Transcrito, com a devida vénia e respectiva autorização, do Blogue Jakim&Boaz. Texto de Roger Dachez
Grande Vazio do Segundo Grau ...
Um contraste estranho
É uma observação bastante impressionante que se pode fazer sem ter uma longa experiência maçónica - é suficiente ter alcançado o grau de Mestre e, especialmente, ter viajado um pouco por lojas de outro Rito, o que francamente todo o Maçom interessado e ansioso para compreender a «arte», deveria fazer imperativamente desde o início de sua vida maçónica. [1] Estou a referir-me à estranha assimetria que existe entre o primeiro e o terceiro graus, por um lado, e o segundo, pelo outro.
É na verdade muito fácil observar que, qualquer que seja o Rito da Loja, a Iniciação ao grau de Aprendiz responde a um padrão / esquema bastante constante: introduzido com os olhos vendados, o candidato é obrigado a fazer três percursos em volta da Loja. - com provas mais ou menos sofisticadas, por vezes reduzidas a quase nada (Emulação), outras vezes mais complicadas (como o RER, o REAA ou mesmo o Rito Francês nas suas formas mais "tradicionais" – então é-lhe dada a "Luz" e, claro, a cerimónia inclui a prestação de um juramento, a “tomada de Obrigações”.
Da mesma forma, a cerimónia de elevação ao terceiro grau é praticamente a mesma em todos os ritos: resume-se à lenda de Hiram, que o candidato é levado a reviver para "dar nascimento" a um novo Mestre.
É com o segundo grau que a viagem pelos Ritos se torna uma experiência exótica: nunca mais é a mesma coisa. Pequeno inventário ...
No REAA , deve completar cinco viagens durante as quais lhe são apresentados os famosos “cartazes”, painéis nos quais se inscrevem séries de cinco palavras que designam, sucessivamente, artes liberais, ordens de arquitectura, sentidos, “grandes iniciados”. Além disso, a lista destes últimos suporta inúmeras variações que refletem muito mais o espírito e as modas de uma época do que o legado de uma tradição imemorial.
Ao longo do caminho, o candidato é incumbido de transportar uma série de ferramentas com as quais caminha. Mais uma vez, os pares de ferramentas com que lhe fornecemos - geralmente damos dois de cada vez -, a sua sequência, varia muito de uma geração de ritual e de uma Obediência a outra - dependendo das fantasias da “Comissão de Rituais". A última viagem é clássicamente feita de mãos vazias e termina com uma exclamação retumbante "Glória ao Trabalho! ".
O Arquétipo do Companheiro
No Rito Francês, por vezes é a mesma coisa, ou quase, do que no REAA, mas existem muitas outras variantes interessantes: por exemplo, a construção mais ou menos fictícia de um muro, ou o traçado duma estrela de cinco pontas. Ou ainda a chamada variante “Vilmorin”, onde tudo se baseia no trigo que germina e anuncia uma futura colheita ...
No RER, o cenário muda totalmente. O Candidato desta vez é convidado a completar cinco viagens… mas fica dispensado das duas últimas. Durante as suas três viagens efectivas, nem ferramentas nem cartazes, mas uma variante do "teste do espelho", durante o qual será convidado a examinar-se "tal como o é ele próprio".
Na Emulação, nem cartazes, nem ferramentas, nem espelho, mas o candidato sobe ficticiamente os cinco degraus de uma escada imaginária que o leva ... à “Câmara do Meio” – que em Inglaterra está no segundo e não no terceiro grau (lembremo-nos por enquanto desta curiosa contradição). Em seguida, ele é conduzido diante do painel do grau - que não tem nenhuma semelhança com o painel de Aprendiz - e é-lhe contada a bela história dum massacre bíblico!
Painel do Segundo Grau na Inglaterra
Finalmente, existem constantes, e em particular a Estrela Flamejante, no centro da qual está a letra "G" - embora entre os rituais antigos ou ingleses (“G” signifique Geometria e Deus – “God”) e os rituais franceses do século XIX (“G” significa agora muitas coisas que começam com G, incluindo Genio e Gravitação ...) existem ainda por vezes variações bastante perversas ...
Pode-se portanto, com razão, fazer a pergunta: por que razão todas estas diferenças entre as muitas versões do grau de Companheiro, enquando as outras duas são relativamente bastante homogéneas.
A resposta é simples e poderia ser formulada um pouco ironicamente, mas não totalmente falsa: porque o segundo grau não existe ...
Pequena história do grau de Companheiro
Alguns lembretes são aqui necessários sobre a origem de certas denominações e sobre o seu conteúdo. Durante o período operativo documentado (séculos XII-XV) na Inglaterra, sabemos que o Aprendiz (“Apprentice”) é um jovem em formação, praticamente sem quaisquer direitos. As formalidades da sua admissão "simbólica" sobre o canteiro eram aparentemente muito reduzidas: uma leitura dos Antigos Deveres («Old Charges”) e, sem dúvida, um juramento sobre a Bíblia - ou pelo menos sobre o Evangelho.
O Companheiro (“Fellow”) é, por outro lado, um trabalhador realizado, livre para procurar emprego, mas que não se pode estabelecer como um Mestre - isto é, como um empregador ou, num grande canteiro eclesiástico ou principesco, como “chefe do canteiro ”. Nada diz que o Companheiro, naquela época em Inglaterra, tivesse que participar numa cerimónia específica para ser reconhecido como tal, e mesmo até tudo sugere o contrário. A qualidade de Mestre, por outro lado, e enquanto tal, era apenas um estatuto civil.
Na Escócia, na mesma época - que irá durar neste país até o século XVIII - o padrão é um pouco diferente: o Aprendiz é primeiro simplesmente "registado" (“booked ou registered”) pelo seu Mestre, antes de ser apresentado oficial e ritualmente à Loja da sua jurisdição, alguns anos mais tarde. Ele torna-se então, após uma cerimónia da qual conhecemos, no final do século XVII, em qualquer caso, as características essenciais [2], um Aprendiz Inscrito (“Entered Apprentice”). Para muitos trabalhadores, a carreira terminava neste ponto. Tornando-se “Journeymen”, homens pagos à tarefa, eles exerciam a sua profissão ao longo da sua vida como "eternos aprendizes" ...
Para outros, uma segunda etapa ritual esperava-os: o do Companheiro ou Artífice (“Fellowcraft ou Craftman “), qualidade igualmente adquirida durante uma recepção ritual na Loja. Aqui, novamente, conhecemos os elementos principais. Na verdade, essa progressão só fazia sentido se se visse, não no âmbito privado da loja, mas naquele, público e civil, da Incorporação (a guilda municipal dos Mestres burgueses) de vir a tornar-se, por sua vez, um Mestre: por sucessão familiar, casamento ou compra. Por esta razão também, este posto era denominado “Fellowcraft” ou “Master”. Mas o estatuto de Mestre, novamente, era apenas uma qualificação dentro da cidade e não comportava nenhum aspecto ritual.
É mais ou menos este último sistema que era praticado em Londres, em 1723, quando a primeira Grande Loja publicou seu Livro das Constituições, compilado pelo Reverendo James Anderson, escocês de origem cujo pai havia pertencido à Loja de Aberdeen..
Por volta de 1725, uma novidade apareceu em Londres: o "Mestre" por sua vez tornou-se um grau, que se adquiria numa Loja durante uma cerimónia específica - e, portanto, nova. A principal contribuição é a da lenda de Hiram, que estrutura este novo grau. Em 1730, a muito famosa divulgação de Samuel Prichard, “Maçonaria Dissecada” (“Masonry Dissected”), consagrará essa divisão em três graus que se imporá - mas somente em algumas décadas - como o padrão da chamada maçonaria "simbólica".
Painel do Grau de Mestre (início do século XIX)
Além disso, o desenvolvimento não parou por aí: entre 1733 e 1735, embora o grau de Mestre ainda não fosse universalmente adoptado - longe disso - na Inglaterra, apareciam já novas denominações, em particular o de "mestre escocês" (« Scots master ».). Mesmo que não saibamos a natureza exacta deste grau e, portanto, do seu conteúdo, é certo que por volta de 1740-1745, era praticado, pelo menos na Irlanda, um grau de Arco Real considerado como a conclusão da Maçonaria simbólica e que em Paris já se conheciam então, pelo menos quatro ou cinco graus depois do grau de Mestre (em particular os de Mestre Perfeito, Mestre Irlandês, Eleito e Escocês, e muito em breve o grau prestigioso de Cavaleiro do Oriente ou da Espada (“Chevalier de l'Orient ou de l’Épée”). A partir de 1745 e durante pelo menos vinte anos, a inflação do número de Altos Graus será impressionante: contam-se cerca de trinta por volta de 1760 e várias dezenas antes do final do século XVIII ...
Podemos, portanto, verificar que opor uma Maçonaria do tipo "operativo" em três graus, a uma Maçonaria de origem exclusivamente "especulativa" com um número indefinido de graus, é ao mesmo tempo, erróneo e sem objecto. Em primeiro lugar, porque no período operativo provavelmente havia apenas um grau e na Escócia às vezes dois, mas nunca três no sentido estrito do termo.
Em segundo lugar, porque a transformação especulativa afectou em primeiro lugar e antes de tudo os próprios "graus do Métier" e que a evolução do sistema de graus foi imperceptível e suave durante aquele período da fundação - mesmo que alguns protestassem contra o grau de Mestre em Londres por volta de 1730, mas sobre argumentos muito diferentes. Enfim, porque a teia lendária que define e caracteriza estes graus estabelece entre eles uma continuidade inegável: não é mais do que, ao fim e ao cabo, apenas o desenvolvimento das virtualidades simbólicas contidas nos primeiros graus.
O vazio do segundo grau
Mas voltando ao grau de Companheiro. Quando o sistema de três graus foi estabelecido, de que a famosa revelação de Samuel Prichard, “A Maçonaria Dissecada” (“Masonry Dissected”) (1730), testemunha pela primeira vez, podemos ver claramente o que aconteceu: o novo grau não é realmente o terceiro, mas bem mais o segundo!
Na verdade, o grau de “Fellowcraft” ou “Master” da Escócia do século XVII incluía uma saudação específica que era chamada - e ainda se chama no Reino Unido - de “Cinco Pontos do Companheirismo” (“Five Points of Fellowship”), mas não existia nenhuma lenda explicativa do seu significado. Em particular, e para ser claro, nada nos diz que se tratava então de um rito de "recuperação" («relèvement»)!
Quando o sistema foi estabelecido em três graus, os Cinco Pontos acabam por ser reencontrados no terceiro grau (embora permanecessem os "Pontos dos Companheiros" na Grã-Bretanha, para se tornarem apenas no Continente, e primeiro na França, os "Cinco Pontos Perfeitos de Mestria”), mas agora eles servem como uma explicação para a fase final da lenda de Hiram, quando o Mestre assassinado é descoberto. Percebeu-se então o que fazia com que o coração do antigo grau de "Companheiro ou Mestre" dele tivesse sido tirado. Não sobrou grande coisa para o preencher ...
O símbolo fundamental
À parte um elemento que então ganha novo relevo: a letra G, revelada ao Companheiro na Câmara do Meio (que na Grã-Bretanha sempre permaneceu no segundo grau e nunca alcançou o terceiro). Esta «Câmara» encontra-se em "elevação" uma vez que é acedida por uma escada em forma de caracol, que se mostra por cinco degraus. Evoca as salas que ficavam de cada lado do santuário, no Templo de Salomão, e que, aliás, o texto bíblico menciona de resto com muita precisão [3]. A contemplação desta letra, permanece portanto, o único "segredo" específico ao grau de Companheiro.
A lenta emergência do grau de Companheiro
Durante grande parte do século XVIII, na França como na Inglaterra, o grau de Companheiro quase não tinha existência autónoma. Geralmente é dado na mesma noite do que o de Aprendiz, na mesma cerimónia, e resulta de mais três voltas suplementares e um novo juramento. É apenas gradualmente, sem dúvida que primeiro na Inglaterra por volta de meados do século, depois na França no último quarto do mesmo século, que ele se tornará autónomo, e adoptará um conteúdo mais substancial [4]. Esse desenvolvimento dar-se-á em lugares diversos e, muitas vezes, muito distantes, em épocas diferentes, e isso reflecte a incrível diversidade do seu conteúdo, conforme testemunham ainda os rituais contemporâneos.
É sem dúvida este grau que, na Maçonaria "azul", mais inspirou a criatividade dos autores de rituais. Dependendo das épocas, com a narrativa bíblica inglesa, a mística contemplativa do RER no final do século XVIII, o obreirismo do século XIX, com as ferramentas, a preocupação quase académica expressa pelos "cartazes", até o mais recente fascínio do Compagnonnage francês com o episódio da partida final com a bolsa sobre as costas, o grau de Companheiro foi o reflexo das influências que foram exercidas sobre a Maçonaria, de um lado ou do outro do Canal da Mancha.
Isto traduz bem até que ponto, mesmo que veicule algumas invariantes, necessariamente ao mesmo tempo simples e antigas, a forma e as utilizações desta Maçonaria estão intimamente ligadas à cultura ambiente e às preocupações daqueles que chegaram às Lojas, em todos os lugares e em todos os tempos ...
Roger Dachez
(Seleccionado e traduzido a partir do Blog «Les Pierres Vivants» - Jan.2015, por “jakim & Boaz”)
[1] NUNCA se deve ouvir aqueles ou aquelas que dizem aos seus jovens irmãos ou irmãs que eles não devem visitar as lojas dum outro Rito, sob o risco de entrar em contacto com "falsas ideias" ou "baralhar o espírito". Isso é um absurdo absoluto ...
[2] Cf. os manuscritos do grupo Haughfoot (1696-c.1715).
[3] Cf. R. Dachez, 2 La Chambre du Milieu “The Middle Room, Conform, 2014
[4] Não nos esqueçamos também que durante muito tempo na Escócia, por vezes até ao coração do século XIX, mas também na Inglaterra às vezes bem no final do século XVIII, as Lojas ignorarão o grau de Mestre e manterão em uso o antigo sistema em dois graus !
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