Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.
(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)
12 de janeiro de 2019
HERÓI SEM MEDALHA
Com a devida vénia se transcreve este artigo de Anestor Porfírio da Silva publicado no extinto
JB News – Informativo nr. 2.294 – Florianópolis (SC), terça-feira, 10 de janeiro de 2017.
HERÓI SEM MEDALHA
Meu irmão, você como maçom já deve ter ouvido de outro irmão maçom a lenda do beija-flor que, sozinho, tentava apagar o incêndio de uma grande floresta transportando água em seu bico? Todos sabiam da destruição que aquele incêndio poderia causar se nada fosse feito. Mas nenhum outro animal manifestou o desejo de ajudá-lo por entender que a solução daquele problema era algo além da capacidade de todos.
A quem, desanimado, aconselhou-o a desistir, a pequenina ave respondeu: “Não me interessa saber o que os outros bichos e aves estão fazendo. O incêndio precisa ser apagado. Estou cuidando de fazer a minha parte”.
Para uma ave sozinha apagar um incêndio, ainda que de pequenas proporções, seria impossível. Mas se todos os animais e aves a ajudassem, a situação aflitiva poderia ser resolvida.
O fato, como já se disse, é apenas uma ficção, isto é, não aconteceu. Mas como lenda, o que dela podemos extrair como exemplo é o fundo moral que ela contém, isto é, numa comunidade em que se presume serem todos responsáveis, cada um deve fazer o que lhe compete sem observar o comportamento de quem deveria estar fazendo o mesmo. Do contrário, se eu decidir parar de fazer o que estou fazendo e condicionar minha volta ao trabalho somente se quem está do meu lado também trabalhar, é uma atitude maléfica à superação de qualquer dificuldade por mais insignificante que ela seja.
Quinta-feira, cinco e meia da manhã, o alvor daquele dia, um dos primeiros do mês de agosto de 2007, já reluzia no horizonte quando Lucas se pôs de pé após noite de insônia. Estava inquieto como alguém que busca ar para respirar e nada encontra. A cidade ainda dormia. Desejoso de que o dia acabasse de amanhecer logo, esfregava as mãos e andava pela casa de um lugar para outro, sempre pensativo tentando encontrar uma saída que viabilizasse a urgente solução dos problemas que o afligiam naquele momento.
Lentamente, os minutos se passavam. Já fazia mais de uma hora que Lucas tinha se levantado e ele continuava vivendo a mesma ansiedade, tenso, inquieto, sequioso de que a cidade acordasse logo para que pudesse ir a um rápido encontro com alguns irmãos na Secretaria da Loja, conforme haviam combinado, oportunidade em que iria ser melhor informado sobre a real situação financeira da mesma e do seu quadro de obreiros.
Uma certeza ele tinha: acabara de assumir o encargo de dirigir uma instituição cujas finanças em ruina ser-lhe-iam um enorme desafio, para não dizer a maior das dificuldades de sua gestão.
Na cozinha, a mesa com quatro assentos era o lugar aconchegante onde Lucas tomava o café da manhã sempre ao lado de sua esposa, mas naquele dia isso não aconteceu, nem seria possível, por um motivo: Lucas estava emocionalmente tenso e na excitação da forte pressão psíquica que estava vivendo, própria das pessoas preocupadas quanto ao fiel cumprimento dos deveres e das obrigações assumidas, quebrar o jejum naquele estado de ansiedade seria um ato dificílimo. Sua mente se encontrava povoada de questões que careciam de soluções inadiáveis, pois o conjunto das circunstâncias era demasiadamente delicado, embaraçoso e demandaria tempo para ser resolvido. O quadro sombrio em que já se achava mergulhada a maçonaria local, estava a exigir de Lucas muita habilidade até mesmo para dar o primeiro passo adiante, visto que tudo deveria ser feito com paciência e serenidade, sob pena de se incorrer no erro de agravar ainda mais a situação.
As perturbações que naquele momento inquietavam Lucas decorriam de fatos dos quais tomou conhecimento na noite do dia anterior, quando comandou a primeira sessão da Loja Maçônica de sua cidade, após ter sido eleito seu Venerável. E o que o levou a alcançar o referido posto foram seus vinte e seis anos de iniciado, sua posição respeitosa como um dos irmãos mais experientes, o decano, o de opiniões incontroversas, o conselheiro e pacificador, o habilidoso interlocutor entre a Loja e o seu Poder Central, enfim, o que se apresentava como melhor opção para conduzir os destinos da maçonaria local nos dois anos seguintes. Porém, antes de decidir pela sua entrada nesse jogo, Lucas não sabia que a loja a que pertencia passava por dificuldades decorrentes de séria crise financeira.
Assim que foi eleito, veio o recesso das atividades maçônicas, o que durou por um mês. Nesse período, Lucas se mostrava estar vivendo momentos de felicidade, com o apoio de sua esposa e com vários planos a serem realizados em sua administração, todos voltados à prática da beneficência, da filantropia e ao progresso da maçonaria principalmente em sua cidade. Mas agora, decorridos pouco mais de trinta dias de sua posse, eis que Lucas é, repentinamente, levado a alterar seus planos ao tomar conhecimento de todo o drama financeiro que sua loja vinha enfrentando e das dificuldades administrativas, algumas quase insanáveis, que também tinham de ser superadas.
Enfim, a hora tão esperada chegou e Lucas saiu de casa, célere, rumo ao local de encontro previamente agendado com alguns de seus irmãos. Eles eram membros da nova da administração e o esperavam na Secretaria da Loja com um monte de papéis, pastas e livros de registros dos atos daquela oficina nos últimos vinte e quatro meses.
Com o irmão Tesoureiro estava o controle de caixa, onde os registros apontavam que uma fração acima de sessenta por cento dos membros da Loja se achava em débito, alguns casos com mais de ano de inadimplência; o saldo da conta corrente bancária estava negativo; o caixa da Loja não tinha saldo algum; dívidas em mora contraídas junto ao comércio e instituições financeiras locais etc.
Com o irmão Chanceler estava o Livro de Controle de Presença e uma demonstração detalhada, nominal, onde se via o baixo índice de frequência, acontecimento esse que, em certas ocasiões, não atingiu sequer o número mínimo de presenças exigido para que a sessão pudesse ser realizada.
Diante do que viu e ouviu naquele encontro, Lucas voltou para casa ainda mais cabisbaixo.
Uma janela, porém, já se abria e esta era por onde a dignidade máxima da Loja deveria começar, ou seja, agir logo, sem perda de tempo, pois para colocar tudo em seu devido lugar, Lucas só dispunha de vinte e quatro meses. Naquele mesmo dia foi ao encontro dos fatos decidido a saná-los, um a um.
À frente da direção daquela oficina estava Lucas, um empresário e empreendedor experiente, ousado, que conseguiu, à custa de muito esforço e dedicação ao trabalho, sair do nada para, em tempo razoável, tornar-se dono de uma indústria de médio porte com mais de sessenta empregados e um faturamento mensal invejado por muitos de seus concorrentes.
A primeira providência foi reunir-se com todos os membros da diretoria da Loja e traçar rumos para a sua administração mediante elaboração de programa com definição de metas e um correto plano de ação para atingi-las. Os trabalhos iniciais tiveram a atenção voltada para a solução de questões inadiáveis como a liquidação das dívidas em mora, o resgate da motivação do grupo e a restauração da ordem financeira daquela oficina, ficando relegado a segundo plano o restante do que, rotineiramente, compete a uma loja maçônica realizar dentro dos princípios, fundamentos e normas da Ordem.
Um encontro com os credores foi necessário para obtenção de novos prazos para liquidação dos encargos vencidos. Outro desafio foi encontrar uma maneira de captação de recursos extras sem que tal medida viesse a aumentar o ônus financeiro com o qual já vinha arcando cada obreiro da Loja. Pensando assim, a conclusão a que se chegou foi a de que somente eventos sociais poderiam se transformar em fonte de renda adicional.
Em Loja, o Venerável comentou a grave situação financeira que estava por ser administrada e, em seguida, expôs suas ideias e seus planos. A palavra circulou pelas Colunas e ninguém se manifestou. Isto porque a apatia, a descrença e a desmotivação tomavam conta de quase todos. Somente Lucas e mais alguns poucos irmãos ainda relutavam e não se davam por vencidos.
A primavera daquele ano já se avizinhava. Era a estação de realização da semana dos festejos em homenagem ao Santo padroeiro da localidade e esse evento, que tinha como tradição atrações gastronômicas e lúdicas que despertavam interesse em muita gente, até mesmo de municípios vizinhos, era também marcado por animadas noites de dança.
Naquele evento anual com duração de uma semana, que se constituía basicamente de muitas barraquinhas oferecendo comidas típicas regionais, era também possível encontrar pessoas vendendo bebidas, roupas feitas, artesanatos, bijuterias, maçã do amor, além de bancas de jogos, tiro ao alvo e muitas outras atrações.
Diante da movimentação e dos preparativos para o início do grande festejo, Lucas, embalado pelo clima de animação que já alterava a rotina dos moradores do lugar, num breve lance de pensamentos em relação às possíveis e até então conjecturais fontes extras de recursos financeiros, decidiu engajar-se como um dos participantes do evento, levando adiante alguma ação que beneficiasse a maçonaria.
Foi essa a sua melhor opção e decisiva cartada. Ele, no entanto, tinha certeza de que não iria encontrar respaldo de muitos dos seus irmãos quanto à execução de qualquer plano extra, pois já sabia do desânimo em que se encontrava a maioria deles. Mas pôde contar com o patrocínio financeiro de sua empresa no custeio de todas as despesas, fator esse primordial sem o qual não haveria possibilidade de se levar adiante plano alvissareiro como o que Lucas tinha em mente, até porque dele não poderia haver retrocesso por causa dos compromissos em mora da loja. Estava disposto a qualquer sacrifício para não deixar que seu mandato fracassasse, embora ciente das dificuldades que iria enfrentar, mas animado e otimista quanto ao êxito no final da jornada.
E isso, de fato, aconteceu. Depois de uma semana de intensos trabalhos sob uma tenda de aproximadamente quarenta metros quadrados, onde a atração ficou por conta do arroz com pequi, arroz carreteiro, galinhada, frango caipira com pequi e outras tantas delícias gastronômicas, sob a responsabilidade inicial de oito irmãos, o resultado financeiro alcançado foi muito além das expectativas.
A alta rotatividade de consumidores registrada desde o primeiro dia, aos poucos foi chegando ao conhecimento dos irmãos que, há princípio, não cederam seus préstimos como auxílio à execução de toda a programação preestabelecida por não acreditarem no que se supunha ser apenas mais um milagre, agora com outro ânimo, contagiados pelo entusiasmo dos que tomaram a iniciativa de pôr em prática aquele evento, acabaram decidindo por suas participações, indo ao sacrifício com suas respectivas esposas e sobrinhos, fazendo com que, ao final, o grupo inteiro se tornasse responsável pelo alívio da situação financeira da Loja, o qual foi colocado definitivamente em dia no mesmo evento do ano seguinte.
Para a satisfação de todos e um desencargo de consciência para Lucas, no último dia de seu mandato, a Loja nada devia.
Esse herói merecia uma medalha!
Anestor Porfírio da Silva
M.I. e Membro da ARLS Adelino Ferreira Machado
Or. de Hidrolândia-GO
Conselheiro do Grande Oriente do Estado de Goiás.
Nota: Lucas é nome fictício.
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