Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.
(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)
12 de outubro de 2019
Rogério Rodrigues-homenagem por Henrique Monteiro
Penso nele, neste momento, a discutir com São Pedro os méritos da entrada no céu. Mas, de acordo com a ética do Rogério, é ele que defende que lhe faltam qualidades e São Pedro que insiste em lhas lembrar.
O Rogério era assim. Já muitos o escreveram, mas poucos, talvez, o tenham conhecido tão bem quanto eu nas várias dimensões que teve. Foi um tremendo jornalista (torpedo, chamava-lhe a Fernanda Mestrinho); foi um poeta e escritor, que apenas a humildade natural e a vontade de se apagar e de ser crítico de si próprio não levou mais longe; foi um maçon exemplar, incorruptível e fraterno que adotou como nome simbólico Antero de Quental, com quem se há de encontrar na mão direita de Deus (o de quem o substitua).
Conheci-o há mais anos do que é justo dizer aos jornalistas novos. Nos tempos em que as redações tinham dinheiro, vagar e alegria. Sabíamos notícias à segunda e podíamos guardá-las três, seis, 10 dias. E se o Rogério tinha notícias. De todos os lados, de toda a gente. As suas fontes eram diversificadas e a sua escrita rigorosa. Um dia fomos ambos em reportagem ao Alentejo profundo, lá onde ainda não chegara o alcatrão, nem a luz, nem a água canalizada. Difícil, sabem, é o começo do texto que assinaríamos ambos. O Rogério virou-se para mim e disse-me: "escreve aí (eu escrevia à máquina mais depressa do que ele)": “Naquelas terras cujo pó nem as sandálias do diabo conheceram…” - e eu, que era já aquiliano, virei-me para ele e disse: “De onde te vem isso?”. E ele respondeu: “Da cultura."
Ah, sim! Porque o Rogério era poeta. Em 1972 publicara ‘Livro de Visitas’, um livro de poesia com uma dedicatória arrepiante ao seu irmão morto na guerra colonial, em Angola: “Ao Anísio Manuel Rodrigues - vivo; pelo Anísio Manuel Rodrigues – morto”
A morte não lhe era mais estranha do que a vida. O seu outro irmão, que ficara cego, morreria atropelado, em Lisboa. E ele, que estudara no seminário, em Macau, por mor de contos que não vêm ao caso, e que mais tarde se fizera à Filologia Românica, deu o salto para Paris, a fugir à tropa. Voltou quando um decreto permitiu que não fosse para a guerra quem fosse amparo de mãe, ou seja, tivesse já um irmão morto nas Forças Armadas.
Andou com Afonso Praça, da mesma terra do que ele – Torre de Moncorvo (o concelho, porque ele era de Peredo de Castelhanos) e com o Assis Pacheco. E com o Cardoso Pires e com tanta gente da cultura – da Graça Morais ao Herberto Hélder. Sempre sem fanfarra nem gabarolices. Caramba! Conheço-os todos graças ao Rogério e talvez por isso a Ana Sá Lopes lembrasse as palavras que eu, mais velho, lhe dissera quando, como estagiária, entrou em ‘O Jornal’: “Aqui somos todos rogeriodependentes!”
Escreveu outros livros, o último dos quais de poemas, que assinou com o nome de Pedro Castelhano, em homenagem à sua terra, e me entregou para que eu o apresentasse. Fi-lo com gosto e recomendo-o: "(Re) Cantos d’Amar Morto".
Não! A morte não lhe era estranha. Ele aprendeu a morrer e, como Sócrates disse, quando tomou a cicuta, agora que chegou a hora de nos separarmos – ele para a morte e nós para continuar a vida – qual tem o melhor caminho? “Eis algo que só Deus sabe”.
Na mão de Deus / Na sua mão direita / Descansou afinal meu coração, escreveu o Antero, que era também o Rogério. “Os meus dias tiveram o pão duvidoso e a fome avara dos humildes”, escreveu o Rogério, que era também Antero.
Penso que nunca fez mal a ninguém, salvo a ele próprio. A mulher, a Arlete, médica de quase todos nós na Casa da Imprensa, os filhos Tiago e Diogo, eram a sua luz. Mas entre mim e ti, Rogério, havia sombras. O que nós dizíamos mal e gozávamos com tantos (e tantas) que andam por aí. Dizíamos mal até nos fartarmos e passarmos a dizer mal um do outro e depois mal cada um de si próprio. Qual psiquiatria, como tu dizias alto e bom som, com a tua voz inesquecível: “Eu não tenho problemas pessoais!”.
Um dia, no Grémio Lusitano, sede da Maçonaria, encontrámo-nos. Nem ele foi pela minha mão nem eu pela dele. Pura e simplesmente encontrámo-nos onde se podem encontrar homens bons. Crentes na humanidade (apesar de haver por lá muito quem não mereça); crentes na vida que supera a morte, porque como a semente morre para que nasça a árvore e o fruto, assim nos encontraremos no que chamamos Eterno Oriente. A última publicação em que estivemos juntos foi a da Maçonaria, a pedido do saudoso António Arnaut, que nos desafiou, com aquele ar dele sempre ingénuo: vocês é que podiam… e tal. E nós pudemos. E fizémos. Algumas vezes os dois sozinhos, porque outros tinham sempre muito que fazer e, por muito que nós tivéssemos também, sempre guardámos um espaço para o mistério do espírito, da vida e da morte.
Conheci-te, Rogério, nas tuas várias dimensões. Como diz o nosso ritual funerário, partiste um pouco antes de nós. Lá nos encontraremos, com aqueles que estivemos: o Nunes de Almeida, o Gabriel Viegas, o Luís Conceição, o Óscar Gois.
E com todos os camaradas de profissão – da nossa profissão a sério – que fomos perdendo e aqueles que hão de chegar, como eu, o Castanheira, o Garcia, o Adelino, a Fernanda, o Grego Esteves e todo o pessoal da ‘cozinha’ de ‘O Jornal’. E com o mundo todo, porque como dizia o Assis, a puta da vida é pior do que a puta da morte, mas não temos mais nada a que nos encostar. Talvez aí o Praça, que representou tão bem o papel de padre num filme, nos abençoe a todos e nos conduza ao pé do Antero e de ti; à mão direita de Deus.
Até já!
HENRIQUE MONTEIRO
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