Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

2 de março de 2021

A BIOÉTICA em contexto de PANDEMIA

 


 “A BIOÉTICA em contexto de PANDEMIA (2019 A 2021)”

1/ INTRODUÇÃO

Ousei propor, e fui compreendido por quem me sugeriu este Tema, outro Título para esta minha “falação” (como dizia o saudoso Fernando LOPES-GRAÇA) que realce a importância da BIOÉTICA, isto é, do raciocínio ÉTICO no que diz respeito ao Ser Humano.

Há que assumir que experimentamos, cerca de “…8,4 mil milhões de indivíduos…” (1) neste tempo presente, um estilo de Vida diferente do “nosso habitual” pois a PANDEMIA (2) provocada pelo Coronavirus SARS-Cov-2 invadiu, à escala GLOBAL, o quotidiano do Ser Humano pondo em causa a sua própria sobrevivência.

Se recuarmos no tempo Histórico constataremos que no “…Período Paleolítico…o espírito nómada era a regra...” (3) e que a esse se seguiu a chamada Revolução Neolítica com a qual “…se passou à <vida> sedentária propiciada pela descoberta de duas técnicas fundamentais, a cultura da terra e a domesticação dos animais <o que levou a que> nos povoados neolíticos <portanto, concentrações urbanas> os Seres Humanos vivessem em relação íntima com os animais convertidos em ajuda…para o cultivo da terra e em suplemento proteico na sua alimentação…” (4)

Sucede que a contaminação Viral decorre de Reservatórios naturais que são os animais (que alimentam a sua própria existência) e de espécies Susceptíveis de serem contaminadas, como os Seres Humanos, que perpetuam a sobrevivência Viral à custa destes últimos cujo sistema Imunológico não está, ab initio, preparado para se defender. Portanto, “…a proximidade entre os animais e os indivíduos <(Seres Humanos)>...permite concluir que as infecções Epidémicas…são devidas, em geral, à alteração ou <à> rotura dos equilíbrios Ecológicos…” (5) A peculiar Inteligência da espécie Humana “…permite-lhe estender o seu domínio ao conjunto da Natureza…<e considerar> que todas as outras espécies biológicas têm de estar ao seu serviço…” (6)

.(1)JACQUES SAPIR, “A Economia da produção das Vacinas e o exemplo das mobilizações industriais”, www.les-crises.fr/...: p 1

(2,3,4,5,6) DIEGO GRACIA, “Pandemias”, EIDON-Editorial, nº 53, Julho/2020: pp 1-2 

Mas este SARS-Cov-2 é novo?

Não, não o é, mas há que dizer que pertence ao Grupo Viral dos Coronavirus e que, tal

como os seus “familiares”, está presente desde há muito “…nos seus Reservatórios naturais em certos animais <ainda> não bem identificados…<mas> num equilíbrio estável entre Hospedeiro e Reservatório…” (7) <o qual, equilíbrio> “…foi rompido pelo Ser Humano por motivos…baseados, segundo parece, em tradições/<convicções> ancestrais sobre as virtudes curativas e vigorizantes do consumo de certos animais…” (8)

Aqui chegados há que atender à conclusão assumida por DIEGO GRACIA:

“…é da nossa exclusiva responsabilidade que esse equilíbrio se mantenha ou não, eventualmente, sustentável…” (9)

2/ PANDEMIA e abordagem BIOÉTICA

O conceito de BIOÉTICA (e a sua estruturação) surgiu há cinquenta anos pela introspecção de duas Personalidades, a saber:

a) “…Van Rensselear POTTER, Investigador norte-americano em MADISON (EUA) na área

da ONCOLOGIA que, em Dezembro de 1970, publicou um Artigo intitulado “Bioethics,

The Science of Survival” o qual viria a constituir um Capítulo do seu Livro “Bioethics,

Bridge to the Future”, publicado em Janeiro de 1971…” (10);

b) “…Andre HELLEGERS, Médico Obstetra Holandês da Universidade de GeorgetownWASHINGTON (EUA), e que fundou o “JOSEPH and ROSE KENNEDY Institute for Study of Human Reproduction and Bioethics” assim introduzindo o termo Bioética pela segunda vez, mas desconhecendo a sua utilização anterior…” (11)

Para melhor compreender o “caminho” que este termo – Bioética – tomou recorramos a Mª do CÉU PATRÃO NEVES que nos recorda que: “…é…derivado da etimologia Grega, composto pela justaposição de BIOS (vida) e <de> ETHOS (ética)…” (12) pelo que, “…neste contexto morfológico e etimológico, Bioética exprime uma Ética aplicada à Vida…” (13) Valores como a Verdade, a práctica do Bem, o Conhecimento, a Ética, a Ciência evoluíram com SÓCRATES e PLATÃO (séc. IV a.C.), ARISTÓTELES (séc. III a.C.), Francis BACON e René DESCARTES (séc. XVII), KANT (séc. XVIII) e, mais recentemente, Augusto COMTE (séc. XIX). (7,8,9) DIEGO GRACIA, “Pandemias”, EIDON-Editorial, nº 53, Julho/2020: p 3 (10,11,12,13) Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016: p 27 

No entanto é no séc. XX, especialmente após a IIª Guerra Mundial, que há um “…novo despertar da Consciência Humana…em torno das relações entre Ciência e Ética, da finalidade da Ciência e do papel da Ética…tornando-se evidente

 …que o progresso científico nem sempre resulta num Bem maior para o Homem <podendo>...conduzir ao seu sofrimento e manipulação…;

 …que a Ciência não constitui um valor em si mesma…mas deve antes manter-se como um instrumento de realização das finalidades Humanas…;

 …que nem tudo o se pode fazer se deve <fazer>...e compete à Ética pronunciar-se sobre o que deve ser feito…” (14)

Em suma, tanto a Ciência como a Ética encontraram o seu caminho, os seus deveres e os seus limites visto que “…a Ciência perdeu o seu estatuto de moralmente neutra, …o Cientista perdeu a sua inocência, a Ciência reconheceu o possível contributo da Ética e o Cientista ganhou humildade no apelo que ele próprio lança à Ética para concorrer para a legitimidade moral do progresso das ciências. É este o berço da Bioética…” (15)

Desta forma poderá “…apelar-se à Ética para que intervenha na actividade científica impondo o sentido do dever…de modo a obstruir, e mesmo travar, o poder da Ciência…” (16) Recuemos agora até 1979, ano em que foi publicado o Livro “Principles of Biomedical Ethics” da autoria de Tom BEAUCHAMP e James CHILDRESS, para recordar os “…quatro Princípios bioéticos essenciais:

…respeito pela autonomia…exigindo a veracidade;

…beneficência…exigindo a confidencialidade;

…não-maleficência…exigindo a fidelidade;

…justiça distributiva…exigindo privacidade…” (17)

 (14) Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016: p 18

(15-16) Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016: p 19

(17) Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016:p 53 

PIRES JORGE, “A BIOÉTICA em contexto de PANDEMIA (2019 A 2021)”

3/ ACESSO aos Cuidados de Saúde em PANDEMIA

Em 1921 WILLIAM MAYO disse:“…o maior activo de uma Nação é a Saúde da sua gente…” (18)

Escrevi em 2013 que “…O Ser Humano usufrui da Solidariedade dos Outros seja individualmente seja enquanto Sociedade organizada. Desta <organização> decorre o <Serviço Nacional de Saúde>,…complementado (sempre que necessário) por Entidades privadas, que assume DIARIAMENTE a responsabilidade de cuidar dos Cidadãos residentes em Portugal no âmbito da preservação da Saúde de cada um seja com carácter preventivo, seja com carácter terapêutico, seja, ainda, com carácter paliativo…” (19)

 Nesta PANDEMIA constata-se um enorme risco de contágio pessoa-a-pessoa pelo que há a necessidade do distanciamento social, do uso de máscaras-tampão das vias aéreas superiores e do tubo Digestivo alto, assim como do reforço da Higiene Individual. No entanto não tem sido linear abdicar da Autonomia de cada um, isto é, do seu querer individual o que propicia a propagação desta doença Viral. Muitos indivíduos, embora (felizmente) cada vez em menor número, invocam a liberdade individual para justificar a sua não-aceitação das Normas Sanitárias recomendadas pela Direcção-Geral de Saúde o que contraria, tragicamente, o Princípio da Solidariedade e o Princípio da não-Maleficência em relação aos Outros que com esses se cruzam. “Grupos” como o dos “Médicos pela Verdade” e como o “Movimento anti-Vacinas”, ou outros de índole e objectivos equivalentes, demonstram, além duma óbvia ignorância, um Egoísmo/Ego-centrismo que se poderá apelidar de Individualismo Libertário, ou seja, transportam a sua liberdade pessoal até ao confronto com a Liberdade de todos os Outros. Cabe aqui realçar que “…quanto mais o próprio age sobre o Outro em nome da sua Liberdade, menos Liberdade assiste a este último,…e esta usurpação da Liberdade do Outro…corresponde à diminuição do Estatuto de Pessoa do Outro, à destituição da sua Dignidade…<pelo que> o desafio é ser com o Outro e não à custa do Outro; este é verdadeiramente o limite que se coloca à Liberdade Humana em geral…” (20)

(18 )WILLIAM MAYO (in LEONARD L. BERRY e KENT D. STELMAN, “Lições de Gestão da Clínica MAYO”, Bookman Companhia Editora, 2008. p 273)

(19) A.RAMON DE LA FERIA, “Saúde e Ética Assistencial - Os recursos para quem deles necessita” (in “RACIONAMENTO versus

RACIONALIZAÇÃO em SAÚDE”- Coordenação : Prof. Doutor Adalberto Campos Fernandes, Cadernos Saúde e Sociedade, DIÁRIO de

BORDO editores, 2013: p 24)

(20 )Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016: p 143 

Neste momento torna-se imperativo que prevaleça o Princípio da Responsabilidade o qual exige “…a rejeição inequívoca da indiferença perante os Outros e as suas acções, perante a Comunidade e as suas decisões, de recusa manifesta de demissão do que lhe compete nas suas relações pessoais e como membro da Comunidade (21)… <Assim> viver isolado como se os Outros não existissem não se coloca como opção e viver com os Outros exige não só fazer concessões – ser tolerante – mas requer também aprofundar valores comuns como os únicos critérios para as incontornáveis decisões sobre a Vida Comunitária…para os Indivíduos, para as Sociedades e para a Humanidade…” (22). Por conseguinte “…não podemos ficar indiferentes à Vida da Comunidade Humana a que pertencemos…<e devemos assumir> uma Cidadania esclarecida … responsável…” (23)

 (21) Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016: p 130

(22) Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016: p 129

(23) Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016: p 130

4/ VACINAS (criação/industrialização e distribuição/”comercialização”)

Há que sublinhar “…o êxito dos Cientistas que conseguiram elaborar Vacinas eficazes (70% a 95% de aquisição de Imunidade) …em cerca de um ano …<mas>… o desafio industrial é imenso e a competição, tanto económica como geopolítica, anuncia-se feroz…(24).  Quanto às Vacinas disponíveis “…teremos pelo menos 13 Vacinas…no decorrer do ano de 2021, <que> recorrem a quatro … técnicas:

1/RNA mensageiro, p. ex.: Pfzer/BioNTech (EUA e ALEMANHA) e Modena + NIAID (EUA)… ; 2/Vector viral não replicável, p. ex.: AstraZeneca + Univ. Oxford (SUÉCIA-Reino Unido) e Inst. Gamaleya-Sputnik (RÚSSIA)… ; 3/Virus inactivado, p. ex.: Sinovac-CoronoVac (CHINA) e Valneva (FRANÇA-ÁUSTRIA)… ; 4/ Adenovirus recombinante, p. ex.: CanSinoBIO-ADNS5-NCoV (CHINA)…” (25)

A referida competição “…avalia-se também nas estratégias de comercialização …<como a elaboração de> de acordos de licenciamento com países que têm capacidade de produção mas que estão mais atrasados (p. ex.: Índia, Singapura, Malásia, mas também Egipto e Argélia)…” (26)

(24) JACQUES SAPIR, “A Economia da produção das Vacinas e o exemplo das mobilizações industriais”, www.les-crises.fr/...: p 1

(25) JACQUES SAPIR, “A Economia da produção das Vacinas e o exemplo das mobilizações industriais”, www.les-crises.fr/...: p 2

(26) JACQUES SAPIR, “A Economia da produção das Vacinas e o exemplo das mobilizações industriais”, www.les-crises.fr/...: p 3 

Se considerarmos que ”… 6 mil milhões de Pessoas deveriam ser vacinadas … até ao fim do ano de 2021, o que exigiria … 12 mil milhões de doses, …<pode imaginar-se que> …este esforço implicará formas de cooperação industrial que respeitem a soberania das Nações <o> que não pode passar senão por Acordos de Licença…” (27)

(27) JACQUES SAPIR, “A Economia da produção das Vacinas e o exemplo das mobilizações industriais”, www.les-crises.fr/...: p 9 


5/ COMENTÁRIO final

A BIOÉTICA constrói-se (e consolida-se) com os Outros e não com pré-decisões impostas individualmente. Dito isto a Solidariedade Comunitária SEMPRE prevalece sobre o Individualismo Libertário e nunca este último poderá invocar pseudo-direitos que, se fossem praticados, prejudicariam toda a Comunidade Humana a níveis Sanitário, Social e Económico.

Pires Jorge, M.'.M.'.


BIBLIOGRAFIA consultada

A.RAMON DE LA FERIA, “Saúde e Ética Assistencial - Os recursos para quem deles necessita” (in “RACIONAMENTO versus

RACIONALIZAÇÃO em SAÚDE”- Coordenação : Prof. Doutor Adalberto Campos Fernandes, Cadernos Saúde e Sociedade, DIÁRIO de

BORDO editores, 2013)

DIEGO GRACIA, “Pandemias”, EIDON-Editorial, nº 53, Julho/2020

JACQUES SAPIR, “A Economia da produção das Vacinas e o exemplo das mobilizações industriais”, www.les-crises.fr/...:

Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da BIOÉTICA”, GLACIAR, 2016

WILLIAM MAYO (in LEONARD L. BERRY e KENT D. STELMAN, “Lições de Gestão da Clínica MAYO”, Bookman Companhia Editora,

2008. p 273)

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