Com a devida vénia e repectiva autorização se transcreve esta homenagem a Salvador Allende por Lila Aguilar Soto-Lorenzo
(Mestra Maçon do Rito Francês – O:. da Cidade do México – R:. L:.. "La Fayette" n º 10 - Membro do Círculo de Estudos do Rito Francês "Roëttiers de Montaleau")
Homenagear e Recordar Salvador Allende
Durante mais um aniversário do fatídico golpe de Estado fascista urdido, planeado e executado pela EUA, CIA e oligarquias dominantes, a 11.Setembro de 1973, recordamos (como sempre) a memória do Presidente íntegro, Maçom, Progressista, Socialista e homem de palavra, que preferiu morrer no cumprimento do mandato para que tinha sido eleito pelo povo chileno, a render-se aos golpistas chefiados pelo torcionário Pinochet e seus sequazes, às ordens dos Americanos e dos oligarcas.
Muito se tem escrito sobre este acto abjecto e de terror, de que Salvador Allende e o heróico povo chileno foram as grandes vítimas, mas, no dia de hoje, (11.Set.2021), não resistimos a publicar de novo esta prancha, como sincera homenagem (já publicada no N/ Blog, em 08.Mai.2012), quer porque o texto se mantem plenamente actual, quer porque Allende e o sacrifício imposto ao povo chileno, (que no início tanta esperança e alegria nos tinha trazido, neste país ainda amordaçado pela ditadura) viverão sempre no coração e na memória de todos nós, em especial os que seguimos à época, com tristeza e ansiedade, aquele trágico acontecimento, bem como a todos os democratas, progressistas e antifascistas do mundo inteiro, que tornaram o «nossso Presidente» como uma das nossas referencias colectivas indeléveis.
Texto da conferência da V.. M. •. • R. da. L. •. Lafayette n º 10, Lila Lorenzo Soto-Aguilar , realizada em 26 de Junho de 2010 na biblioteca "O Menestrel" , na Cidade do México (conferência foi realizada em comemoração ao 102 º aniversário de seu nascimento - organizado pela Associação Salvador Allende Gossens (ASAG))
Queridos Companheiros e Companheiras :
Nesta ocasião em que homenageamos Salvador Allende, no aniversário do seu passamento, eu gostaria - como um membro que fui da sua guarda-costas (GAP) - uma faceta pouco conhecida por todos; a do Maçom Presidente. Como sua irmã que agora sou, queria mostar como a coerência entre o político e o Maçon se uniram para fazer dele um grande homem, respeitado e amado por todos nós, seu povo. É meu desejo participar hoje aqui convosco, compartilhando a minha experiência com ele, seus ensinamentos, sua sabedoria, que me fizeram crescer interiormente como um maçona e politicamente como militante.
Expressar em palavras os nossos sentimentos a mais de trinta anos do golpe militar de Augusto Pinochet, é - apesar da dor pelos sonhos perdidos, os companheiros e irmãos mortos e desaparecidos - um acto de profunda melancolia, porque como disse um poeta, a melancolia não é senão a alegria da tristeza. Assim, a vivência com o presidente do Chile, Salvador Allende, tornou-se para mim uma lição cheia de alegria, de como a liberdade é exercida com responsabilidade e de como essa responsabilidade deve levar-se sempre até às últimas consequências. Hoje, como maçona, entendo de onde provinha a força dos valores que mantinha dia a dia Salvador Allende e, que na vida quotidiana, compartilhava connosco.
Em 04 Setembro de 1970 Salvador Allende vence as eleições presidenciais com o apoio de grande parte dos partidos políticos de esquerda, agrupados na Unidade Popular. Em 25 de Outubro do mesmo ano, antes de Allende assumir a presidência, foi assassinado o comandante-em-chefe das forças armadas René Schneider. É um aviso sinistro a Allende para não cumprir a sua agenda política e económica, que trará ao Chile reformas sociais fundamentais.
Para o novo e pequeno aparelho de segurança do todavia presidente eleito do Chile, é também a afirmação de que não se pode confiar numas forças armadas historicamente ligadas à aristocracia e à oligarquia económica e social, afastada dos interesses dos mais necessitados.
É neste contexto que um dos partidos políticos, apesar de não fazer parte da Unidade Popular, mas que apoia abertamente o processo no sentido do "socialismo à chilena", o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), propõe ao todavia Presidente eleito a formação de um corpo de segurança presidencial, composto por militantes de esquerda, garantindo dessa maneira uma lealdade a toda a prova. Assim nasceu em 1970 o "Grupo de Amigos Pessoais", popularmente conhecido por sua sigla como GAP. Formado inicialmente por militantes do MIR e do grupo chileno Exército de Libertação Nacional (ELN).
Tradicionalmente, os presidentes estavam protegidos por uma guarda escolhida entre as forças armadas e a polícia, mas dadas as características do alto comando, não eram garantes da vida de um presidente que defendia pela primeira vez os direitos do povo, enfrentando inevitavelmente, os interesses que os oficiais superiores defendiam.
Deste grupo de membros do GAP, cabe destacar uma vez mais, que todos eles enfrentaram aqueles que infringiram a lei pela força, derrubando o governo eleito pelo povo. Tudo isso já é conhecido por todos nós, mas vale lembrar para aqueles que eram jovens demais ou ainda não tinham nascido e os que nasceram no exílio. Desses companheiros, muitos caíram no campo de batalha, e alguns conseguiram sobreviver.
O seu programa de governo era um programa aberto à liberdade em todos os aspectos, liberdade de expressão, de imprensa, liberdade económica para a iniciativa privada, desde que isso não significasse contrabandear a soberania nacional. Assim o programa também implicava a igualdade civil de todos perante a lei, algo novo num país habituado a aplicar a justiça aos mais pobres, enquanto as classes económicamente poderosas valiam-se da corrupção para se esquivar à lei. Problema que poderia ocorrer hoje novamente, como ocorreu durante a ditadura. O programa económico implicava também igualdade no que respeita aos recursos económicos.
Na base da aplicação prática destes dois valores, a liberdade e a igualdade, residia a fraternidade. Allende entendia que sem fraternidade – traduzida profanamente como solidariedade - era impossível alcançar a igualdade civil e económica, passos prévios para viver em liberdade plena. Isso era para Allende o "socialismo chileno." Basta dizer que, hoje em dia, os grandes recursos do país estão novamente a ser vendidos pelo maior lance, o de sempre, perdendo o país novamente os recursos que lhe pertencem legalmente, por estarem em solo pátrio.
Por indicações da liderança do partido em que militava, o MIR, fui nomeada para a residência na Rua Tomas Moro no ano de 1970, para me integrar no GAP na área das comunicações. Imediatamente percebi que a relação do Presidente Salvador Allende com os membros do GAP sempre foi como a de um pai, não só pela diferença de idade - a maioria não atingiamos os trinta anos - mas porque nos aconselhava com carinho e respeito. Conhecia e tratava cada um pelo seu nome de guerra, então o único nome que ostentávamos. Deixei assim de ser Lila Lorenzo para chamar-me entre os meus companheiros por Antonia Guerra. Esse nome, simplesmente Antonia, era o que recebia cheio de carinho, pela parte do meu presidente.
Allende aconselhava cada um de nós quando achava necessário, incluindo questionar aqueles que tinham deixado as suas carreiras profissionais, para estar junto a ele. Fazia-os pesar onde seriam mais úteis para o país; se ali junto a ele ou desempenhando a sua profissão, pois o país também precisava de profissionais conscientes, capazes de lutar pelo bem-estar e liberdade do povo. Era como um sábio Venerável Mestre que sabia aproveitar as virtudes de todos os seus irmãos, enquanto atenuava o perfil dos nossos erros, passando carinhosamente a mão pela ombro. Preocupava-se por todos e cada um de nós. No meu caso, como membro do Movimento da Esquerda Revolucionária, MIR, e apesar das diferenças com o Partido Socialista, o partido político a que pertencia o presidente, sentiamo-nos identificados com ele intima e plenamente.
Formalmente e voltado para o povo era o presidente, mas na vida diária expressava como um amigo expressa as suas competências pedagógicas e políticas, escutava-nos e aconselhava-nos. A sua descontracção no trato permitia algo que sempre nos surpreendeu; sendo presidente do Chile era capaz de ouvir, de criar um diálogo connosco, os que trabalhávamos com ele. Mas Allende comportava-se da mesma forma nas reuniões com as pessoas, e mesmo com aqueles que considerava seus inimigos políticos. A palavra era a sua verdadeira arma, porque acreditava nela, porque assim o tinha aprendido na sua Loja Maçónica - Hiram nº 65 da Grande Loja do Chile.
Assim como o poeta espanhol Gabriel Celaya disse: "A poesia é uma arma carregada de futuro", Allende usava a palavra como uma arma carregada de futuro. Esta sua capacidade, foi realmente um presente que o fez tão querido e tão perto de nós, para aqueles que o conheciam de perto. O respeito pela figura presidencial com o qual chegamos à residência de Tomás Moro, logo se convertia em carinho e admiração. Então, deixou de ser o "Mr. President" para se converter em "camarada presidente" como lhe chamávamos quotidianamente. Tal era a confiança adquirida, que às vezes chamávamo-lo carinhosamente por "Doc", abreviatura de doutor, pela sua profissão de médico. A política que Allende nos ensinava convertia a fraternidade em solidariedade e os irmãos em companheiros, todos livres em consciência e iguais no trato.
O governo legítimo e democrático de Salvador Allende demostrou que a liberdade não era apenas um conceito abstrato, mas uma realidade que se materializava cada dia pela vontade do povo. Com Allende o povo recuperou a sua dignidade, deixou de ser vítima do poder arbitrário da oligarquia para converter-se num sujeito activo, protagonista soberano, construtor do seu próprio destino. Para entender donde provinham estas idéias, é necessário basearmo-nos em certos dados que cercam a vida de Allende. O meio onde Salvador Allende cresce é, desde a sua infância, influenciado pelos remanescentes das revoluções burguesas do século XIX, as revoltas de 1838 e 1848, quando se consolida o que hoje para nós maçons é o nossa divisa: "Liberdade, Igualdade, e Fraternidade ".
Cerca de 1850 começa a emigração europeia para a América, daqueles que participaram nessas revoluções e foram obrigados a exilar-se. O então presidente do Chile, Vicente Perez Rosales, abre a porta à emigração, feita por prisioneiros políticos, incluindo anarquistas e socialistas de vários matizes. O seu avô materno, o pai de Laura Gossens, sua mãe, tinha emigrado da Bélgica. É influenciado também por amigos do pai e avô, ambos maçons ilustres no século XIX. O avô paterno, Ramon Allende Padin, apelidado de "O Vermelho" pelas suas idéias liberais, veio a ser Grão-Mestre da Grande Loja do Chile, destacando-se na guerra sangrenta e inútil entre Chile, Peru e Bolívia, como médico militar. O seu pai, Salvador Allende Castro, também maçom, torna-se importante jurista.
Deste modo Salvador Allende Gossens incorpora dois valores fundamentais da Maçonaria herdados de seus antepassados, a solidariedade e a tolerância através do diálogo, uma ferramenta fundamental venerada em cada loja maçónica. Estes valores incorporam-se na sua educação médica e nas leis como um marco referencial do diálogo para resolver as diferenças. Salvador Allende estudou medicina, uma profissão que o aproxima do povo e dos problemas difíceis que enfrenta. Assim, denuncia o que até hoje é uma realidade cruel na América Latina; que a origem das doenças de hoje, de cura previsível, convertem-se em alta taxa de mortalidade devido à exploração e injustiça sociais.
Deste modo, a sua independência de critérios, apoiada pelas suas convicções maçónicas e políticas, assim como pela educação humana aprendida em casa, influenciaram-no como um médico e político. Os seus pontos de vista sociais converteram-no num homem consequente, coerente no sentir, no pensar e no fazer. Isto tornou-o um homem admirado pela sua honestidade, como um político que jamais claudicou para conseguir o que para ele era simplesmente justiça.
Salvador Allende sabia que com clareza nos princípios e a prática constante do diálogo poderia alcançar o que desejava para o seu país. Nunca foi agressivo na discussão, porque a sua palavra convencia e não precisava de agredir, nem nunca o teria feito.
Nunca fez diferenças sociais. Sempre se comportou com cortesia e cavalheirismo, e o seu carinho e cortesia eram excelentes. Com o tratamento directo, essas características fizeram dele um homem imponente. Essa foi a força que se levou para a política.
Inquebrantávelmente era um negociador. A direita não quiz escutá-lo, porque sabia que tinha fortes razões para apoiar suas posições, como se fossem as colunas do Templo de Salomão. A direita nunca o deixou falar, não foram capazes de o ouvir porque o temiam, porque sabia expor as suas ideias e convencia os seus interlocutores com argumentos válidos, nunca pela força. A sua capacidade de negociação permitiu-lhe conviver com todos os políticos de diferentes grupos, porque sabia aproximar-se, sabia ser um amigo acima das diferenças políticas. Essa atitude permitiu-lhe construir a reputação que o levou à Presidência da República
Ouvia, dialogava, tinha ideias claras sobre os campos social e o político. Destacavam o valor humano e a tolerância que, como um bom maçom, teve até com os seus inimigos. Foi tolerante com aqueles que fomos os primeiros GAP; o MIR e os companheiros do ELN, que diferiamos politicamente em alguns aspectos, mas a fraternidade que inspirava permitia trabalhar com ele com profundo respeito, admiração e um carinho leal nascido dessa convivência.
Se bem que não concordasse para o Chile com a via armada da revolução cubana, foi capaz de fazer de Cuba um amigo incondicional. Da mesma forma não partilhava a defesa armada do estado socialista, mas no entanto, apoiou abertamente a luta do povo vietnamita contra o imperialismo dos EUA, expressando a admiração por quem fora seu irmão maçom, Ho Chi Minh City, iniciado muitos anos antes em Paris.
Agora sabemos que, historicamente, atrás do exemplo da Revolução Cubana, os Estados Unidos nunca mais vieram a permitir na América Latina um governo com um projecto diferente e verdadeiramente soberano. Assim, desde o dia em que Allende venceu as eleições presidenciais em Setembro de 1970, começa de imediato, como vimos, o plano da Agência Central de Inteligência (CIA) para derrubá-lo.
Sabemos bem que o golpe se materializou em 11 de Setembro de 1973.
Sabemos também que o golpe se deu devido a Allende ter ousado tocar nos interesses da oligarquia chilena e do capital estrangeiro. Isso custou-lhe a vida e também a boa parte daqueles que formaram o Grupo de Amigos Pessoais (GAP). A batalha do palácio presidencia de La Moneda é hoje um ícone por várias razões, todas enraizadas nos seus princípios maçónicos e na lealdade e bravura dos componentes do GAP, que se encontravam ali lutando ao lado dele.
Essa qualidade maçónica experimentada como algo inerente à sua própria natureza é a que traduzirá na camaradagem com os companheiros do GAP. Os valores da maçonaria são universais e, portanto não são sequer monopólio dos maçons. É por isso que seus guarda-costas e companheiros do GAP souberam retribuir-lhe a fraternidade incondicional que ele lhes autorgava, mesmo até a morte.
Como maçons sabemos que a vida é o mais importante, mas também sabemos que é efémera. A lenda sobre a morte maçónica mostra-nos igualmente a importância, até à morte, da coerência inerente à responsabilidade do conhecimento e da sabedoria. Hoje comemoramos o dia em que nasceu, o seu aniversário, mas não esqueçemos o dia em que morreu e como nós maçons dizemos, passou a ocupar o seu local de trabalho no Templo que sustenta os astros acima das nuvens, debaixo das estrelas.
Atrás do sacrifício de Allende naquele 11 de Setembro de1973, não é difícil ver os símbolos que nos são próprios como maçons. Muito se tem sido dito e escrito sobre a sua morte. Sabemos hoje que se suicidou.
Lembre-se de um pouco de história. O período de consolidação política e social do Chile ocorre entre meados do século XIX e a metade do século XX. Apenas duas personagens se destacam pela sua importância histórica frente ao poder da toda-poderosa oligarquia chilena: Manuel Balmaceda e Salvador Allende. Ambos sofreram a negação de seu papel histórico e a traição do exército e da oligarquia nacional. Ambos morreram com dignidade. Depois de perder a guerra contra aqueles que representavam a velha aristocracia, Balmaceda refugia-se na embaixada da Argentina e suicída-se em 19 de Setembro, justamente quando acaba o se mandato presidencial. Esta espera até ao final do mandato, torna que aqueles que o usurparam ficassem em situação ilegal, pois enquanto vivo, só Balmaceda era o presidente legítimo do País.
Allende é o símbolo do Estado constituído, a expressão da soberania nacional frente aos interesses estrangeiros, é o direito constitucional e democrático que se expressa nele, porque foi eleito por voto universal e aprovado por unanimidade dos representantes do Congresso, ao entregarem-lhe a Presidência. Entregando o poder aos golpistas - fosse renunciando ou aceitando o exílio - trairia a legítima confiança que o povo havia depositado nele e igualmente daria espaço político legal para as forças golpistas adquirissem legitimidade. No caso da sua morte ocorrer, seria sucedido legitimamente pelo Ministro do Interior, então José Tohá, também assassindo pela ditadura no Hospital Militar onde se encontrava detido e doente.
Existe um direito inalienável relativo à nossa vida, reconhecido em alguns países europeus através da eutanásia. Como todos temos direito à vida, a uma vida digna, temos também o direito de decidir a nossa morte, em defesa da dignidade humana. É o direito que exerceu Allende, ao decidir acabar com sua vida para provar a ilegitimidade dos golpistas, a injustiça social, política e moral que se cometia ao atropelar a Constituição.
Como Maçom era um homem livre, com liberdade absoluta de consciência, e como tal tinha o direito de exercer essa liberdade. Neste caso, o suicídio é um recurso político de dignidade que representa o final coerente dum projecto de vida política e social. Essa data, 11 de Setembro de 1973, hoje em dia não é mais do que uma entre milhares para toda a humanidade, mas nós, como seus irmãos, reconhecemos essa semente que frutificrá nas espigas que recolherá a história.
Lila Aguilar Soto-Lorenzo
Mestra Maçon do Rito Francês – O:. da Cidade do México – R:. L:.. "La Fayette" n º 10 - Membro do Círculo de Estudos do Rito Francês "Roëttiers de Montaleau"
Fonte: Diário Maçónico / Publicado em «El Masòn Aprendiz» / Selecção e tradução por Salvador Allen:. / «Jakim & Boaz»
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