Com a devida vénia se transcreve este Artigo de António Valdemar publicado na Revista Tempo Livre de Setembro/Outubro 2022
Camilo Pessanha, Tão Longe e Tão Perto
Referência obrigatória da literatura portuguesa e um dos grandes nomes do simbolismo europeu. Resistiu e resiste a todas as inovações que lhe sucederam. Ao contrário de Wenceslau de Morais que se orientalizou no Japão, Pessanha, durante trinta anos em Macau, nunca deixou de ser um europeu no Oriente.
Predomina na poesia de Camilo Pessanha uma linguagem direta quase sempre próxima do quotidiano e procura conter a emoção imediata. Não se prende a contingências efémeras, a compromissos políticos e ideológicos, por mais nobres que sejam. Sem obra ainda publicada em livro, sem frequentar os centros intelectuais e artísticos, Camilo Pessanha, na transição do século XIX para o século XX, tornou--se uma das referências obrigatórias da literatura portuguesa. A sua obra caracteriza-se, essencialmente, pelo diálogo entre o amor e a morte. Introduziu novos ritmos, novas imagens. Dentro do simbolismo e para além dele. Resistiu e resiste a todas as inovações que lhe sucederam. Lembro, entre tantas revelações de Almada Negreiros, em digressões peripatéticas desde o Largo do Rato até ao Terreiro do Paço (quando o entrevistava sobre os Painéis) me ter dito e estou a citar de memória: «O Orpheu teve dois grupos distintos, os visuais e os auditivos. Nos primeiros estou eu com o Fernando Pessoa. O nosso mestre é Cesário Verde. Os outros, os que buscam nas palavras, a música, a voz e os silêncios Mário Sá Carneiro, Alfredo Guisado, Luís de Montalvor, e uma pequena parte do Pessoa ortónimo derivam do Camilo Pessanha. Ainda não existia a Clepsidra.
Os poemas circulavam em cópias que passavam de mão em mão.» Camilo Pessanha radicara-se em Macau (1894-1926) e repartiu a sua atividade como professor do liceu e no exercício da advocacia. Estudou a civilização chinesa. Reuniu peças de arte, marfins e cerâmicas que legou ao Museu de Arte Antiga e, lamentavelmente, têm passado de museu para museu. Apesar de viver durante cerca de 30 anos em Macau, nunca se integrou na sociedade daquela última fronteira do Império. Ou, então, como disse Fernão Mendes Pinto, «a mais rica e leal cidade de Liampó, o mais rico porto que se sabia em todas aquelas partes da China».
Por ocasião do centenário do nascimento de Camilo Pessanha, a 7 de Setembro de 1967, ocupei-me da sua vida e da sua obra num extenso artigo no Diário de Notícias iniciado com todo o destaque na primeira página, pois revelava um testemunho totalmente inédito. Chamei a atenção para o facto de a Clepsidra incluir cerca de 40 composições e só uma ou duas (caso da Chinesa) se referirem ao Oriente. Também nesse conjunto só 10 textos tem a indicação precisa de haverem sido escritos em Macau. As próprias Elegias Chinesas, que traduziu, abordam a problemática do exílio e as motivações do regresso, na sua expressão portuguesa.
Inveterado fumador de ópio que o destruiu até ao extremo da ruína física, Camilo Pessanha não recorria ao ópio a fim de atingir «um Oriente ao Oriente do Oriente» para citar o poema de Fernando Pessoa subscrito por Álvaro de Campos. Numa carta até então, completamente, desconhecida e enviada a Henrique Trindade Coelho, que tive o privilégio de publicar, na íntegra, Camilo Pessanha afirmou: De regresso a casa deitei-me, segundo o costume, ao comprido. Enquanto Águia de Prata (nome dado à companheira com quem vivia) ia preparando o inefável tóxico consolador (...) produzia-se, a pouco e pouco, em mim esse delírio lúcido característico da intoxicação pelos hipnóticos, em que, sem perder a consciência da situação em que se está, se evoca no espírito, com absoluta fidelidade e perfeita nitidez, uma ou outra situação, em outro lugar ou em outro tempo, como se vivesse simultaneamente duas vidas muito distantes uma da outra. A imaginação, já se vê, transportou-me para aí, para a agitação estéril desse meio lisboeta, para esse tumulto agressivo e vão por entre o qual andei. Refere, entretanto, o nome das pessoas e os locais de encontro em Lisboa, nos cafés e restaurantes do Cais do Sodré e do Rossio. Anos depois desta divulgação, no Diário de Notícias, que veio clarificar uma questão fundamental, Barbara Spaggiari, da Faculdade de Letras da Universidade Florença, editava na Biblioteca Breve do ICALP, um estudo sobre Camilo Pessanha. Sem mencionar o documento inédito que publiquei, observava que o suposto exotismo não é só um lugar-comum, mas até um falso problema que envolve o risco de colocar numa perspetiva errónea todo o estudo da sua obra. Como homem, Pessanha é um português orgulhoso de ser português. E conclui: é um europeu ligado de modo indissolúvel à civilização e à cultura do Ocidente. Exatamente o que demonstrei, salientando ainda que, ao contrário de Wenceslau de Morais que se orientalizou no Japão, Pessanha nunca deixou de ser um europeu do Oriente.
A primeira edição das poesias dispersas de Camilo Pessanha com o título genérico de Clepsydra decorreu, em Lisboa, em 1920. Consolidou o prestígio literário que alcançara há mais de 20 anos. Foi acolhida com o maior apreço pela geração do Orpheu e do Portugal Futurista; por alguns dos poetas que viriam a constituir o grupo e a geração da Presença; por colaboradores dos Cadernos de Poesia, e alguns surrealistas como Mário Cesariny e Alexandre O´Neil. Já havia merecido a maior consideração das gerações anteriores. Logo que saiu a Clepsydra, Camilo Pessanha passou a ser integrado e com o maior relevo n’Os Cem Sonetos, antologia organizada por Mayer Garção e publicada pela Imprensa Nacional. Ao falecer em Macau, em 1926, mereceu honras literárias nacionais que abrangeram grande parte de uma sessão do Parlamento. Nos anos 40 Luís de Montalvor, nas edições da Ática da qual foi diretor e fundador e na sequência das obras ortónimas e heterónimas de Fernando Pessoa, reeditou a Clepsidra que se tornara um livro disputado a preços muito elevados em leilões e nos alfarrabistas. Nos anos 50, Camilo Pessanha seria objeto da primeira tese universitária da autoria de Ester de Lemos, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Ler a Clepsidra constitui uma aproximação sempre diferente da criação poética de Camilo Pessanha. Em Macau, a memória de Portugal depara-se no património construído. Revive não só nos monumentos. Permanece nas bibliotecas e arquivos, nos nomes das ruas e das praças. Mas Camilo Pessanha não hesitou em chamar a Macau «o chão antipático do exílio». Encontrava-se, longe de tudo e de todos. Através do visível e do invisível, procurava ver e sentir «a luz em um país perdido». A Clepsidra celebra a essência da própria poesia e o que perdura em cada tempo e em cada lugar.
António Valdemar