Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

11 de agosto de 2015

Um Olhar Histórico pelos Sistemas Assistenciais de Saúde Europeus - Custos e Benefícios


Tomando como referência o período de plena instalação e organização do SNS, 1990-2009, portanto um período suficientemente alargado para se poderem observar as variações e tendências do desempenho do sector público da saúde, analisaram-se os resultados por ele obtidos, medidos por quatro indicadores principais, (i) mortalidade precoce, (ii) mortalidade infantil, (iii) esperança de vida à nascença e, (iv) esperança de vida saudável.
Considera-se que estes indicadores são aqueles que melhor ilustram e sintetizam não só o desempenho do SNS mas também a medida em que os recursos das comunidades locais e as políticas sectoriais contribuíram para eles, considerando que o direito à saúde e o direito aos cuidados de saúde, embora garantidos por actores sociais e institucionais diferenciados, estão ambos incluídos no contrato social dos países considerados desenvolvidos.

Trata-se, além disso, de verificar se para um bem de mérito como a saúde os recursos disponíveis estão a contribuir com eficiência e efectividade para a sua melhoria, com impactos potenciais no desenvolvimento social e económico. É essa a natureza do retorno que se espera de uma visão alargada do sector da saúde.
No plano metodológico, a avaliação das alterações daqueles indicadores centrou-se em dois momentos temporais, 1990 e 2009, tendo-se selecionado para termos de comparação os países da União Europeia a 15.

Embora não devam ser atribuídos exclusivamente ao efeito dos serviços de saúde, em 20 anos (1990-2009) a mortalidade precoce em ambos os sexos (0-69 anos) diminuiu 36%, à razão de menos 300 óbitos/ano. Na Europa dos 15 (EU15), este indicador situava Portugal no terceiro lugar dos países da UE15 que mais tinham diminuído o valor deste indicador, logo a seguir à Dinamarca e à Itália.

Quanto à mortalidade infantil, no período 1990-2009, em Portugal os valores deste indicador tiveram uma evolução positiva muito significativa, tendo a distância para o melhor valor europeu passado de 5.3 pontos percentuais para 1.1 pontos percentuais, correspondente a um declínio de excesso de mortalidade de 44% relativamente ao melhor valor da UE15.
A progressão de 67% neste indicador de 10,9‰ para 3,6‰ colocava Portugal, em 2009, no nos três primeiros lugares dos países onde se verificaram melhorias mais significativas nos resultados dos cuidados materno-infantis, a par da Suécia e da Finlândia.

Relativamente à esperança de vida, embora Portugal se mantenha nos três últimos lugares, a par da Dinamarca e Irlanda, passados vinte anos (1990-2009), a progressão de 7,4% é a mais elevada do conjunto dos países da UE15, com a distância para o melhor valor a passar de 3.5 anos, em 1990 (Suécia), para 2.4 anos, em 2009 (Itália), correspondente a uma melhoria de 31%. Em Portuga, isto correspondia a uma esperança de vida de 74,1 anos em 1990 e de 79, 6 anos em 2009, nos dois sexos.

Quanto à esperança de vida saudável, em Portugal como nos restantes países da UE15, verificou-se uma oscilação negativa tanto nos homens como nas mulheres entre 2000 e 2009. Neste período, Portugal recuou 11,4 anos nas mulheres e 5,2 anos nos homens, tendo neste ano a esperança de vida saudável em ambos os sexos sido 73% da esperança de vida à nascença enquanto na Suécia, o melhor valor europeu, aquele valor era de 88%. A comparação é mais negativa a partir dos 65 anos, em que a esperança de vida saudável dos portugueses é 33% da esperança de vida nesta idade e nos suecos é de 72%.

O índice de desenvolvimento humano (IDH) é um indicador compósito que integra três dimensões – saúde, educação e padrão de vida –, e quatro indicadores – esperança de vida à nascença, média de anos de escolaridade, expectativa escolar e rendimento per capita. Entre 1990-2009 só três países mantiveram inalteradas as suas posições relativas: a Holanda no topo da escala, Portugal na base da escala e a Áustria no valor mediano. Com uma variação de 14,3% em vinte anos, Portugal encontra-se entre os países que mais progrediu no IDH e a sua distância para o melhor valor diminui de 18% para 12%.

Já quanto ao IDH ajustado à desigualdade (IDHAD) Portugal, conjuntamente com  a Itália e Grécia, são os países  em que a desigualdade nos indicadores que compõem o índice é mais acentuada, ao invés da Finlândia, Suécia e Dinamarca em que a relação IDH/IDHAD é menor.

No IDH, a dimensão que mais contribuiu para os valores de 1990 e 2009 foi o índice da saúde, sempre superior às duas outras dimensões, nomeadamente da educação, embora esta tenha tido uma evolução muito acentuada a partir de 1990. Já a evolução do rendimento per capita, sem variação significativa no período em análise, tem sido o principal responsável pela posição de Portugal na hierarquia dos países da UE15.

O esforço financeiro realizado pelos portugueses com os cuidados de saúde entre 1990-2009, medido pela despesa per capita com a saúde, variou entre 628,2 US$ e 2548,5 US$ em ppp, correspondente a um aumento de 306% naquele período. Apesar desta evolução, Portugal manteve-se no último lugar dos países da UE15, acompanhado pela Espanha e Itália. Esta progressão teve tradução na distância que o separava do melhor valor em 1990 (Alemanha), tendo passado de 35% daquele valor para 54% do melhor valor em 2009 (Holanda).

Comparando a relação do crescimento médio anual da despesa per capita com a saúde e o crescimento médio anual do rendimento per capita, entre 2000-2009, verifica-se que, à excepção da Itália e do Luxemburgo, todos os restantes países da UE15 tiveram crescimentos superiores ao de Portugal. Considerando, teoricamente, que o valor do indicador de sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde se encontra sobre a recta de tendência da correlação, relativamente à UE15 a amplitude deste indicador tem como pontos extremos a Holanda e o Luxemburgo, encontrando-se Portugal nos valores inferiores dessa correlação.

Em vinte anos, o aumento da percentagem do PIB na despesa com a saúde deslocou Portugal dos três últimos lugares, a par do Reino Unido e do Luxemburgo, para o sexto lugar da hierarquia dos países da UE15, correspondente a 10,8% do PIB, próximo dos valores da Bélgica e do Reino Unido. Porém, quando se analisa a estrutura desta despesa verifica-se que Portugal se situava no segundo lugar da percentagem da despesa privada, logo a seguir à Grécia, e no penúltimo lugar da percentagem da despesa pública, imediatamente antes da Grécia tanto em 1990 como em 2009. À semelhança de outros indicadores já discutidos, também no caso da percentagem da despesa privada, os extremos da distribuição mostram bastante rigidez na mobilidade dos países: Grécia e Portugal, nos primeiros lugares; Reino Unido e Holanda nos últimos lugares.

Comparativamente, e considerando o rendimento per capita, os portugueses são dos europeus que apresentam maior taxa de esforço privado para o financiamento do sistema prestador de cuidados de saúde.

Tomando a esperança de vida à nascença como um dos indicadores que melhor sintetiza o investimento financeiro do sector da saúde, Portugal, a par da Espanha, Itália, Grécia, Suécia e França, é dos países da UE15 que obtém melhores resultados quando se relaciona o valor daquele indicador com o PIB per capita e as despesas per capita com a saúde. Particularmente significativo é a verificação de que 69% da esperança de vida é explicada pela despesa per capita com a saúde e 59% daquele indicador pelo PIB per capita.

A escolaridade média dos portugueses embora tenha aumentado 14% na década 2000-2009, passando de 6,78 anos para 7, 73 anos com a Suécia e a Holanda a partilharem nos dois anos de referência o primeiro lugar.
Quanto a três factores de risco – consumo de álcool, tabagismo e obesidade – a situação é diferente em cada um dos casos. A percentagem da população portuguesa com hábitos alcoólicos, medido em percentagem da população que consome mais de 15 litros de álcool/ano, apesar de, em vinte anos, ter diminuído 29% e melhorado a sua posição relativa, continua a ser das mais elevadas da UE15, encontrando-se equiparada a Espanha e Alemanha, tendo conseguido destacar-se da França e Áustria com quem partilhava os últimos lugares em 1990. Já quanto aos hábitos tabágicos, no período em análise, Portugal manteve-se nas três primeiras posições juntamente com a Suécia e a Finlândia, entre os países com menos percentagem da população fumadora. A evolução entre 1990-2009 mostrou uma ligeira diminuição de 4%, tendo passado de 19% para 18.6%.

Em todos os países da EU15 verificou-se um aumento da prevalência da obesidade (IMC≥30) no período 2000-2009, tendo aumentado em Portugal de 12,8% para 15,4%. A variação de 20% do aumento da obesidade entre os portugueses entre 2000-2009 foi das mais baixas do conjunto destes países, embora não tenha sido suficiente para diminuir a distância ao melhor valor da série (Itália), tendo aumentado 21%.

Conhecida que é a associação entre determinantes da saúde, factores de risco e a esperança de vida saudável, a variação negativa observada na população portuguesa daquele indicador, tanto nos homens como nas mulheres, pode ser analisada à luz da evolução daquelas condições e do seu potencial efeito sobre a saúde.

Quanto a dois determinantes sociais – escolaridade média e rendimento disponível – verifica-se que o alinhamento posicional mais coerente com a esperança de vida saudável é observado Portugal. Existem, no entanto, outros países com alinhamento de posições: a Suécia e Espanha alinham as suas posições da esperança de vida saudável em ambos os sexos com a escolaridade média; o Reino Unido alinha a sua posição naquele indicador com o rendimento disponível.

Já no que diz respeito à associação entre esperança de vida saudável e factores de risco – hábitos tabágicos, hábitos alcoólicos e obesidade – França, Holanda, Irlanda, Itália e Luxemburgo são os países que não apresentam nexos entre aquelas condições, enquanto Suécia, Dinamarca, Bélgica, Espanha e Portugal apresentam associações quase perfeitas entre elas

É hoje aceite pela comunidade científica que não é suficiente atribuir crescentes recursos financeiros aos serviços de saúde, particularmente aos que prestam cuidados na doença aguda, para se obterem bons indicadores de saúde. As designadas doenças do conforto constituem actualmente a principal causa de morte, representando 80% de todas as causas de morte nos designados países desenvolvidos. As abordagens tradicionais para lidar com esta situação e com a sua forte dependência do modelo biomédico e dos interesses do mercado estão condenadas ao fracasso. Torna-se, por isso, necessário desenvolver uma visão mais alargada e global da saúde a partir das comunidades, a partir de focos locais de mudança, reconduzindo as pessoas ao seu papel de co-produtores de saúde individual e colectiva, e dessa maneira criarem-se as condições para que as sociedades se tornem mais saudáveis.

O principal obstáculo a esta mudança está na ausência de vontade política para a realizar. Se a obesidade está transformada numa pandemia, o alcoolismo aumenta assim como a doença mental, e o fosso entre ricos e pobres não diminui, os esforços para dar resposta a estes problemas parece não estarem à altura das exigências. Ao contrário de políticas que privilegiem a prevenção, quase todo o investimento tem sido colocado nas mudanças de comportamento individual e no tratamento das ocorrências. Enquanto se vai celebrando o conhecimento científico, o crescimento económico e a produtividade, seria igualmente desejável que se tivesse consciência dos níveis de stress no mercado de trabalho e nos estilos de vida, como o sedentarismo, os erros alimentares, o tabagismo e o alcoolismo.

Pode afirmar-se que a raiz do problema está na natureza do retorno dos investimentos em saúde. Sabendo-se que grande parte do investimento na saúde pública só tem impacto no longo prazo, os governos, condicionados pela agenda eleitoral, aspiram sobretudo a resultados visíveis e imediatos. É desta maneira que o tratamento da doença adquire um estatuto que o torna preferível a outras escolhas. Culpar os estilos de vida individuais torna-se, nesta lógica, a alternativa aos défices de políticas de promoção da saúde, sabendo-se, por outro lado, que certos comportamentos são induzidos por interesses poderosos ligados à indústria alimentar e das bebidas.

Foi considerando que todos os sectores de actividade social têm implicações para a saúde que o governo finlandês, quando assumiu a presidência da União Europeia em 2006, conseguiu que a Comissão Europeia adoptasse o conceito de “Saúde em todas as políticas” (STP), de maneira a considerar respostas para os factores de risco, em particular os erros alimentares, o sedentarismo, o tabagismo, o alcoolismo, o stress social, uma vez que a capacidade das pessoas para lidarem com estes riscos é limitada, dado estarem associados a determinantes mais amplos, como o rendimento disponível e o nível de instrução. A STP encontra a sua justificação no facto de os contextos sociais serem profundamente influenciados pelas políticas públicas. Embora as soluções técnicas disponíveis no sector da saúde sejam importantes, não são suficientes. É na gestão das causas subjacentes e dos determinantes da saúde que podem ser encontrados os ganhos mais significativos em saúde.

Uma vez que em saúde as respostas são dadas tanto por profissionais e tecnologias como por outros actores sociais que se combinam e organizam consoante as competências e as capacidades para responder a necessidades, os dispositivos organizacionais que sejam inclusivos dessa interdisciplinaridade e multiprofissionalidade estão melhor apetrechados do que aqueles que criam barreiras à visão compreensiva da saúde.

A noção de campo alargado da saúde assenta na concepção de que a saúde não pode ser produzida por um único sector ou grupo de profissionais desligados das comunidades que servem. Ela é o resultado da acção intersectorial e da capacitação das comunidades para controlarem os determinantes da saúde e a exposição a factores de risco, de tal maneira que a responsabilidade e a acção colectivas não deviam ser abandonadas a favor de escolhas individuais de promoção da saúde e prevenção da doença, as quais se esgotam na divulgação de informação e aconselhamento sobre a tomada de decisões informadas. A mercadorização crescente das políticas públicas ameaça e enfraquece a relação e os laços dos indivíduos com o Estado e as suas lideranças, tornando-os mais contingentes e transacionáveis. É agindo com e para as comunidades que se torna possível ultrapassar este tipo de obstáculos, cuja configuração actual reveste a forma de “um indivíduo, um consumidor”.

A evolução da organização do Serviço Nacional de Saúde em subunidades locais, contribui para reduzir a inércia e as opacidades acumuladas ao longo de décadas num modelo muito pouco sistémico. Trata-se de criar e desenvolver uma rede de promoção da saúde em função dos vários objectivos a atingir, tendo como determinantes os contextos sócio-ambientais de cada uma dessas subunidades. É na socialização tanto dos problemas como das respostas que se pode manter um tal sistema no sentido certo para atingir os objectivos desejados. É com os actores da comunidade local que as políticas sociais podem ser melhor aplicadas e que as respectivas necessidades específicas podem ser melhor captadas e respondidas.

Neste sentido, é útil fazer uma referência às conclusões da reunião da OMS para a Europa realizada em Baku, em Setembro de 2011, e na qual foram fixadas as Metas para a Saúde em 2020. Entre as estratégias identificadas está o “Investimento na saúde das pessoas e no empower das comunidades”. As metas selecionadas para esse fim estão centradas na saúde dos jovens, dos idosos, nos grupos vulneráveis, incluindo as minorias étnicas, apresentando-se como exemplo a diminuição da pobreza das crianças. As propostas que actualmente estão em discussão relacionadas com as metas desta estratégia abrangem vários eixos, destacando-se a economia (emprego, aposentados, lazer), saúde (qualidade de vida percebida, mortalidade e esperança de vida, morbilidade e alimentação), educação (anos completos de escolarização, literacia, competências adquiridas), societal (acesso aos cuidados de saúde, voluntariado), segurança (segurança pessoal, diminuição do sentimento de insegurança), ambiente (acesso e qualidade dos transportes públicos, habitação, ambiente laboral, poluição, acesso a água potável).

O empowerment das comunidades implica que as políticas de saúde que tenham uma visão sistémica devem ser centradas nas pessoas e orientadas para o seu quotidiano, e em que tanto os indivíduos, como as famílias e as comunidades estão em condições de participar decisões que respondam às suas expectativas e necessidades de uma forma compreensiva. O principal desafio desta estratégia está na evolução dos sistemas de saúde que sejam acessíveis e cubram todo o espectro da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento e da reabilitação, sem encargos adicionais paras os cidadãos.

José Garibaldi, M:.M:.

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