Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

29 de maio de 2021

Percorrendo a revista “The Square”

 


Com a devida vénia se transcreve, do Blogue Jakim&Boaz, este Artigo de Opinião de Roger Dachez:

Percorrendo a revista “The Square”

A leitura da revista maçónica bimestral «The Square» é um exercício que deve ser praticado regularmente – quer seja «regular» ou não! - Os maçons franceses que desejam compreender melhor a Maçonaria, sair do quadro intelectual da única Maçonaria francesa que conhecem, tocar com os olhos, senão com os dedos - se atrevo a expressar-me assim - a realidade internacional de uma "Fraternidade Universal", como muitas vezes gostam de repetir gravemente, mas que, para a grande maioria deles, se reduz às suas sessões quinzenais, a raras visitas a outras lojas da sua Obediência, a maior parte das vezes  da sua região e até mesmo na participação num “Congresso Regional” ou mesmo no “Convénio” - dois tipos de eventos que nunca nos ensinam grande coisa  sobre a maçonaria…

Da minha parte, li cuidadosamente “The Square” - que já foi chamado de Esquadro Maçónico - por mais de trinta anos e lá aprendi muitas coisas interessantes e curiosas. Por um lado enquanto maçom francês que pode relativizar os seus conhecimentos e a sua visão maçónica, mas também sobre a  maçonaria inglesa, considerada imutável segundo muitos e que tenho visto mover-se cada vez com mais clareza desde há anos. Eu acrescentaria que «The Square» é uma revista de grande qualidade, completamente independente da Grande Loja Unida da Inglaterra. O último número disponível, publicado em Setembro de 2016, fornece mais uma prova disso. Aí referencio dois artigos publicados consecutivamente - provavelmente por acaso - que resumem perfeitamente todos os mal-entendidos que existem entre a Maçonaria Francesa e a Maçonaria Britânica.

Uma visita decepcionante

O primeiro artigo de que gostaria de falar é o de Bob Mellor, dedicado à exposição realizada a meio do ano na Biblioteca Nacional de França («Bibliothèque Nationale de France (BnF)»). O nosso amigo inglês visitou-a e voltou profundamente desapontado, para dizer o mínimo ...

Muitos dos que, como eu, tiveram o prazer de acompanhar a sua preparação - um acontecimento único do género em França - e de a descobrir entre os poucos privilegiados convidados para a “pré-inauguração”, poderão surpreender-se, ou mesmo ofender-se dum tal julgamento negativo.

Nada parece ter agradado ao nosso visitante, a julgar por [meus comentários pessoais estão em itálico entre parêntesis]:

“A luz é fraca, as paredes negras ou sombrias e isso dá como que um efeito de um mausoléu [obrigado pelo diretor da exposição!]. As peças mais pitorescas e marcantes são os “poster’s” antimaçónicos. Eles mostram, mais uma vez, os supostos aspectos satânicos e ocultos da Maçonaria [...] Tudo em francês [em Paris, isso é bastante lógico ...] Eu não consegui  ver nada sobre os aspectos modernos da Maçonaria,  as suas ações caritativas, os seus aspectos sociais, seus vínculos fraternos e a sua rede mundial [...] - em todo caso nada que possa persuadir o visitante de que ela não vai morrer e que possa ainda atrair homens (e mulheres). "

Mas a partida de “saco de pancadas” continua: “Houve dois vídeos de comentários pelos Grandes Mestres do Grande Oriente, da Grande Loja e da Grande Loja Nacional. Nenhum apareceu como um bom embaixador da Maçonaria e um parecia estar a recuperar-se de uma farra [sic! em inglês "Binge"] - ou ele realmente não estaria a recuperar-se? [neste ponto, eu creio entender, mas vou abster-me de quaisquer comentários] "

O nosso visitante, exausto de tédio, passou então pela livraria da exposição: “Havia muitos livros e um livro ilustrado muito grande com a descrição das peças expostas [era, creio eu, o magnífico catálogo da exposição] . Segui em frente e comprei um livro mais barato que não li e tirei minhas próprias fotos".

O relato dessa visita improvável é tão negativo que o editor da revista achou necessário fazer uma nota final: “Obviamente, Bob não era para você. Mas ele acrescenta: "Eu visitei a exposição e concordo com o essencial do que dizes".

Em suma, a exposição não interessou aos nossos dois amigos ingleses - no entanto, no dia da inauguração, encontrei-me com anglófonos de várias origens para os quais a visita foi um verdadeiro prazer, mas - posso sugeri-la sem pretensão? - eles tinham um bom guia ...

O que me chama a minha atenção são certas críticas de Bob Mellor - não aquelas que se referem à qualidade da exposição que ele ignora soberbamente e, em minha opinião, de forma muito injusta - mas especialmente quando ele refere que não eram mencionados os “aspectos modernos da Maçonaria, as suas ações caritativas, os seus aspectos sociais, seus laços fraternos e sua rede global ... ”. A menção às mulheres também é reveladora. Ingenuamente, um maçom francês esperaria que a crítica de um maçom inglês fosse sobre a falta de qualquer aprofundamento das fontes lendárias, dos símbolos e até da espiritualidade da Maçonaria - pois esta é a percepção que temos da maçonaria inglesa: apaixonado por rituais, símbolos e orações ...

No entanto, esse não é manifestamente o caso aqui. Bob Mellor será um independente ou ele representa uma tendência significativa na Maçonaria britânica hoje?

O artigo seguinte permite obter  uma ideia mais precisa. 

"Por que deixei a Maçonaria"

O «The Square» publica de facto o que na imprensa francesa chamaríamos um "tribuno": o testemunho de uma pessoa que critica violentamente a Maçonaria depois de ter sido membro por alguns anos, não apenas de uma loja azul, mas também de um Capítulo do Arco Real («Royal Arch») - considerado na Inglaterra como o complemento indispensável ao grau de Mestre.

Diga-se de passagem, não sei se uma revista oficial da Maçonaria Francesa seria capaz de fazer o mesmo ...

Agora, mais uma vez, talvez se possa entender melhor ouvir Bob Mellor - o autor escreve sob o pseudónimo de "NX Mason": ele começa contando-nos que  quase desmaiou de tanto rir durante sua iniciação ao ouvir a declaração dos castigos físicos que arriscava se traísse o seu juramento - "ter sua garganta cortada, etc." ? " Após seu acesso ao grau de Mestre, ele visitou lojas, incluindo uma loja de estudos que considerou chata. Quando  entrou no Capítulo do Arco Real - na minha opinião, um dos mais belos momentos de maçonaria do sistema inglês - ele achou o ritual desprovido de sentido e práticamente incompreensível. Lógicamente acabou por considerar que seria preferível para ele ir embora.

O mais interessante é, de facto, a sua lista factual de acusações contra a Maçonaria, que aparece no final do artigo. Esta lista, que cito parcialmente, fornece-nos interessantes informações. Nomeadamente:

• “Os membros [das lojas] são velhos e cristalizados nos seus hábitos. Não quero passar as minhas noites com velhos pedantes. "

• "É muito hierárquico. As decisões são apenas tomadas e impostas - e portanto eu estava pagando para pertencer a isso. "

• “Os rituais são desactualizados e muitas vezes completamente estúpidos. Muitos recitam-nos, mas não acreditam neles. Por exemplo, conheço muitas pessoas que não acreditam em Deus. "

• “É muito religioso - se eu quiser a Bíblia e orações, vou à igreja. "

• “Tudo demora muito. Pode levar toda a sua vida. "

• “As refeições [depois das Sessões] são péssimas e os discursos [que se fazem  nesta altura nas Lojas inglesas] ainda piores, e é sempre a mesma coisa, de cada vez”.

• “Os membros não têm importância, na sociedade em geral. A maior parte não é nada de nada. Alguns são ainda piores - tínhamos dois alcoólicos na minha Loja e um outro suicidou-se".

Estamos finalmente felizes de que esta demolição em regra se interrompa! E então podemos começar a reflectir.

Certamente, uma experiência negativa, ainda que, segundo testemunho do nosso autor, ele conheceu vários outros maçons que viviam a mesma experiência do que ele, não é suficiente para julgar uma instituição. A Maçonaria não era provavelmente feita para ele. Poderíamos parar por aí.

No entanto, devemos ouvir algumas críticas que, sem dúvida, poderíamos transpor para o caso francês: temos a certeza de que nosso "trabalho" esteja sempre  num bom nível? As “carreiras” maçónicas são sempre irrepreensíveis  em termos de métodos?  A execução dos rituais não é, aqui como lá, às vezes puramente mecânica e sem inspiração? Quanto ao aprofundamento do que contêm, isso leva sempre a uma  real clarificação, sem nunca se transformar em puro "delírio simbólico-maníaco"? Deixo a cada um a obrigação de responder.

Mais surpreendente para nós, o facto de que “muitos membros dizem que acreditam em Deus [porque é obrigatório na Inglaterra], mas na realidade não acreditam! N X Mason acrescenta que encontrou nas lojas "muitos hipócritas pontificantes". Mas isso nunca aconteceu connosco?

Sublinhamos também a dificuldade frequente, também apontada pelo autor, de inserir o compromisso maçónico na vida moderna, especialmente para os jovens - ou menos jovens - activos. Isso pressupõe também uma reflexão séria e, sem dúvida, uma mudança de práticas, tanto em Londres como em Paris, se não quisermos esvaziar as Lojas  nos anos e décadas que virão.

Em suma, o estado de espírito de um ex-maçom decepcionado não muda obviamente a realidade da Maçonaria, mas este relato inesperado no coração de uma loja inglesa trouxe-nos mesmo assim, algumas surpresas.

A Maçonaria na França tem uma chance - e uma fraqueza: a multiplicidade de Ritos e Obediências. Sim, eu sei, isso produz com mais frequência do que gostaríamos desordem, confusão e, muitas vezes, também situações simplesmente ridículas ou até mesmo grotescas. As grandes Obediências não gostam das pequenas, ou irritam-se com elas e atribuem-lhes todos os males da Maçonaria. Mas em Inglaterra, onde ainda encontramos a mais poderosa Grande Loja da Europa, única no seu país,  onde todas as lojas azuis são levadas a fazer mais ou menos a mesma coisa em questões rituais, por exemplo, a situação é mesmo assim tão claramente melhor porque não existem “pequenas Obediências”? Nada é menos certo se entendermos este testemunho. As grandes Obediências francesas puderam semear o grão e reflectir sobre seu modelo. [1].

Tive a sorte de conhecer, desde há anos,  eminentes, eruditos e respeitados maçons ingleses e escoceses. Costumo falar muitas vezes e livremente com eles e, através deles, ouço outros testemunhos. Entendamos bem: eu conheço muitos maçons ingleses que vivem com interesse e até mesmo com paixão os inúmeros rituais que lhe oferecem quaisquer dos 120 ou 130 graus laterais («Side Degrees») que contam o seu universo maçónico, e eu correspondo-me com eles sobre a nossa paixão comum. Esses rituais não parecem enfadonhos ou absurdos para eles, e a sua tonalidade religiosa - que é fundadora em toda a Maçonaria, devemos recordá-lo - não os incomoda de forma alguma. No FaceBook – porque eles não estão isolados como zombies nas suas Lojas - trocam alegremente mensagens sobre o assunto: ver especialmente a página particular dos «Side Degrees of Kent» (grupo secreto, claro!), particularmente revelador a esse respeito.

Tal não impede que, ao mesmo tempo, uma parte da maçonaria "de base" inglesa aspire confusamente a uma certa mudança, em qualquer caso a uma certa evolução, mas o "sistema" não o permite a não ser com grande dificuldade e os maçons ingleses são, por outro lado, muito legitimistas. Esses maçons sinceros que, ao contrário de NX Mason, não acham forçosamente  os rituais "sem sentido e praticamente incompreensíveis", gostariam no entanto, por vezes, que existissem  também na Inglaterra várias Obediências.

Deixemos, por enquanto, os ingleses com seus problemas. Eu só queria sugerir que a realidade maçónica britânica, como a realidade maçónica francesa, é muito mais complexa do que se possa imaginar. Os que em França quizeram negligenciar esta complexidade,  que pressupõe uma abordagem cautelosa e adequada dos contactos e uma gestão muito subtil das iniciativas de diálogo, estavam à sua própria custa. Temos, quanto a nós,  a possibilidade de possuir uma maçonaria plural, por vezes reconhecidamente barulhenta, agitada e incómoda, mas que  afinal, permite que todos existam livremente! Preservemos pois essa “diversidade maçónica”!

Obviamente, os maçons ingleses - não me refiro aqui ao aparelho da Grande Loja - pelo menos alguns deles estão a tentar  abrir as portas. Não fechemos as nossas ...

Roger Dachez

(Out.2016   e:.v:.)

(selecionado e traduzido do Blog de Roger Dachez – “Pierres Vivants”, por “jakim & Boaz”)


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[1] Este ponto já foi abordado em detalhes no último capítulo do livro que co-escrevi com A. Bauer e M. Barat em 2013, “As promessas do Amanhecer” (« Les Promesses de l’Aube»).


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