Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

22 de março de 2017

PEDRA BRUTA




Irmão: palavra tão simples quanto complexa na sua essência e alcance. Palavra e essência que está para lá da mera semântica. Naquilo que temos, ou não, escolhendo-o no nosso livre arbítrio de pessoa. Aquele com quem, nos piores e nos melhores momentos, partilhamos o sucesso e o insucesso.
Irmão: expressão infinitamente distinta no livre arbítrio de cada ser humano enquanto conceito sobre o qual fundamos o objectivo da liberdade.
Irmão: o que não tendo me permite escolher na construção da família, trabalhando a pedra bruta que somos todos nós.
Irmão: aquele de quem se espera o reconhecimento do direito à diferença, partilhando-a com todos.
Irmãos: aqueles a quem me dirijo após dois anos de reflexão sobre os princípios fundacionais do ser da razão do ser humano.
Para esta cerimónia, pensei muito seriamente sobre a nossa simbologia instrumental, traduzida em ferramentas simples e incontornáveis do pedreiro livre, na construção da sua obra e na essência do conhecimento que determina a técnica da sua utilização mais primária, assente nas colunas dos  valores.

Valores que nos interpelam sobre a história da obra mas, que se não pode esgotar no trabalho realizado, pois, a plasticidade dos materiais e a perda das suas simples referências ancestrais, determina novas abordagens da respectiva utilização na construção do templo colectivo, sem o que este se vai esgotando na história, não lhe dando continuidade.
Escolhi a pedra bruta porque, de facto, ela é a expressão e objectivo máximo da obra.
Com ela se constrói e dá forma ao templo. Com ela se mobilizam todas as ferramentas e arte do saber na construção da obra.
Ela é, com o saber, o testamento e testemunho geracional e intemporal da obra. Mas, também é ela que nos interpela sobre a mesma obra, na construção do templo individual e colectivo.

Escolhi este símbolo porque, durante dois anos de silêncio, me permitiu reflectir sobre a obra. Reflectir sobre os valores fundacionais. Sobre a pedra bruta que havia que talhar. Sobre a pedra talhada sobre a qual repousa a transmissão do conhecimento ancestral enquanto genética do templo colectivo. Sobre a pedra bruta enquanto movimento intrínseco a cada individuo, preservando os mais elevados valores do Homem. Sobre a pedra bruta que nos permite regressar às origens, interpelando-as no seu processo de desenvolvimento da espécie humana. Sobre a pedra bruta enquanto valor fundacional. Sobre uma pedra bruta que não pode ser amortalhada em obras mal concebidas. Sobre uma pedra bruta que, enquanto elemento genuíno e natural, nos permite sempre regressar às origens, corrigindo a obra, se necessário. Sobre a pedra bruta que somos nós, pior ou melhor trabalhada.
Pedra bruta que oferece ao talhante a mais esplêndida obra da criação.
Pedra bruta e livre arbítrio no equilíbrio do desenvolvimento do qual resulta o saber, num misto do genético e do adquirido. Do saber o que se quer fundado no porque se quer. Balanço do equilíbrio instável e interpelativo do adquirido na sua forma colectiva.
Pedra bruta porque para o seu talhe importa o saber acumulado, a técnica mais perfeita e as melhores ferramentas, sendo que do seu talhe deve resultar o ajustamento da obra ao momento da construção, segundo valores milenares mas, também, o símbolo do desenvolvimento da perfeição no reajustamento do saber a novos saberes.

Pedra bruta porque à sua origem e nobreza intrínseca na qual assentam as grandes catedrais humanas e tradições milenares, ao seu talhe se deve associar o pragmatismo da construção temporal na evolução do ser humano, na qual emerge com cada dia mais força a ética da responsabilidade, enquanto expressão maior da beleza da construção.
De facto, irmãos, este é o angulo e a esquadria da construção do ser humano, enquanto fim primeiro e último do Grande Arquiteto. Enquanto oportunidade e escolha na ciência demonstrativa de novas ferramentas do saber e da ciência.
Pedra bruta porque é o que somos todos nós no estado original,  partindo deste símbolo e transformando-o em objectivo e principio que deverá ir para lá de si próprio, dotando a nossa organização clássica e defensiva, ao nível dos valores, de um novo edifício contemporâneo das transformações sociais e políticas. Enquanto meio onde operacionalizamos a acção interna e externa.
Outra coisa seria admitir a insolvência intelectual, reduzindo-a ao primado de tempos que já foram na sua imensa grandeza social e humana.
 Seria transformar o conhecimento clássico e intemporal em meros estereótipos sem tradução na acção concreta da nossa família. Seria, por isso mesmo, reduzir a obra à contemplação da grande história colectiva. Seria trabalhar em círculos concêntricos sobre a grandeza da nossa obra. Seria fecharmo-nos sobre esta e a sociedade que nos interpela sobre a sua importância.
De facto, a pedra bruta já não está perante a simplicidade do talhe e do saber ancestral que lhe dá forma. Ela enfrenta novas abordagens que a vão deformando numa sociedade onde impera a informação travestida de conhecimento, sem a necessária reflexão sobre o que mudou, dotando o ser humano de novos instrumentos de defesa contra a deformação da pedra bruta e, como tal, pondo em causa o templo colectivo que queremos construir.

Mais do que saber de onde vimos, é determinante saber para onde vamos, sem o que a mensagem se perderá na voragem do imediato.
Mais do que o ritualismo contemplativo e identitário, no qual me afirmo naturalmente disfuncional, importa dar um sentido à orientação da pedra bruta, sendo que o conjunto destas não se poderá esgotar numa montanha de pedras lapidadas na perfeição. Ela, a pedra bruta, só terá significado se o seu talhe se ajustar à construção da nossa catedral colectiva, não se confundindo a pedra comum da parede do templo com a que há-de fechar o arco da cúpula.
Irmãos, estou seguro que nunca atingirei a perfeição ritualista porque, na minha génese de pessoa em construção, é-me impossível transformar o ritual em objectivo de construção interior.
De facto, a pedra bruta também tem a sua origem…a sua génese, seja na sua textura, seja na sua utilização na construção do templo colectivo, seja este marmóreo ou granítico. Seja este artístico, espiritual, intelectual, político ou outro, constituindo-se em imagens distintas do extrínseco do templo, enquanto sujeito e expressão do livre arbítrio da matéria original. De facto, a singularidade da pedra bruta determina o ajustamento das ferramentas com que é trabalhada, pois, se quebrar, perde-se a obra. De facto, não se pode confundir o escopro de desbaste com o esquadro que lhe dará perspectiva no conjunto da obra.

A pedra bruta é, em suma, o símbolo dos símbolos da obra do templo individual e colectivo. Ponto de partida mas, também, de chegada, quanto ao objectivo da obra nos seus desígnios individuais. Outro destino desta não passará de um qualquer “calhau rolado”, quiçá belo… como mero adorno.


 Afonso Gundar, Apr.’.

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