Com a devida vénia e respectiva autorização transcreve-se este artigo de opinião do Dr. Mário Jorge Neves
A Saúde Pública: que reforma?
A Saúde Pública é hoje considerada uma atividade central de um sistema de saúde, mediante a realização de estudos epidemiológicos necessários para orientar com mais eficácia a prevenção dos riscos para a saúde, bem como a planeamento e avaliação da saúde que deve ter por base um sistema organizado de informação de saúde, de vigilância e de ação epidemiológica.
Promover a saúde, prevenir as doenças, organizar os serviços e dinamizar o envolvimento comunitário são os esteios da Saúde Pública.
Em 1988, a OMS definiu a Saúde Pública “ como um conceito social e político que visa a melhoria da saúde, uma maior longevidade e um crescimento da qualidade vida de todas as populações através da promoção da saúde, da prevenção das doenças, assim como por outras intervenções relativas à saúde”.
Até à eclosão da pandemia do Covid- 19, a Saúde Pública era vista pela generalidade dos cidadãos como sinónimo da mera intervenção legal dos delegados de saúde a nível das vistorias.
Com a pandemia e o incansável trabalho das equipas multiprofissionais da Saúde Pública no combate diário contra as cadeias de contágio, verificou-se uma forte tomada de consciência de que esta importante área dos serviços de saúde desempenhava um papel insubstituível na preservação dos níveis de saúde das populações.
A pandemia tem já um elevadíssimo custo humano, social e económico.
A nível político, tem colocado a descoberto a verdadeira “essência “ de diversos atores do panorama nacional.
À medida que este combate ganhou novos e mais complexos contornos, surgiram tentativas para aproveitar as dificuldades inevitáveis daí resultantes e delas retirar dividendos político-partidários.
Uma das consequências da atual situação pandémica foi colocar a nu as diversas fragilidades das sociedades, a começar pelos seus serviços de saúde e demais políticas públicas.
No caso concreto da Saúde Pública no nosso país, ainda antes de alguém imaginar que iria acontecer uma pandemia, surgiram preocupações da equipa ministerial quanto à necessidade inadiável de valorizar o papel deste sector de serviços e dotá-lo de meios mais adequados.
Culminando outras tentativas anteriores, a atual ministra da saúde e secretário de estado adjunto desencadearam em Novembro de 2019 um conjunto de contactos, visando a constituição de uma comissão multiprofissional encarregue de apresentar uma proposta de reforma para a Saúde Pública.
Em 18/2/2020, foi publicado em Diário da República o despacho de criação dessa comissão (nº2288/2020).
Esta comissão só teve duas reuniões presenciais, porque logo a seguir surgiu a pandemia e os primeiros confinamentos.
Apesar da grande maioria dos seus membros se encontrar na linha da frente desse combate no terreno, foi possível efetuar mais de 30 reuniões por videoconferência e entregar os vários documentos dentro dos prazos estipulados pela própria comissão.
Ao longo de 1 ano, a comissão desenvolveu a sua atividade com total independência e irá apresentar um relatório final intitulado “ Uma Saúde Pública para os cidadãos, para o Estado Social e com o horizonte de mais anos de vida com saúde”.
A realização, em plena pandemia, de um rigoroso “diagnóstico da situação” permitiu confirmar velhos problemas e referenciar outros mais agudizados com a atividade extenuante das equipas da saúde pública.
Desde logo, há que sublinhar que a pandemia só veio confirmar que a reforma da saúde pública é um imperativo incontornável.
E que, para isso, importa estabelecer, com urgência, um novo modelo de funcionamento, organização e gestão dos seus serviços.
Num momento em que se verificam alterações tão bruscas das condições de saúde e das ameaças à sua manutenção, é imprescindível dispor de um diploma que torne mais ágil o processo legislativo de definir novas respostas para novos problemas.
Uma reforma que valorize a Saúde Pública e a consagre como instrumento central na intervenção de defesa coletiva da saúde dos cidadãos, deve girar em torno dos seguintes aspetos fundamentais:
- Adequar as suas disposições à atual Lei de Bases da Saúde (Lei nº 95/2019).
- Conferir maior capacidade de intervenção de equipas específicas da saúde pública na vigilância e defesa sanitária das fronteiras, nomeadamente nos portos e aeroportos internacionais.
- Aprofundar a contínua diferenciação técnico-científica dos vários sectores profissionais.
- O número de profissionais dos centros de saúde pública deve ser ajuntado à dimensão, estrutura populacional e características epidemiológicas da sua área de intervenção, numa base de rácios.
- Flexibilidade organizacional e existência de equipas móveis para rápida intervenção no terreno em situações especiais que impliquem grave perigo para a saúde pública.
- Existência de mecanismos para, no cumprimento da Lei de Bases da Saúde, efetuar as adequadas avaliações dos impactes de programas, planos ou projetos, públicos ou privados, que possam afetar a Saúde Pública.
-Fortalecimento das funções de observatório de saúde para os serviços de saúde pública.
- Finalmente, da experiência acumulada e da evidência amargamente provada, existe uma medida nuclear sem a qual nenhum processo de reforma se traduzirá em resultados concretos para a efetiva dinamização da Saúde Pública, ou seja, os seus serviços não podem estar dependentes simultaneamente da DGS e das direções dos agrupamentos de centros de saúde.
Esta dupla tutela tem sido o fator responsável pela limitação do desenvolvimento das equipas de saúde pública, por deliberações contraditórias a nível local, que se traduzem em situações paralisantes e numa espécie de “garrote “ à agilidade de resposta exigível a essas equipas que se encontram permanentemente no terreno e a enfrentar “cara a cara” as ameaças à saúde das populações.
As equipas de saúde pública necessitam de autonomia na sua atividade e de laços mais reforçados com a DGS, tornando-se também claro que a própria DGS necessita de uma reformulação da sua estrutura orgânica e dos seus meios de resposta global.
A aproximação gradual das próximas eleições autárquicas fez despertar novos assomos da demagogia populista de alguns candidatos que, na falta de ideias realistas e fundamentadas, vêm agora publicitar pretensos “planos de contingência “ para Lisboa para responder a futuras pandemias para darem “previsibilidade, segurança e confiança social e económica”.
É impossível combater uma pandemia numa perspetiva local, aliás o exemplo desastroso da Espanha com as medidas ao “sabor” dos impulsos das comunidades autonómicas e dos ayuntamientos é tão evidente que deveria, por si só, refrear estas atitudes demagógicas.
Além disso, nos casos de Lisboa e do Porto, os amplos fluxos diários de trabalhadores com diversos concelhos tornam ainda mais inviável qualquer perspetiva local.
Como se tem constado pela experiência de vários países europeus, a começar pelo nosso, uma pandemia exige planos nacionais com rigorosa articulação dos vários níveis de serviços e da complementaridade das respetivas intervenções, onde a defesa sanitária das fronteiras assume uma importância central.
Uma pandemia é por definição a negação, à partida, de previsibilidades, de seguranças e de confianças sociais ou económicas.
O contributo politicamente sério na defesa da saúde da população de um município é, na minha simples opinião, a elaboração de planos municipais de saúde, onde se estabeleça um conjunto organizado, coerente e integrado de atividades da autarquia em torno de fatores que interferem, de forma direta ou indireta, com o estado de saúde da sua população.
Quem estiver, de fato, preocupado com a população de um dado município, deve começar logo por adotar medidas visando estabelecer aquilo que a própria OMS define como municípios saudáveis.
Mário Jorge Neves, médico, membro do Observatório de Saúde António Arnaut
* Declaração de interesses: integro a comissão da reforma da saúde pública.
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