Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

26 de março de 2025

ADORMECIDO (quod omnis probus liber)

 

ADORMECIDO

(quod omnis probus liber)

Tibúrcio, era um jovem como outro qualquer evidenciando ainda no rosto as pequenas sequelas de acne juvenil, mas já com traços de alguma maturidade, que não os exteriores (como a barba cerrada ou as expostas rugas frontais) mas, sobretudo, os interiores-aqueles que são só dele e, portanto, intransmissíveis. Muito sociável tinha de todos uma atenção especial podendo constatar-se que estava plenamente integrado na comunidade a que pertencia.

Estudioso, atento e sensível encaixava-se bem naquilo que os Antigos denominavam de Artes Liberais, ou seja e como deixou escrito um dos Pais do Empirismo de seu nome John Locke, …interrompia bem o santuário da vaidade e ignorância que é uma obrigatoriedade do entendimento humano…Também aderiu ao pacto social-necessidade imperiosa para quem quer viver em comunidade-e procurava nos laços comuns da sociedade (justiça, tolerância e igualdade) o ponto de encontro entre a sua interioridade e o que lhe era dado pelo mundo sensível, aliás, num processo absolutamente racional e comum a toda a humanidade que assim evoluiu per secula seculorum ad nauseam.

Num determinado momento decidiu-se por um caminho iniciático, isto é, entrar no mundo do invisível que não significa transcendente, antes pelo contrário, porque apenas procurava o que de indizível havia no que é evidente. Este processo, pejado de barreiras, levou-o a acantonar-se, melhor dizendo, deu por si num meio restrito, quase secreto, mas de uma riqueza simbólica e interpretativa que o deixava deslumbrado.

Claro que isso lhe custou a perda de popularidade junto dos que, alegremente e sem consciência de tal, se mantinham atidos a uma estruturação social profundamente assimétrica e onde os contrários (riqueza/pobreza; ignorância/sabedoria; evolução/criação; bom/mau ou belo/feio;) erguiam templos ao vício, indignidade e desigualdade.

Naturalmente, e quase sem dar por isso, foi crescendo interiormente afastando-se, lenta e gradualmente, de um mundo que lhe era favorável, mas que deixou de ser interessante que é como quem diz, cavou masmorras intransponíveis para que a vaidade, arrogância e ignorância não mais o atingissem.


Demorou algum tempo (substantivo e respectivo conceito a que ele se agarrou para ligar o que lhe parecia descontínuo e desconexo) a perceber que se sentia isolado, e nos entretantos da sua maturidade interior, sustentada nos vários degraus da escada iniciática, descia amiúde à profanidade do mundo que decidira abandonar dando-se conta que, afinal, era muito parecido com aquele núcleo restrito a que aderiu com a diferença fundamental de que uns exibiam os seus vícios profundamente convictos de tal e os outros disfarçavam o que mais podiam, e quando diz disfarçavam, é no seu sentido mais restrito, ou seja, não queriam mesmo nada verem-se livres dos vícios, antes os escondiam com ferramentas da Ordem a que pertenciam pendurando à cintura utensílios de um enorme significado e valor ou com sinais, toques e palavras de uma responsabilidade sagrada (no sentido etimológico do termo) e legítima.

Devido à sua solidez mental construída, passo a passo e de acordo com uma tradição geometricamente sustentada, não se deixou ir abaixo, antes pelo contrário, continuou empenhadamente a calcorrear o caminho da Luz que derrotou as trevas podendo pronunciar-se como o conhecimento que tudo ilumina e esclarece as zonas cinzentas.

Tal como o movimento está para o corpo também o pensamento está para a alma ou o que seria se não houvesse prazer sem dor. Velhíssima dicotomia esta, entre platónicos e empiristas em que para estes últimos nada está no intelecto que não tenha passado pelos cinco sentidos, e os do Tibúrcio eram aguçados como setas poderosas que o levaram a agudizar a reflexão que é a arma preferida da mente, ou melhor, como a dianoia dos gregos (conhecimento discursivo) se pôs a jeito para situar a mente humana neste Cosmos ainda muito indecifrável, não correndo assim o risco de se beneficiar a si própria.

John Locke, na Carta ao Leitor do seu Essay of Human Understanding, escreveu…o mundo estaria muito mais adiantado se o esforço de homens engenhosos e perspicazes não estivesse tão embaraçado pela erudição e pelo uso frívolo de termos desconhecidos, afectados e ininteligíveis…,ou seja, o entendimento não se observa a si mesmo requerendo esforço e arte para situá-lo à distância que quer dizer o mesmo que por mais que permaneçamos na nossa própria escuridão toda a Luz introduzida nas nossa mentes dar-nos-á uma grande vantagem na orientação dos pensamentos, que era o que fazia Tibúrcio, agora bem mais maduro do que quando começou este traçado, quer dizer, já sem a presunção de ser dono do universo e usando cautela e caldos de galinha nas coisas que lhe excediam a compreensão mas sem menosprezar nunca as vantagens do conhecimento adquirido, e isto tudo num silêncio imposto por ele próprio para melhor reflectir.

Infelizmente, aqueles que estão enamorados da sua própria opinião (John Locke), usualmente recorrem ao erro porque preferem provar os actos baseados em hipóteses que consistem no próprio acto ou como diria, mais uma vez John Locke…supõem os factos devido às hipóteses sem estas serem construídas pela experiência sensível…

Por isto, viu-se Tibúrcio adormecido pelos pares apesar da sua mente e corpo estarem activamente acordados na procura da verdade e na construção do templo da sabedoria ao qual Tibúrcio se sentia próximo, mas muito afastado ainda, por um lado, pela imensidão do saber, e por outro, pelos seus próprios limites.

É claro que este sono do Tibúrcio nada tem a ver com a definição clássica de Adormecimento em que se continua a ser, mas não a estar, ou seja, em que voluntariamente sente que faz parte de uma ordem iniciática universal, mas que, também voluntariamente, se afastou do modus operandi de alguns dos seus irmãos (a maioria?).

O que acontece aqui pode ser mais um dos paradoxos em que a F-M é fértil, isto é, aquilo que parece não é. Vejamos: a velha máxima de que uma vez iniciado será maçom para sempre ainda tem lugar ou já é uma mera abstracção? Explico melhor, ser adormecido pelos irmãos ou adormecer-se a si próprio são duas faces da mesma moeda?

Quero crer que esta moeda tem um nome, a saber: a inexorável transformação sociopolítica actual, particularmente a sua vertente puramente capitalista em que se descartam aqueles que deixaram de produzir e se contratam novas estrelas brilhantes para os substituir que por sua vez terão o mesmo destino, ou seja, a antiga e pujante impenetrabilidade das Lojas maçónicas às práticas profanas ainda funciona ou aquele que um dia foi recebido em júbilo com palavras de apreço no dia sua Iniciação (palavras que se tornaram chavões sem sentido por o seu correlato-as acções-não ter sido cumprido) passará a trunfo descartável?

Na realidade, o que fazem as Lojas, hoje em dia, para resgatar as, outrora, estrelas brilhantes? Que é feito daquele sentir maçónico como meio de nos transformar a nós próprios para sermos livres e de bons costumes? Que é feita da pureza da transmissão heurística em que fazendo perguntas se levava o Iniciado a uma aprendizagem sólida e, efectivamente, transformadora?

Trazer Tibúrcio à Loja ou lavar a Loja para que não existam os factos que o adormeceram? Eis a questão!

Certamente, e já estou a adivinhar, o que não devo, que todos terão uma resposta para esta pergunta, mas, e soluções para que a Cadeia de União se não mostre periclitante e indisfarçavelmente camuflada?

Terá o percurso do Tibúrcio atingido um rigor estremado ou foi a Loja que seguiu à risca e à medida as transformações de cariz profano?

Provavelmente as duas coisas, e quer o Tibúrcio não se sinta adormecido quer os irmãos o tenham adormecido, olhemos mais uma vez para o Templo onde estamos pois está repleto de símbolos que nos podem orientar, não no sentido litúrgico e seguidista (como o sentido que se tira do estafado chavão…porque me abandonaste…), mas por acções marcadamente maçónicas, vale dizer, geometricamente construídas pela verdade, aprendizagem, ensino e, sobretudo, pelo Despertar que se traduz por conhecermo-nos a nós próprios para nos relacionarmos com os Outros e com o Universo sem penachos, inverdades, seguidismos e outros vícios ou paixões que destroem a honra, pureza e dignidade humanas.

Termino citando Jean-Joel Duhot na sua Obra sobre a Sabedoria Estóica que nos diz…o que importa é a entrega à experiência espiritual. A Filosofia deve ser digerida e não empilhada, ou seja, não se pode reduzir à acumulação de informação pois o objectivo é ser filósofo e não fazer filosofia sendo os livros um meio e não um fim…

Diógenes de Sínope M∴M∴

(Resp.'. Loja Salvador Allende a Or.'. de Lisboa)


Bibliographia

-Mainguy, Irène – “La Symbolique Maçonnique du Troisième Millénaire”, Dervy Édition-2003

-Béresniak, Daniel – «Le Gai Savoir Des Bâtisseurs-Essai sur L’Esprit de Géométrie», Éditions Detard aVs- 2011

-John Locke – «An Essay Concerning Human Understanding», Abridged and Edited by Kenneth P. Winkler-1996

-Gaston Bachelard – “La Psychanalyse du Feu”, Librairie Gallimard-1938

-Jean-Joel Duhot– “Epicteto e a Sabedoria Estóica”, Editora Pergaminho-2000


Sem comentários:

Enviar um comentário