Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

11 de julho de 2025

O Cerco Diplomático que Imobiliza a Maçonaria masculina e divide a Ordem

 



O Cerco Diplomático que Imobiliza a Maçonaria masculina e divide a Ordem


Autor:  Iván Herrera Michel

                


A história da Maçonaria não pode ser contada sem mencionar a sua política inter-obediencial, porque também aí se vem jogando o destino da Ordem.             

O que é apresentado como respeito por uma tradição partilhada tem sido frequentemente instrumentalizado para construir um circuito interno chamado "regularidade", que constitui um modelo diplomático que agrupa as Grandes Lojas masculinas do mundo sob uma estrutura de poder extremamente eficaz que, durante mais de um século e meio, foi centralizada pela Grande Loja Unida de Inglaterra (GLUI /UGLE), que convertida por si própria no epicentro e árbitro do que pode ou não ser chamado de Maçonaria.

 O que temos diante de nós é um cerco diplomático altamente eficaz, constituído por uma rede de condições tácitas que impede inúmeras Grandes Lojas masculinas de exercerem a sua política externa de forma autónoma, por receio de perderem o apoio de uma autoridade que elevaram ao posto de reitor

moral, numa política de contenção que define com quem se pode dialogar e quem nem sequer deva ser olhado.

Trata-se de um sistema de vigilância, com estruturas regionais, que produz efeitos directos na base maçónica e se sustenta, em grande parte, graças a uma gestão estratégica da informação. Com o tempo, esta dinâmica sistémica produz uma cultura de obediência acrítica que corrói o próprio sentido de deliberação. O maçon de base, em vez de ser um sujeito activo na vida institucional, é reduzido a um simples executor de políticas alheias e externas, desconhecendo muitas vezes que as suas Lojas não são sequer autónomas para decidir a quem apertar as mãos. A consequência é um empobrecimento do pensamento maçónico no seu todo, que acaba por priorizar a disciplina em detrimento da reflexão e o alinhamento em detrimento da fraternidade.   

Uma Grande Loja masculina deseja estabelecer laços com uma obediência mista ou feminina? Deseja participar num congresso com maçons ou delegações liberais? Está interessada em assinar um acordo bilateral com alguma confederação aberta à diversidade? Qualquer acção deste tipo significa a expulsão imediata e a perda de validação do exclusivo circuito denominado como "regular".               

Esta forma de exercer controlo não é nova. Começou a tomar forma com nitidez em 1877, quando o Grande Oriente de França decidiu não se imiscuir mais nos assuntos religiosos, respeitando os seus espaços naturais, e em resposta a GLUI rompeu relações e articulou uma doutrina de exclusão sob o nome de "regularidade". A partir de então, o reconhecimento deixou de ser um gesto fraternal entre iguais e transformou-se numa concessão condicional, sujeita ao cumprimento de uma lista de requisitos inquestionáveis.

Mais tarde, em 1929, com um enfoque geopolítico, a GLUI codificou a sua doutrina do "regularismo subserviente" nos célebres "Princípios Básicos para o Reconhecimento", que converteram a subordinação no novo passaporte diplomático. E, após a Segunda Guerra Mundial, Londres reforçou o seu papel de centro do "mundo maçónico anglo-saxónico", incentivando a formação de blocos fechados de obediências, onde o diálogo só é possível entre iguais em conformidade / acatamento.

Na América Latina, o modelo consolidou-se na Cidade do México a partir de 1952, quando a Segunda Conferência Maçónica Interamericana (CMI), originalmente concebida como um espaço pluralista para o encontro das diversas tradições maçónicas do continente, foi cooptada pelas Grandes Lojas masculinas alinhadas com Londres e transformada numa estrutura regional de supervisão do regularismo britânico. Desde então, a filiação na CMI depende da aprovação das potências anglo-saxónicas, o que exclui efectivamente  da sua amizade os membros de todas as obediências liberais, mistas ou femininas

Esta mudança teve consequências em todos os países, uma vez que as Grandes Lojas masculinas começaram a subordinar a sua política externa às directrizes emitidas por Londres e administradas regionalmente pelo CMI. E como se não bastasse, em 1995, também no México, foi fundada a Conferência Mundial das Grandes Lojas Masculinas, que acabou por reforçar o modelo à escala global, consolidando um bloco exclusivo para as Obediências dispostas a submeter-se, sem questionamento, aos requisitos estabelecidos em 1929.

Tratam-se de estruturas que funcionam como engrenagens subordinadas dentro de um conjunto maior que lhes marca o ritmo e lhes dita a sua agenda. Dizer que a adesão a estes princípios é "voluntária" é esquecer que muitas Grandes Lojas da região foram induzidas a aceitar tais estruturas como o único meio de relacionamento internacional, por receio de se tornarem marginalizadas aos olhos dos seus pares. O que é apresentado como um acordo livre é, muitas vezes, um acto de sobrevivência diplomática num ambiente de exclusão estrutural. O preço tem sido um afastamento cada vez maior da realidade social, não fruto de um processo latino-americano de deliberação soberana, mas antes a reprodução acrítica de critérios externos que não se relacionam com a realidade social, cultural ou filosófica das nossas nações.            

Para garantir a estabilidade do sistema, foram criadas estruturas de articulação diplomática (congressos, associações, confederações) para atuarem como guardiãs e legitimadoras do modelo excludente. Na prática, são espaços onde a doutrina única é reproduzida e se reforçam as barreiras que impedem muitas Grandes Lojas de considerar relações mais amplas, o verdadeiro pluralismo ou de se abrirem às críticas e reformas que as suas bases reclamam.                 

O mais preocupante é que a vasta maioria dos Maçons comuns desconhece por completo o cerco diplomático que silencia os seus debates. Ignoram que muitas das suas Grandes Lojas não decidem por si próprias com quem se associam, mas antes acatam o que os outros definem, e para reafirmar a sua devida obediência, os seus Grão-Mestres reúnem-se periodicamente. Ignoram que por detrás de cada recusa em participar num congresso misto, responder a um convite ou assinar um tratado, reside uma política de controlo implacável que torna qualquer iniciativa de diálogo punível e transforma  em ousadia qualquer tentativa de fraternidade sem discriminação.                            

Trata-se de um cerco que não opera explicitamente, mas esconde-se atrás de declarações de lealdade, de «landmarks», de tradição, etc. Os líderes têm plena consciência das limitações impostas pelo modelo, mas preferem não as admitir aos seus membros. Escondem-se atrás de tecnicismos, adiam decisões ou recusam convites com desculpas que mal camuflam a submissão predefinida. Assim, o controlo é mantido simplesmente incutindo o medo do exercício da soberania e a retórica de que as suas Lojas operam com base em fundamentos doutrinários.                 

São reflexões que já não podem permanecer relegadas ou sussurradas, devendo ser trazidas para a ágora Maçónica, o espaço ritual dedicado ao bem comum e às decisões quotidianas. Porque, se a Maçonaria quiser acompanhar o ritmo do seu tempo, já não pode aceitar tutelas ou a permissões para agir.

Talvez seja altura de parar de esconder fissuras e disciplinar pessoas desobedientes, e começar a construir pontes de uma vez por todas entre mundos que já coexistem.

Iván Herrera Michel


(selecionado do Blog «Pido la Palavra», de 27 de julho de 2025, tradução livre por Salvador Allen:. M:.M:. / Blog «Comp&Esq» / Blog «R:.L:. Salvador Allende» - GOL:. , Lisboa)


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