ao que se pode e deve ler neles numa tentativa de os situar no seu verdadeiro contexto:

1- POSICIONAMENTO HISTÓRICO
2- CONTEÚDO
3- ILAÇÕES
4- CONCLUSÕES

1-POSICIONAMENTO HISTÓRICO
Vou começar pela controvérsia da datação destes documentos. Pensa-se que o Poema Régio tenha sido escrito em 1390 embora W.J. Hughan no seu guia sobre as Old Charges em 1889 faça referência a James Orchard Halliwell (que primeiro o publicou em 1840 baseado no espólio de um antiquário de Gloucestershire datado de 1673) que na altura se limitou a escrever que o documento tenha sido…não mais tarde que a última parte do Séc. XIV…Esta data foi contrariada por Edward Augustus Bond (curador na altura do museu Britânico) que o situa no início do Séc. XV. Esta controvérsia permanece nos dias de hoje pois sabe-se que o Poema Régio foi baseado num livro de etiqueta de seu nome Urbanitatis (datado do Séc. XIV) onde as figuras de desenho prevaleciam sobre a escrita e aquelas parecem contar os traços típicos do meio comunitário da Idade Média Inglesa com as características do dialecto usado a sugerirem o início do Séc. XV.
Já com o Manuscrito de Cooke haverá menos problemática pois, devido à sua estrutura, a sua datação, fim do Séc. XV, é muito mais precisa e segura não deixando dúvidas aos estudiosos da matéria.
Deixemos a datação e passemos à altura em que estes documentos medievais foram recuperados pela florescente maçonaria dita especulativa. Assim, em Junho de 1720 o Duque de Montagu, eleito Grão-Mestre da Grande Loja de Pedreiros-Livres de Londres, marca uma reviravolta na história da franco-maçonaria profissional pois pela primeira vez um Lorde Aceito foi escolhido para tal cargo. Tinha como assistente um antiquário, de seu nome W. Stukely, que descobriu que a Constituição que o antecessor de Montagu, um operativo de nome George Payne, utilizava tinha sido escrita há cerca de 300 anos e estando registada na livraria britânica com o nº 23198, passou posteriormente a ser chamado Manuscrito de Cooke. Este versava sobre a história lendária do ofício de pedreiro-livre que, inclusive, foi entregue a J. Anderson para que fizesse um resumo mesmo antes das célebres Constituições Andersianas. Este documento esteve na posse da Grande Loja de Londres até 1768, altura em que foi vendido a um outro antiquário de Norfolk- Sir John Fenn. Desapareceu de circulação entretanto e em 1859 uma humilde cidadã chamada Caroline Baker quis vendê-lo a Sir Fredric Madden pelo preço de 10 Libras. Tendo ficado bastante agradado com a obra por conter, segundo ele, a ciência da geometria dos Séc. XIV e XV, entregou-o, para preservação, a um organista, amanuense de clérigo e lente público de seu nome Mathew Cooke que em 1861 publicou a primeira transcrição com os cortes que achou necessário.
Entretanto Sir F. Madden detectou uma grande semelhança entre o conteúdo deste manuscrito e um outro, registado no museu britânico com o nº 17ª-I, que também continha, em verso, extractos da história dos pedreiros-livres, e mais exactamente, dispunha de portarias e decretos sobre a profissão e que tinha sido dado à estampa em 1840 pelo seu inimigo intelectual J. O. Hallywell que era um dos mais prestigiados coleccionador de livros antigos da sua geração, mas fora dos circuitos académicos, facto que os eruditos nunca lhe perdoaram, porém, chegou a ser admitido na Royal Society em 1839. Este documento chamava-se na altura “Poema dos Deveres Morais” e tinha como subtítulo Constitutiones Geometrie Secundum Euclidem. Hallywell não era maçon mas tinha muitos amigos que o eram e um deles, Robert Freke Gould, devido à fama que Hallywell tinha, propôs que o documento se deveria passar a chamar “Poema Régio” assegurando-se da sua posse para o manter no universo dos maçons.
O que se seguiu todos nós sabemos pois baseados nestes textos medievais surgiram as famosas Old Charges e as não menos famosas Constituições não esquecendo que não foi só na esfera maçónica que foram úteis pois na vida profana muitos historiadores, como Helen Cam, se serviram deles para ilustrar a importância dos textos medievais na vida moderna devido às suas característica corporativo-sociais. O lamento é que estes textos, designados comummente por Old Charges, se divorciaram progressivamente do seu contexto histórico muito à custa das suas variadas versões que foram sofrendo alterações pela pressão ético-social das respectivas épocas em que foram elaborados.


2-CONTEÚDO
As diferenças entre ambos não são muitas (sugerindo que não tenham sido escritos num período de tempo muito afastado um do outro) e citarei quer as que fazem parte da sua estrutura literária quer as do próprio conteúdo.
Assim, o Poema Régio é composto por 794 versos começando por descrever como o grande Euclides dividiu a geometria dando-lhe o nome de maçonaria e que os pedreiros-livres não se deveriam tratar como iguais havendo uma hierarquia profissional. A seguir descreve como a maçonaria se introduziu em Inglaterra, por volta dos anos 924 a 938, no reino de AEthelstan que para regular o ofício determinou que se criassem portarias e decretos remarcando já a importância das assembleias gerais, a necessidade da boa educação (fair play), o facto de se tratarem como companheiros ajudando-se uns aos outros e evitar o recursos à litigação. Depois conta a história dos 4 mártires coroados- pedreiros-livres, que foram assassinados por um imperador romano por não acederem a construir um templo pagão. A chegar ao fim conta a história da destruição da torre de babel devido ao orgulho dos seus construtores e de como Euclides renovou a arte da construção dividindo o conhecimento em 7 artes liberais (geometria, gramática, dialéctica, retórica, música, lógica e astronomia) terminando com as regras dos costumes e coagindo os pedreiros-livres a comportarem-se em sociedade (tirar o chapéu dentro das igrejas, não cuspir para o chão, não comer com a boca cheia ou espirrar e esvaziar os intestinos em público).
Já a estrutura do Manuscrito de Cooke é feita em prosa numa escrita típica do inglês medieval começando com a história dos pedreiros-livres que é bem mais ampla do que relata o Poema Régio. Logo a seguir invoca-se deus que fez todas as coisas e o homem proporcionando a estes ferramentas de que é exemplo máximo a geometria. As 7 artes liberais também são descritas e em particular destaque conta a lenda das 2 colunas do conhecimento que após o dilúvio foram encontradas por Pitágoras e Hermes o Trismegisto, descreve também que através de Nimrod (neto de Noé) se enviaram pedreiros-livres para a Assíria onde tiveram acesso ao conhecimento das construções e uma vez regressados à Judeia os aplicaram, ou seja, repetem a história de Euclides mas carregando-a de referências bíblicas. Dão particular destaque ao facto de o rei Carlos II de França que apadrinhou as grandes construções do cristianismo e a Sto. Albano que ao chegar a Inglaterra transmitiu os conhecimentos da arte de construir ao rei AEthelstan que se tornou ele próprio um pedreiro-livre tendo dado ordem para se redigir uma constituição com portarias e decretos que aqui no Manuscrito de Cooke são menos e com uma ordem diferente do Poema Régio.
Em resumo, há indícios de, tanto um como outro, terem sido baseados num documento único cujo original não sobreviveu pressupondo-se que o Manuscrito de Cooke terá sido uma versão melhorada e mais ampla do Poema Régio. Pode-se aferir também que este não será tão exaustivo no que respeita aos encargos das associações como é o de Cooke e que a referência às origens do ofício são mais antigas no manuscrito do que no poema, enfim, poder-se-á dizer que o Manuscrito de Cooke era uma versão mais sagaz e amplificada do Poema Régio.

3-ILAÇÕES
Um dado marcante, prévio a qualquer interpretação, é que (como bem assinalaram os estudiosos da F-M Douglas Knoop, G. Jones e Douglas Hammer) todos estes documentos não foram escritos pelos pedreiros-livres, pois como sabem a maioria era iletrada (o saber entre eles era transmitido pela via oral) estando o domínio da escrita nas mãos do clero que, como pode e sabia, torceu o que devia e não devia e foi exactamente em pleno séc. XV que a burguesia inglesa começou a evidenciar uma emergente cultura que lhes permitiu ficar a par do clero tendo, seguramente, contribuído para que as revisões destes documentos fossem adaptadas mais à realidade civil do que a religiosa.
Assim, podemos interpretar e caracterizar melhor estes textos se soubermos que a geometria foi a mola impulsionadora das associações de pedreiros-livres e para tal teve que ser traduzida em linguagem que fosse entendida por todos os membros, primeiro em verso (a primeira forma da escrita) e mais tarde em prosa ligeira. Isto levou a que tivessem sido os clérigos a interpretar a transmissão oral e daí os ligeiros e intencionais desvios no sentido de se comporem, não só a disciplina e ordem mas também a solidariedade, absolutamente necessárias, quer ao bom funcionamento das obras quer à respectiva legitimação das responsabilidades. Um dado importante é que, à partida, estas associações de oficiais aspiravam a serem reconhecidos na sociedade como os verdadeiros representantes dos construtores do passado distante (daí o recurso a Euclides e AEthelstan). Outro dado que se deve destacar é a vontade de contrariar as oligarquias, que eram os mandantes das construções, impondo muitas vezes orçamentos, horários de trabalho e penalizações que os pedreiros-livres consideravam muito severas.


4-CONCLUSÕES
Diante do atrás exposto podemos e devemos concluir que:
1- A história lendária do ofício de pedreiros-livres está reflectida nos textos medievais aqui em análise.
2- Estes textos foram, nas respectivas versões, ampliados depois da fundação da Grande Loja de Londres e ficaram conhecidas como as Old Charges.
3- Devido a estas ampliações os textos foram, por consequência, ficando fora do seu contexto histórico.
4- Há uma diferença marcada entre as Old Charges e os textos que lhe deram origem (os referidos Poema Régio e Manuscrito de Cooke), pois estes reflectem a vida medieval e aquelas as pré-concepções teóricas adaptadas à maçonaria dita especulativa.
5- Os textos medievais relatam a mentalidade dos artesãos medievais e a sua relação com a comunidade.
6- Terão sido escritos numa data não muito longe um do outro.
7- O manuscrito não foi senão uma ampliação do poema.
8- Ambos terão sido escritos baseados num texto original desaparecido.
9- O Poema Régio enfatiza a ortodoxia religiosa e a respeitabilidade dos pedreiros-livres. O Manuscrito de Cooke leva a origem dos pedreiros-livres a Euclides e remarca a introdução deste ofício em Inglaterra com o advento do cristianismo.
Termino com pena de abandonar os corredores da história mas com a certeza de Samuel Prichard que em 1730 afirmou…de todos os abusos de que os homens são capazes, nenhum é mais ridículo que aquele que atribui à franco-maçonaria poderes misteriosos…É que, com efeito e como escreveu Hugo Pontes no seu ensaio “Guimarães Rosa – uma leitura mística”, …o simbolismo traduz em letras e imagens o que a alma encobre…


Diógenes de Sínope M.’.M.’.

Bibliographia
-Andrew Prescott – « Some Literary Contexts of the Regius and Cooke Manuscripts »
-Roger Dachez – « O Mistério dos 3 Golpes Nítidos-incógnitas de uma divulgação inglesa »

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