Praticar a Tolerância – princípio fundamental da Ordem Maçónica
Apresento-vos hoje uma peça de arquitectura sobre a “Tolerância” que é, como sabeis, um dos princípios fundamentais da nossa Augusta Ordem.
A reflexão e estudo sobre o tema foram-me suscitados como uma urgência, pela ocorrência de três eventos quase simultâneos: o recrudescimento da propaganda de ódio da extrema-direita internacional (e a sua perigosa tradução nacional, com episódios de grande violência como a que vimos acontecer em Dublin no passado dia 24NOV e que, felizmente, em Portugal ainda não tem tão grave expressão, excepto por vezes nos campos de futebol), a tragédia da nova guerra Israel-Palestina, e a leitura de um excelente estudo sobre “A perseguição aos judeus e muçulmanos de Portugal” e de um livro do escritor árabe, Amin Maalouf, grande conhecedor dos conflitos internos do mundo árabe, para quem as nossas civilizações se encontram perante o risco de um “naufrágio iminente”.
Como diz Maalouf, esta é uma “era desconcertante” porque, quando se verificam avanços tecnológicos espectaculares que nos facilitam, como nunca antes, o acesso ao conhecimento; quando se vive mais e melhor em muitas mais zonas do Planeta; e quando se poderia conduzir a humanidade a uma era de liberdade e progresso ... o mundo parece seguir inconscientemente na direcção oposta, rumo à destruição de tudo o que foi alcançado!
Escrevia o nosso Ir.’. Salvador Allende, numa sua prancha de Julho de 2019, já lá vão quatro anos e meio(!), sábia e profeticamente (se pensarmos no que está a acontecer no Médio Oriente): “A luta pelas esferas de influência das grandes potências, em busca de fontes de matérias primas essenciais às novas tecnologias, a par do sempre presente petróleo, aliadas ao papel hegemónico da financeirização global da economia, criaram as condições propícias aos conflitos regionais, que têm descambado em guerras terríveis, impondo às populações enormes sacrifícios e perdas irreparáveis que acabam por ser potenciadas pelo extremismo religioso [e o] reforço da fuga para a prática de religiões ou crenças totalitárias.”
Desconfiança em relação ao “Outro”, xenofobia e racismo, individualismo e intolerância política e religiosa, associam-se à, ou são mesmo promovidas pela, ganância de algumas dezenas de grandes corporações financeiras e pela acção das grandes potências, na sua luta permanente pela conquista de mais poder, mais territórios, mais recursos.
Essa intolerância percorreu o tempo e teve sempre um resultado negativo quando evidenciada individual ou colectivamente.
Assim foi no passado mais longínquo, como sucedeu no Séc. XV com a expulsão dos muçulmanos e dos judeus em Portugal e Espanha, ou no Séc. XVII com a expulsão dos huguenotes de França por Luis XIV, revogando o Édito de Nantes com que o seu avô, Henrique IV, havia concedido a liberdade de culto à minoria protestante (o que resultou em claro prejuízo para o país e benefício para Amsterdão, Londres ou Berlim, onde esses protestantes foram acolhidos e onde muito contribuíram para a prosperidade dessas cidades).
Assim foi no Séc. XX, com a soberba das potências ocidentais na ocupação explícita ou implícita (com a criação de “protectorados”) de vastas zonas do Próximo Oriente e de que é bom exemplo o papel nefasto da França e do Império Britânico na divisão dos despojos da 1ª Guerra Mundial, sobretudo os do Império Otomano derrotado nessa guerra, destruindo equilíbrios antes existentes, não só no plano político mas também nos planos cultural e social, daí resultando desde então os constantes conflitos verificados na região a que passámos a chamar de “médio-oriente”.
Nos dias de hoje, em nenhum país vivem em equilíbrio e harmonia populações cristãs, muçulmanas e judaicas. Nos países islâmicos, os adeptos de outras religiões são tratados como cidadãos de segunda ou ainda pior. E em países de tradição cristã ou judaica, os muçulmanos são olhados com desconfiança e hostilidade.
Como escreve Amin Maalouf, “A desintegração das sociedades plurais do Levante, causou uma degradação moral irreparável que afecta actualmente todas as sociedades humanas e que desencadeia no nosso mundo barbaridades impensáveis” (como as cometidas pelo Hamas dia 7 de Outubro de 2023, ou como a morte de centenas de crianças pelos vingativos bombardeamentos israelitas que se lhe seguiram, digo eu). E, acrescenta ele, “se os cidadãos das diferentes nações e os adeptos das religiões monoteístas tivessem continuado a viver juntos nessa região do mundo e conseguido conciliar os seus destinos, toda a humanidade teria tido diante de si um modelo eloquente de coexistência harmoniosa e prosperidade. Infelizmente, foi o inverso que aconteceu, foi o ódio que prevaleceu, foi a incapacidade de viverem juntos que se tornou regra.”
Tais exemplos reforçam a importância de que cultivemos a tolerância nos nossos comportamentos e atitudes, entendendo-a como parte do nosso compromisso com os princípios maçónicos da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
Porque a tolerância é um bem facilmente perecível, sujeito aos humores do Homem.
Que o digam os judeus convertidos à força, expulsos ou mortos na fogueira às ordens do nosso rei D. Manuel I em 1496-97, em processos violentos e cruéis que incluíram o rapto das crianças e a sua conversão forçada pelas ordens religiosas e as famílias de acolhimento, bem como a morte na fogueira de muitos adultos, para que servissem de exemplo aos judeus que recusavam a conversão ao cristianismo, desdenhando as promessas de “generosos benefícios” oferecidos pelo rei aos que se convertessem!
(Permitam-me aqui um breve parêntesis só para dizer que os muçulmanos foram igualmente expulsos nessa época, segundo uns para cumprir uma exigência dos Reis Católicos antes de casarem a sua filha com o rei português, mas segundo outros, por razões diplomáticas relacionadas com a disputa entre Portugal e a Espanha sobre a autorização papal para as cruzadas de conquista no norte de África, procurando o nosso Rei, com tal gesto, agradar ao Papa Eugénio IV e dele obter a confirmação da sua bula de cruzada Rex Regnum que autorizava Portugal “a conquistar todos os infiéis em África”.)
Mas que a tolerância é um bem perecível e sujeito aos humores variáveis do Homem, também poderá dizer-se a propósito do pobre Jean Calas, cujo assassinato em Março de 1762 pelo cutelo da justiça e a pressão do fanatismo religioso dos católicos de Toulouse, foi o motivo próximo para a escrita por Voltaire (François-Marie Arouet de seu verdadeiro nome) do seu “Tratado sobre a Tolerância”.
Voltaire, um Maçon irrequieto, denunciou a intolerância religiosa, o fanatismo e o dogmatismo predominantes na Europa da sua época, e defendeu a tolerância religiosa e política, a liberdade de expressão e o racionalismo científico.
Fê-lo com veemência e dramatismo, ao falar de eventos como o desta triste família de Toulouse, mas também com fina ironia, como quando se refere ao Padre Malvaux, um jesuíta defensor da tese de que a intolerância é natural e aceite por Deus, autor de um pequeno código intitulado “A concordância entre a Religião e a Humanidade”. Um código que Voltaire apelida como um “código de perseguição e inumanidade” e em que atribui ao autor esta frase de lapidar estadão político: “Se houver no vosso país muitos heterodoxos, tratai-os com circunspecção, tentai convencê-los; se forem uma pequena minoria, ponde a funcionar a forca e as galeras e vereis como é remédio santo”!
Permitam que vos deixe ainda uma curiosa referência de Voltaire a Portugal neste seu Tratado. Diz ele que o princípio universal da natureza humana é “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. E, portanto, segundo este princípio, não vê como um homem poderia dizer a outro: “Ou acreditas no que eu acredito, ou és um homem morto”, acrescentando que “É isto mesmo o que se diz em Portugal, em Espanha, em Goa [...]”, o que só pode ser entendido como uma alusão à Inquisição então em vigor nestes países. E conclui, “O direito à intolerância é pois absurdo e bárbaro: é o direito dos tigres, e é bem mais horrível, porque os tigres só dilaceram para comer e nós temo-nos exterminado uns aos outros por uma questão de parágrafos”.
E aqui está um escrito do final do Séc. XVIII que se aplica tão bem ao que sucede na década de 20 do Séc. XXI! Que o digam os já mais de 16.000 mortos, palestinos e israelitas, em resultado do mais recente conflito entre árabes e judeus.
MM.’.QQ.’.IIr.’.
Como refere Guy Chassagnard [no Petit Dicitionnaire de la Franc-Maçonnerie] “a Tolerância é um princípio primeiro da Maçonaria, para quem todas as ideias são respeitáveis desde que emanem de espíritos sinceros que exprimem a verdade sob diferentes aspectos. Nenhum homem livre e de bons costumes pode permanecer no erro absoluto, nem vangloriar-se de deter a verdade perfeita”.
Assim é na nossa Augusta Ordem, em que a tolerância é defendida nas suas várias dimensões.
A Maçonaria promove a tolerância religiosa e política. Aceita e respeita membros de diferentes religiões e crenças espirituais, e a política partidária nunca é tema das suas reuniões, sendo valorizada a diversidade de perspectivas políticas dentro da fraternidade.
A Maçonaria (pelo menos a que é adogmática e liberal) promove a tolerância étnica e racial, defendendo a igualdade de todos os seus membros, independentemente de sua raça ou origem étnica e combatendo qualquer forma de discriminação.
A Maçonaria promove a liberdade de expressão e a tolerância perante a diferença de ideias e opiniões, entendendo-as como um meio de promover a unidade e a harmonia entre seus membros, bem como a sua melhoria moral e espiritual.
Enfim, a Maçonaria promove a tolerância como um reflexo do seu desejo de construir um mundo melhor e mais justo, assente em valores universais de fraternidade, igualdade e respeito mútuo.
É verdade que nem sempre temos bom exemplo disso entre nós.
Como não me parece justo concretizar ou fulanizar, deixem-me citar alguns excertos do pensamento de John Locke, um teórico da democracia, profeta da separação entre Estado e Igreja e grande defensor da tolerância, não apenas entre confissões religiosas, mas como um conceito filosófico indispensável para a resolução de conflitos sobre os limites das identidades e fronteiras individuais e colectivos.
Ora, dizia ele que:
-“A tolerância para com aqueles que diferem de outros em matéria de opiniões religiosas, ajusta-se tanto ao Evangelho de Jesus Cristo e à genuína razão humana, que parece monstruoso que haja homens tão cegos que não percebem claramente a sua necessidade e vantagem”. Ou ainda,
-“Aquele que assumir o ofício de ensinar [que é uma das obrigações do M:.M:.] está também obrigado a advertir os seus ouvintes dos deveres de paz e boa vontade para com todos os homens, quer estejam equivocados, quer sejam ortodoxos, quer divirjam deles em matéria de fé e de culto. E deve exortar convictamente todos os homens à caridade, à humildade e à tolerância”.
Como as suas teses foram escritas no final do Séc. XVII, é natural que se refiram sobretudo à tolerância religiosa e à separação entre Estado e Igreja. Mas não há dúvida de que, na sua essência, se aplicam como uma luva a certas situações “clericais” vividas no nosso seio.
MM.’.QQ.’.IIr.’.,
Num momento em que ressurgem os fantasmas de novos fascismos, da intolerância violenta, política e religiosa, da guerra global, é indispensável a mobilização dos homens e mulheres que adotam como divisa “a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade”, como lema “a Justiça, a Verdade, a Honra e o Progresso”, e como norma de acção “a procura da conciliação dos conflitos”, a “união dos homens na prática de uma Moral Universal”, e a “condenação das regalias injustas, no respeito da personalidade de cada um” .
E nós, que entendemos ser a Maçonaria “uma Ordem universal, filosófica e progressiva, fundada na Tradição iniciática, obedecendo aos princípios da Fraternidade e da Tolerância, e constituindo uma aliança de homens livres e de bons costumes, de todas as raças, nacionalidades e crenças” , temos não só o dever de defender, mas também a obrigação de praticar estes princípios e valores Maçónicos que nos unem e animam.
Pois que assim o façamos! E que assim o façam todos!
Cândido, M.’.M.’.
Resp:. L:. Salvador Allende a Or:. de Lisboa
Bibliografia:
Constituição do G:.O:.L:.
RLSA, Ir:. Salvador Allende, “Porquê ser Maçon no Séc. XXI?”, 2019
Locke, John, Carta sobre a Tolerância, 1686, Padrões Culturais Editora
Voltaire, Tratado sobre a Tolerância, 1763, Editora Relógio d’Água
Soyer, François, A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal – D. Manuel I e o fim da Tolerância Religiosa (1496-1497), Edições 70, 2022
Maalouf, Amin, O Naufrágio das Civilizações, Editora Marcador, 2020
Chassagnard, Guy , Petit Dicitionnaire de la Franc-Maçonnerie.
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