«Regularidade» /Adogmatismo - A Maçonaria no Séc. XXI – que perspectivas?»
Este é talvez
um dos temas mais debatidos entre os investigadores que se têm debruçado sobre
a história e a situação actual da Maçonaria, porque a necessidade de
reconhecimento da “regularidade” entre Potências, tem sido usada pela GLUI e a
maçonaria anglo-saxónica como forma de exercer e expandir o seu poder e porque o
apego ao sentido dogmático ou não dogmático da prática maçónica foi, e continua
a ser, um dos mais importantes elementos de diferenciação dos dois principais
ramos da Maçonaria mundial.
Como diz
o historiador Roger Dachez,[1]
foi em Inglaterra que as palavras “regular” e “regularidade” fizeram a sua
aparição na linguagem maçónica. O sentido mais comum da palavra inglesa
“regular” é «banal, corrente, standard». A palavra “regular”
distingue assim os maçons «normais», conformes ao estatuto corrente, que
reconhecem uma autoridade oficial, face aos «irregulares» a quem não é reconhecido
um estatuto normal.
No século XVIII, é regular em Inglaterra uma Loja que se submete à autoridade duma Grande loja e…. que lhe pague as capitações. Os Regulamentos Gerais da G.L.L., publicados nas Constituições de 1723, definem claramente no seu ponto VIII, este conceito: “se um número qualquer de Maçons resolvem entre eles formar uma Loja sem patente do Grão-Mestre, as Lojas Regulares não poderão considerá-los ou reconhecê-los como Irmãos conveniente e correctamente constituídos, nem aprovar as respectivas actividades ou decisões».
A origem desta
disputa situa-se no primeiro quartel do Séc. XIX, com a defesa por uns da
versão inicial da Constituição da Grande Loja de Londres (de 1723) e, por
outros, das alterações que lhe foram sendo introduzidas até à sua versão última
da responsabilidade da Grande Loja Unida de Inglaterra – GLUI – constituída em
1813[2].
Mas a
polémica sobre a «regularidade» ou “irregularidade” das Grandes Lojas
estendeu-se às diferentes latitudes, em estreita relação com as influências geo-estratégicas
e políticas que lhe têm estado de um modo geral subjacentes.
De facto, com a Formação da G.L.U.I. ("Grande Loja Unida de Inglaterra") em 1813, o Grande Oriente de França passou a considerar-se herdeiro directo das Constituições de Anderson e a Obediência mais antiga no activo, não reconhecendo à GLUI a herança directa da G:.L:. de Londres, tendo por base as alterações doutrinais que entretanto esta introduziu. Este posicionamento reforçou as divergências entre as duas Obediências, que foram acentuadas no 3º quartel do Séc. XIX, com a aprovação pelo GOdF, no seu Convénio de 13 de setembro de 1877, da proposta do pastor Fréderic Desmons, no sentido de retirar a menção ao G.A D.U. do 1º Artigo da sua Constituição, na parte que apontava para que a Maçonaria tinha «por base a existência de Deus e a imortalidade da alma».
De acordo com os princípios aprovados, o novo texto constitucional do GOdF
preconizava que: “A Maçonaria tem por princípios a liberdade absoluta de
consciência e a solidariedade humana. Não exclui ninguém em razão do seu credo».
Este acto, a par da defesa pela Maçonaria francesa de temas sensíveis
como o ideal da República, da democracia liberal e da laicidade, originaram
diferenças conceptuais e políticas significativas que vieram a
justificar o corte oficial de relações entre ambas, passando a GLUI a não
reconhecer o GOdF como potencia «regular».
Esta posição foi reforçada posteriormente, com a adopção pela GLUI em 1929 dos «Princípios
Básicos para o reconhecimento das Grandes Lojas», obrigando estas a cumpri-los
para serem reconhecidas como «Regulares». O seu oitavo ponto, sobre as "Grandes
Lojas irregulares ou não reconhecidas”, ditava mesmo que “Existem
algumas chamadas potências maçónicas que não respeitam estas normas, por exemplo,
que não exigem de seus membros a crença num Ser Supremo, ou que encorajam seus
membros a participar como tais em assuntos políticos. Estas potências não são
reconhecidas pela Grande Loja Unida da Inglaterra como sendo maçonicamente
regulares, e todo o contato maçónico com elas é proibido.”
Assim se
“cavaram trincheiras” entre aquelas que se tornaram as duas principais tendências
da maçonaria mundial, que traduzem rivalidades históricas e diferenças reais de
abordagem espiritual, social e simbólica e que se dividem entre “regulares”
e “liberais”. A primeira de matriz anglo-saxónica e de cariz mais
conservador e a segunda representada sobretudo pelo GOdF e pela Federação Mista
Internacional du Droit Humain, de cariz mais progressista e adogmático, na qual o
GOL se enquadra[3].
Para
além das razões ideológicas ou filosóficas (com a defesa de lojas femininas, mistas,
a liberdade de credo e consciência, ou a defesa da república e o combate activo
a regimes ditatoriais), esta divisão resulta de circunstâncias geopolíticas
ligadas à influência respectiva da França e da Inglaterra no mundo
desde o final do século XVIII e acentuada com a partilha da influência colonial
em várias regiões do mundo, sabendo-se que a Maçonaria operava tanto para o
poder colonial francês como para o do Império Britânico, como um traço de formação
e de união com as elites locais. Para as obediências francesas as
possessões na África, Indochina e do Pacífico. Para a GLUI a Índia,
Oriente Médio e suas colónias africanas, especialmente a África do Sul. Assim
foi delimitado o mapa da maçonaria mundial fora da Europa até à descolonização[4].
Com o fim dos
impérios coloniais, desaparecido o interesse geo-político na utilização da
Maçonaria como elemento facilitador da colaboração das classes dirigentes das
ex-colónias, o conceito de «regularidade» sobrevive, assente no desconhecimento
geral da sua origem e nos conflitos maçónicos internos em cada país,
resultantes das diferentes abordagens políticas, sociais e simbólicas e da resistência
à adopção dos princípios democráticos e republicanos defendidos pelo sector
maçónico de origem francesa.
Por exemplo, sabemos
hoje que a Revolução Francesa, a independência dos Estados Unidos, ou os
movimentos de libertação na América do Sul, foram lideradas por muitos dos
agora chamados Maçons «irregulares» ou «liberais».
Em 1989,
a GLUI introduziu algumas alterações aos «Princípios Básicos» aprovados em 1929
e, apesar da timidez das alterações feitas, uma leitura comparativa entre os “Princípios”
de 1929 e os de «1989», permitem retirar em especial duas conclusões
importantes:
1ª -
Embora continue a não reconhecer Obediências mistas ou Femininas, a proibição
de reconhecimento permanece agora somente para as Lojas e os Maçons e não para
a Grande Loja, o que representa um avanço significativo face à versão anterior;
e
2ª - A
obrigação da fé num Deus e na sua vontade revelada, é substituída pela simples
crença num «Criador Supremo», outra abertura significativa no caminho da
tolerância.
Deste
modo, entreabriram-se portas para o futuro no relacionamento
maçónico formal da GLUI com as Lojas e Obediências que caminharam no sentido de
concretizar as duas grandes tendências da Ordem, nos séculos XX e XXI: a
incorporação da Mulher nos trabalhos Maçónicos e a liberdade
de consciência.
Hoje e
na Europa, além dos seus dois pilares que são a França e
a Bélgica, a Maçonaria liberal é representada por potências
nacionais ligadas principalmente ao Grande Oriente de França e ao Droit Humain,
à GLdF (Grande Loja de França) e à GLFP (Grande Loja
Feminina de França), em cerca de quinze países europeus. Com exceção da
Sérvia, as potências liberais desses países, a que se juntam a Turquia e
Marrocos, constituíram há dois anos a Aliança Maçónica Europeia que agrupa 22
potências, incluindo o GOL[5].
“Trata-se
de representar junto às autoridades europeias uma força de diálogo e proposta
baseada no secularismo e nos valores de escuta e tolerância da Maçonaria
adogmática. Julgamos ser útil fazer-se ouvir por meio de lobbies junto a
Bruxelas para não deixar este terreno às religiões e à extrema-direita.
Atualmente, somos signatários da petição "Wake Up Europe" denunciando
os abusos do regime autoritário de Viktor Orban na Hungria. Não nos opomos a
que os “regulares” se juntem a nós, mas por enquanto eles estão ausentes neste
terreno”, explica Henri Sylvestre, Grande Secretário para os
Assuntos Externos do GODF, potência que, junto com o Grande
Oriente da Bélgica e as federações do Droit Humain estiveram
na origem deste projeto.
(Seria muito interessante
termos melhor informação do nosso Conselho da Ordem sobre o desenvolvimento
deste e de outros projetos de solidariedade internacional em que a N.’.A.’.O.’.
esteja envolvida.)
Além disso, é hoje na América Latina que a Maçonaria liberal mais se
desenvolve. Tradicionalmente ligada à emancipação dos povos da região
através da memória de maçons ilustres que foram José Marti em
Cuba, Giuseppe Garibaldi no Uruguai e Simon Bolívar, o
libertador do subcontinente, a maçonaria liberal ali se desenvolve há bastante
tempo uma fraternidade matizada de cultura latina e secularismo.
Mas infelizmente e
sem prejuízo de excelentes iniciativas, como a já referida Aliança Maçónica
Europeia, tendentes a reforçar e a dar um sentido à “Cadeia de União
Universal”, o facto é que a divisão entre “Regulares” e “Liberais” continua a
verificar-se, sem sinais claros de melhoria. Aliás, apesar das alterações aos
«Princípios Básicos» aprovados pela GLUI em 1989, esta tem em geral feito
«letra morta» delas, continuando a reger-se, na prática, pelos princípios de
1929, assim dificultando o entendimento entre os dois ramos, cujo interesse
maior justificaria antes acções no sentido de “reunir o que está disperso”.
Esta divisão continua,
pois, a caracterizar a situação maçónica a nível mundial e a sua superação
decidirá o futuro da Maçonaria nas próximas décadas. Ela justifica a
desagregação das Obediências a nível nacional (em Portugal são já mais de 20) e
reflete o forte declínio global verificado desde os anos 1960, sobretudo nas organizações
de origem ou afiliação anglo-saxónica.
De facto, e em
contraponto com a pujante, mas ainda insuficiente, recuperação da corrente
«adogmática / liberal» após a 2ª Guerra Mundial, a dita Maçonaria Regular
tem vindo a sofrer uma acelerada erosão. Segundo Jean-Moïse Braitberg[6], a Maçonaria americana e
inglesa registou desde 1960 uma diminuição de cerca de 75% dos seus
efectivos, passando de cerca de 8 para 2 milhões, dos quais quase metade são
“inactivos”.
Nos Estados Unidos da América do Norte,
os maçons que encarnaram até a Segunda Guerra Mundial, as ideias fundamentais
da democracia americana, gradualmente abandonaram qualquer pensamento social,
em favor de uma visão conservadora, congelada, antiquada da sociedade
americana. Brancos e negros têm uma maçonaria separada com base no princípio da
segregação e o lugar da mulher ainda é um tabu na Maçonaria americana, onde
lojas mistas estão ausentes e lojas femininas quase inexistem.
Reduzida
a uma actividade de clube de serviço, a maçonaria americana, que teve
quase quatro milhões de membros nos anos 1950 não conta hoje nem com metade
disso, sendo o número real de membros activos de perto de duzentos mil, na sua
maioria com idade superior a setenta anos.
Esta
situação não é muito diferente no Reino Unido, onde a maçonaria está também em
declínio constante. Embora os rituais sejam praticados de maneira mais séria do
que nos EUA, as sessões obrigatórias têm lugar apenas uma vez a cada dois meses
e a Maçonaria britânica, no seu todo muito conservadora e comprometida com a
crença num deus revelado, está separada duma sociedade cada vez mais
multicultural e cada vez menos religiosa.
A ausência de debates sociais em loja, o envelhecimento dos membros, a recusa absoluta das lojas mistas e a quase ausência da maçonaria feminina completam um quadro pouco dinâmico que se pode, com apenas alguns detalhes a mais ou a menos, transpor para a Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Canadá e Israel, países onde a maçonaria ligada à GLUI foi por muito tempo poderosa[7].
Em suma, a influência dos ideais maçónicos tem vindo a perder terreno em
todo o mundo e Portugal não é excepção. O que exige de todos nós, homens e
mulheres de livre pensamento, não desistirmos de desbastar a pedra bruta da
intolerância, porque os sólidos anéis da cadeia que nos une devem ser mais
importantes do que os formalismos ritualísticos que nos diferenciam.
Este não
será um caminho fácil nem um futuro sem escolhos.
Num mundo em constante mudança, em que as relações sociais,
económicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, uma época de “modernidade líquida” como lhe
chama Zygmunt Bauman, a maçonaria precisa estar atenta e presente nessas
mudanças, sob pena de não mais ser necessária aos seres humanos.
Na famosa sessão do convénio do
GoDF em 13 de setembro de 1877, o pastor protestante Fréderic
Desmond, membro do conselho da Ordem, colocou à votação a proposta do
«princípio do agnosticismo» da Obediência, obtendo na altura uma ampla
maioria de apoio. Entre outros pontos, no discurso em que sustentou o pedido,
referiu[8]:
“[...] Pedimos a supressão desta
fórmula, porque se é embaraçosa para o Veneralato e para as Lojas, não o é
menos para os profanos que, animados de sincero desejo de formar parte da nossa
grande e bela Instituição, generosa e progressista, vêm-se bloqueados por esta
barreira dogmática que a sua consciência não lhes permite ultrapassar” e,
mais à frente, exortou a que “[...] Deixemos aos teólogos o cuidado de
discutir os dogmas, deixemos as igrejas autoritárias ao cuidado de formular as
suas Syllabus, para que a Maçonaria se situe no que deve ser, uma instituição
aberta a todos os progressos, a todas as ideias morais elevadas, a todas as
inspirações amplas e liberais”.
Sigamos pois o seu
exemplo, assegurando que a instituição mais universalista que existe, não
exclua do seu seio, por meras razões doutrinárias de cariz dogmático, aqueles
que têm todas as qualidades e condições para nela ingressarem e estão
sinceramente comprometidos com a liberdade de consciência, o respeito pelos
outros na sua diversidade e a vontade de pugnar pela melhoria do homem tanto
nos seus aspectos morais como materiais.
E trabalhemos todos
na busca da luz, trilhando os caminhos da aproximação e convergência para que a
Maçonaria e as organizações que asseguram o seu funcionamento deixem de se
digladiar e reforcem a Cadeia de União Universal, sem perda da sua identidade e
origens, mas diluindo (e se possível eliminando) o estigma da «regularidade»
até aqui imposto pelo mundo anglo-saxónico.
[1] “Franc-Maçonnerie: Régularité e
Reconnaisance – Histoire e Postures” – Roger Dachez – Éditions Confome nº 5 -
Paris
[2] “A
propósito do(s) conceito(s) de "Regularidade" na Maçonaria”, Out2016 – Salvador
Allende, MM
[3] “A polémica da Regularidade - Origens e Evolução”, Mar2015 – Salvador Allende, MM
[4] “Regulares
Ingleses contra Liberais Franceses – Um panorama atualizado da
Maçonaria Mundial em 2016” – Jean-Moïse Braitberg
[5] Jean-Moïse
Braitberg
[6] Idém
[7] Idém
[8] Citações do Desmond retiradas de : “Dictionnaire de la Franc-Maçonnerie” -
Coord. Daniel Ligou – èditions PUF , 6ª ed. – Paris (2005)
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