A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA E A ESCRAVATURA GLOBAL
Quando Étienne de la Boétie escreveu no seu “Discurso sobre a Servidão Voluntária”, e cito…os tiranos fazem de tudo para ganhar fortuna e poder…, mal sabia ele que estava a adivinhar o futuro. Com efeito, se tivermos a ousadia de revisitarmos a obra referida, constatamos que a Servidão Voluntária, melhor dizendo, servir em vez de obedecer, está relacionada com, no tempo de Étienne, a religião e monarquia e, nos tempos de hoje, com a ignorância e a iliteracia.
Montaigne (amigo do Autor) considerava que a obra do amigo terá sido o 1º hino à liberdade escrito e pensado por um ser humano. Assim, ressaltou que o poder que um ser humano sozinho exercia sobre o outro era ilegítimo; que o uso da demagogia só tinha efeito devido à ignorância que grassava na época (só o clero e alguns Nobres sabiam ler e escrever); será, como escreveu Étienne, que a liberdade está muito perto da solidão e da loucura?
Exponho-vos a minha reflexão pessoal, a saber:
Não vou cair na tentação de tentar justificar porque tantos servem um só (seria objecto para 4 ou 5 pranchas elaboradas poe eruditos), apenas deixo-vos algumas pistas que poderão desenvolver se assim o entenderem. A 1ª é a contradição expressa no título, servidão voluntária (ou como escreveu Étienne…traidores de nós próprios), não imposta traumaticamente, apenas aceite e sem luta. A 2ª tem a ver com alguns freudianos que insistem que é o medo da liberdade que leva à servidão, ou seja, a incapacidade de nos governar a nós próprios abre caminho a quem o faça por nós. Por fim a 3ª pista que é a polarização (a velhíssima tensão do se não és por mim és contra mim tão habilmente aproveitada pelos dominadores que se apropriam da habituação à servidão no dizer de Étienne) política implícita que é o contrário do diálogo e da dialéctica, processos que mais facilmente impedem o amorfismo e a dominação e nos dão a consciência e a capacidade de destruir a tirania. Se por um lado e de acordo com S. Freud, o homem nasce entre urinas e fezes e o extraordinário percurso que o levará a ser decente, solidário, culto, fraterno e, sobretudo, livre, deve ser contado, relembrado e partilhado.
Por outro lado, é a chamada descida aos infernos que torna a elevação marcadamente válida, ou seja, estudar e revisitar a servidão voluntária poderá levar-nos a renascer na liberdade (liberdade que é muito bem caracterizada por Étienne numa tríade que cito…obedientes aos que têm mais experiência; submissos á razão; e de ninguém escravos;)?
Perguntas que se seguem: qual é a natureza do ser humano? Livre ou escravo? Por quem lutamos? Pelo tirano ou pelo democrata? Como explicamos este fenómeno de servirmos e não obedecermos apenas (os animais obedecem ganindo e gemendo, os pássaros guincham nas gaiolas, as crianças obedecem aos pais refilando, etc.;)? porque não quer o homem lutar pela sua condição básica que é a Liberdade? Porque se sujeita ele a ser dominado (relembro, de novo, Étienne que escreveu…um tirano não precisa de ser derrubado, basta que lhe não demos coisa nenhuma)?
A liberdade, parece ser contrariada pelo determinismo cientifico do causa-efeito, porém, convém não esquecer que o mecanismo quântico) que regula o universo) é revelado e expresso em termos de probabilidade, pelo que a maior prova da liberdade humana poderá ser o interesse directo em negá-la.
Não se pode separar o sujeito da acção nem deslocar o ónus da prova para os que são livres, quer dizer, pedem-nos para provar que não somos livres em vez de provarmos que somos. Também não devemos associar a liberdade às consequências de uma acção, louvando ou culpabilizando o agente da acção devendo pois libertarmo-nos da cadeia de causas e efeitos. Os sujeitos transcendentes (obedecendo apenas às causas da razão) de Kant são apenas fantasmas, não existem, contudo, é importante reter que a liberdade é a pré-condição de toda e qualquer tomada de decisão. O que está para lá do limiar da realidade pode sujeitar-se a conceitos, como quereria E. Kant? Responde-se com a última proposição do Tractatus de Wittgenstein: aquilo de que não podemos falar, temos de a relegar ao silêncio. Será que a decisão de nos incomodarmos com a liberdade é a melhor demonstração de que ela nos é inerente devendo agradecermos a E. de la Boétie e outros esse facto. Atenção que não estamos a falar de Moral (em que certas pessoas são indiferentes ao mal que possam causar) mas de liberdade em que o diálogo e a reflexão se impõem para melhor usufrui-la e conseguirmos ver as pessoas como elas são e não querer mudar o que são como faz a ciência e a moral.
E, nos tempos actuais, quem substituiu a monarquia e a religião como agentes da servidão voluntária? Múltiplos são os factores que para tal contribuem, mas, penso que podem ser reduzidos à ignorância e dentro desta à iliteracia pois sabemos que nunca como agora se obteve tanto conhecimento.
As políticas economicistas dos neoliberais (curiosamente ensaiadas com o derrube de S. Allende no Chile) têm feito de tudo para normalizar quem é diferente por natureza, seja no ensino e educação seja na prática profissional e fá-lo por baixo, ou seja, brutalizando em vez de elevar a excelência. O descaramento de se estar marimbando é detalhadamente promovido em tenra idade, de modo a que a servidão se instale sem dar-se por ela. Servir é bem pior que obedecer pois os tratantes usam os outros para cumprir o papel de dominar, oferecendo-lhes mordomias envenenadas e distorcidas. Não posso deixar de recordar os pais fundadores da N∴A∴O∴ que insistiram na educação/instrução como forma major de combater a tirania, a vaidade e a ignorância.
Não há ideias perfeitas, apenas plausíveis e da mesma maneira que só damos valor a um sistema quando ele nos falta também a servidão em excesso nos leva a querermos lutar pela liberdade, da qual o ser humano é indissociável.
O templo interior dos Iniciados demora uma eternidade, não cai do firmamento nem é oferecido por um qualquer Demiurgo. Degrau a degrau, entre irmãos, ferozmente e sem tréguas, devemos dar à servidão o tratamento que ela merece, ou seja, expulsa de uma vez por todas.
Amolecermos é a base do progresso da servidão e quando vejo irmãos desta casa enfadados com o trabalho em loja, com os percalços dos rituais, a chegarem-se à frente sem estarem qualificados, endeusados com pretensos cargos que são apenas técnicos, então, nestas alturas vejo que poderá ter sido em vão a morte do patrono da nossa loja e dos imensos sacrifícios que muitos fazem, anónima e arduamente, para combaterem o vício (servidão) e elevarem a virtude (liberdade).
A velocidade dos erros individuais está a transformar a escravidão num fenómeno global com mais de 40 milhões dos chamados escravos modernos (os que não sendo escravos vivem em condições de escravatura) presos por convenções, contractos e casamentos. Felizmente que a solução deste tipo de servidão se combate com políticas e medidas sociais correctas e mais justas, ao contrário da servidão mental não imposta. Voluntariamente vos convido a iniciarem a varredela da desta servidão para destaparmos aquilo com que vale a pena lidarmos, ou seja, a Liberdade!
Étienne de la Boétie deixou escrito, e cito…adaptamos o discurso, mais às circunstâncias do que à verdade, o que nos leva a contemporizar, contudo, também remarcou que, e cito mais uma vez…. Entre os homens livres, todos disputam quem há-de ser o primeiro a servir o bem comum
Diógenes de Sínope M∴M∴
Resp∴ L∴ Salvador Allende ,Or∴ de Lisboa
Bibliographia
-Mainguy, Irène – “La Symbolique Maçonnique du Troisième Millénaire”, Dervy Éditions-2003
-E. de la Boétie – “Discurso da servidão voluntária”, L.C.C. Publicações Electrónicas, www culturabrasil.org-2006
-Béresniak, Daniel – « L’Apprentissage Maçonnique-Une École de L’éveil », Éditions Detard aVs- 2009
-Béresniak, Daniel – « Le Gai Savoir des Bâtisseurs », Éditions Detard aVs- 2011
-Alain Subrebost – “Petit Manuel D’Éveil et de Pratique Maçonnique”, Dervy Éditions-2017
-Eagleton, Terry. – “Why Marx Was Right”, Yale press university-2018
-Hamill, J. – « Teorias Acerca das Origens da Maçonaria »
-Scruton, Roger – “Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes”, Tradução, Guerra e Paz Editores-2023
- Eagleton, Terry. – « Humor », Cambridge Edições 70-2022
-Sand, Shlomo. – “Breve História Mundial da Esquerda”, Livros Zigurate-2023
-Feynman, R. – “The Character of Physical Law”, Penguin Books-1992
P.S. a grafia do Traçado não está de acordo com o Acordo Ortográfico proposto, (mas ainda não ratificado pela totalidade dos Países Lusófonos)
Belíssima reflexão, tal Diógenes ! Excelente exercício por liberdade
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