Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

30 de setembro de 2024

APÓLOGO para APRENDIZES

 

APÓLOGO para APRENDIZES

PERSONAGENS: PORTA; JARRO; COPO DE UÍSQUE; BENGALIM; CACHIMBO; MAÇANETA; CABIDE DE CHAPÉUS; SUPORTE DE LEITURA E MAIS UMAS QUANTAS COISAS;

TEMA: IMBECILIDADE/ADORMECIMENTO


Para Umberto Eco deve-se pôr em cena o que se não pode ver. Assim, e como introdução, vou pedir desculpa aos eruditos capazes de colocar em objectos inanimados, um discurso moral. Vou ensaiar fazê-lo, não a bem da Ordem em geral nem desta Oficina em particular, mas apenas para comprometer e entreter os obreiros neste novo inicio do ano maçónico. Não o farei como os mercadores do oculto (do tipo Cagliostro) que manifestam o gosto pela imprecisão e pela credulidade indiscriminada usando um testemunho que se demonstra intraduzível, antes o farei em tom de brincadeira para cativar a reflexão de cada um. Assim:

A porta, gigante e majestosa estava toda trabalhada com repiques e rococós. Aparentava ser feita a partir da frondosa madeira das florestas do Maiombe na Cabinda ainda portuguesa.

O que poderá estar por detrás dela, perguntava a maçaneta reluzente e de tons dourados, colocada a meio do lado esquerdo? Provavelmente esconde cabeças, perdão, objectos pois isto é um apólogo, capazes de guardar os momentos maiores da virtude e de condenar o pior dos vícios.

Espera aí, - diz o cachimbo de porte garboso, altivo e também trabalhado finamente a partir de marfim-, as coisas podem hierarquizar vícios e virtudes, o mal e o bem ou caracterizar lugares de perdição e de salvação? Estou a ver que queres imitar as bestas que se julgam os reis da Criação apesar de terem uma rectidão moral menos filosoficamente justificada, mas dogmaticamente estabelecida por uma aliança à base da confiança num ser superior que nunca ninguém viu, cheirou ou palpou?

A maçaneta, coitada, pouco habituada a dialécticas exclamou: para aí! pois não entendo as tuas xico-espertices que me parecem, apenas, turvar o que já é suficientemente turvo. Querem ver que te dá jeito repetir as velhas querelas e tensões entre agnósticos e Crentes que o Grande Cisma de 1504 estabeleceu ad eternun entre ortodoxos e canónicos?

Nada disso, estimada e muito querida maçaneta, replicou o cachimbo. Apenas estou interessado, tanto como tu, em saber o que se passa por detrás deste mastodonte ao qual pertences. É que nos tempos que correm exige-se que a preguiça e a imbecilidade não se confundam ou fiquem como eu após tanta chupadela baforenta a que estou sujeito, ou seja, adormecido, tonto e maldisposto.

De repente, zás trás catrapumba! Um barulho medonho precedeu o movimento, lento e ruidoso da porta a caminhar para trás.

A maçaneta gritou: cachimbo, amigo e irmão, por solidariedade, é possível transmitires-me o que se passa ali dentro pois não consigo vislumbrar nada graças ao artista do carpinteiro que me colocou numa posição desnaturada.

Fica descansada, ouviu-se lá atrás ao fundo uma voz grossa, mas bem clara e precisa. Era o copo de uísque ainda gelado de tanta pedra de gelo a abraçar o velho e muito saboroso uísque de malte. 

Eu, o cachimbo e quem mais quiser dir-te-emos tudo o que quiseres saber, mas aviso já que vai ser um relato curto, concreto e conciso como manda a lei nestas circunstâncias.

A tua curiosidade será satisfeita. Pois bem, aqui se reúnem coisas livres e de bons costumes. Temos de tudo, ou seja, desde quem quis, como as cobras, largar a sua pele antiga e carcomida por vícios frustrantes e mal-encarados até aos que, com maus pensamentos, querem desencruar as suas paixões fazendo os possíveis por meterem a razão e a justiça no mesmo saco.

Os detalhes vou passa-los ao Exmo. Cachimbo que tem mais propriedades palradoras, além de, respeitosamente, impor mais garbo e altivez do que eu que só sirvo para a abraçar a fermentação do malte.

Detalhes, indaga o Cachimbo?

Sim, dizem os bengalim e o jarro em coro com o copo de uísque.

Bom, se quereis detalhes não contem comigo pois não sirvo para tal. Apenas vos darei indicações muitíssimo generalizadas começando por vos dizer que todas as coisas aqui reunidas, estão cá voluntariamente e por conta própria para se regenerarem, quer dizer, morrer para a antiga vida renascendo numa outra que tem como razão de ser, o amor à virtude e o combate ao Vício. Como sabem, estes desideratos não caem do céu, melhor dizendo, vêm do mais profundo da terra materializada sendo necessário recorrer à mais fina abstracção espiritual para os adquirir. É o que se faz aqui por detrás desta esplendorosa porta que tenta curiosidade vos despertou. A característica principal é que essa aprendizagem é individual, mas que contribui para o bem colectivo.

O bengaleiro fez uma espécie de careta pigarreando ligeiramente como que a dizer que não tinha percebido nada.

O cachimbo retomou a palavra explicando que a transformação não tinha uma chapa 4 para todos, mas que, com velocidade, ritmo e compreensão próprias de cada um se chegava à finalidade do bem comum de todas as coisas.

E para que é que isso serve, interrompeu o copo de uísque?

Para que te possas apresentar limpo, discreto e saudável quando te enchem com o divino malte pois tu sozinho não tens hipóteses de aprender tudo. E mesmo que, hipoteticamente (ou mesmo com muito estudo), o conseguisses poderias cair no terreno da tirania pois passavas a pensar que eras o sabichão das dúzias que nunca serás, pois, os pares saberão sempre mais em conjunto do que cada um por si, além de te controlarem os respectivos desvios.

Democraticamente decidimos as coisas, interrogou o escarrador, curiosamente limpo e sem mácula no seu canto respectivo são pé da porta gigante?

Não, estimado escarrador, embora a democracia seja um conceito que admiramos por estar na esfera da virtude, mas nem sempre é possível aplica-la num processo que é iniciático, ou seja, que implica uma transformação muitas vezes sem estarmos ao alcance do que é razoável, como por exemplo, reafirma o cachimbo, o facto da maior parte das coisas ser feminina e não conseguir entrar nas obediências masculinas.

Mas se elas são a maioria, interrompe o escarrador, como ficam de fora?

Se me permitirem dizer algo, esboçou um gesto o candeeiro de parede demasiado ornamental e, sobretudo, muito luminoso, são as idiossincrasias dos sistemas quase perfeitos como é a democracia, pelo menos, é melhor que os outros todos.

Estou frito, exclama o copo de uísque, mais um a turvar o que já é suficientemente turvo. Explica-te lá ó candeeiro que estás sempre aí, mas nem sempre exibes a tua sabedoria. É fácil, replica ele. Lembram-se da Babel e do Sião, uma representação que evidencia o Mal e o Bem que, embora antagónicos, não vivem um sem o outro.

Vai inventar para o caraças, vocifera o copo de uísque já meio grogue de tanto malte fermentado.

Estou a falar a sério e quero dizer que a vida só tem significado porque sabemos que vamos morrer e se não houverem os contrários não haverá nunca significantes e significados. Olhai bem para cada um de nós. Viemos para nos transformar, mas quantos de nós deram por isso ou sequer que alguma vez o tentámos? Sentimo-nos capazes de renascer, mas olvidamo-lo? Não, a luta entre bem e mal, vício e virtude é incessante e inadiável.

Pois, interrompeu o chapéu de cartola, mas por vezes há imponderáveis e circunstâncias que não permitem a progressão da aprendizagem, não é?

Quais, pergunta o cachimbo?

Não participarmos nas sessões de trabalho por motivos alheios à nossa vontade (como doenças próprias ou de familiares) ou impeditivos de outra ordem.

Se me permites meu querido chapéu, interrompeu o escarrador, nenhum deles é interminável e se temporariamente não poderão comparecer, seguramente conseguirão atenuar de modo a não se esquecerem do propósito com que aqui entraram e da condição do que são.

Mas atenção que a presença não é obrigatória, relembra o copo de uísque.

Sem dúvida que ninguém é obrigado a estar presente, diz o cachimbo, só não percebo é porque se comprometeram com um processo de progressão iniciática em que, não só a presença é essencial, como também não estar adormecido nem a fingir que está?

 Peço imensa desculpa, mas se vamos por aí não chegaremos a conclusões nenhumas, bradou o jarro de porcelana finamente esculpido, cozido e trabalhado. Não será melhor irmos pelo caminho do que temos que fazer em vez de debater o que não conseguimos fazer?

Apoiado gritaram todas as coisas!

O que temos que fazer é muito mais prometedor do que aquilo que não fizemos ou deixámos por fazer.

Estamos a navegar na difícil arte de moer palavras sem sentido ou propósito, logo, temos que saber perdoar quando somos poderosos ou exaltar quando somos humildes, insistiu o cachimbo.

As palavras raramente são uma exclamação da virtude, pois cabem aos actos esse primordial papel titubeou o cinzeiro.

Muito bem, é isso mesmo um coro de vozes apoiou vivamente. Deixemo-nos de estreitezas, alarguemos os horizontes a todas estas coisas por detrás desta magnifica porta que muitos dizem ser uma cópia do Templo do Rei Salomão.

Muito bem, eleva a voz o cachimbo, deixem-me então terminar com um apelo não vinculativo, mas essencialmente reflexivo. Assim: em cima do renomado aparador (do tipo luís não sei quantos) está uma fruteira de louça de Alcobaça. Peço às cerejas (que foram fundadoras destas reuniões entre as coisas) que não se esqueçam que a sua experiência e sabedoria é uma mais valia para quem começa; peço aos abacates suculentos e saborosos que cresçam mais e melhor e finalmente aos mirtilos, pequenos e pouco atractivos que apreendam tudo o que puderem para, em conjunto, tornarmos o mundo mais Verdadeiro, Belo e Justo.

Diógenes de Sínope M∴M∴


p.s. depois deste apólogo, se perguntarem a vós próprios para que servem os discursos morais, eu recordo-vos dois versos de Cesário Verde e cito…

se eu não morresse, nunca! E eternamente

buscasse /e conseguisse a perfeição das cousas.


P.S. a grafia deste Traçado não segue o Acordo Ortográfico proposto em 1990, mas ainda não ratificado pela totalidade dos Países Lusófonos

Bibliographia


-Mainguy, Irène – “La Symbolique Maçonnique du Troisième Millénaire”, Dervy Éditions-2003

-Béresniak, Daniel – « Le Gai Savoir des Bâtisseurs », Éditions Detard aVs- 2011

-Alain Subrebost – “Petit Manuel D’Éveil et de Pratique Maçonnique”, Dervy Éditions-2017

-Hamill, J. – « Teorias Acerca das Origens da Maçonaria »

-Scruton, Roger – “Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes”, Tradução, Guerra e Paz Editores-2023

- Camões, Luís de ; Sena, Jorge de. – « Babel e Sião », Guerra e Paz Editores-2024

-Garrett, Almeida. – “O Arco de Santa Ana”, A Bela e o Monstro Edições LDA-2011

-Houellebecq, Michel. – “As Partículas Elementares”, Alfaguara, Penguin Random House Books-1998

-Eco, Umberto. – “Entre a Mentira e a Ironia”, Gradiva Publicações S.A.-2024

-Verde, Cesário. – “Cânticos do Realismo e outros Poemas”, Relógio d’Água ed. Teresa Sobral Cunha-2006






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