MÚSICA E MAÇONARIA
A música, com linguagem própria e estrutura genuína, acompanhou homens e mulheres desde os tempos da proto-história, e refiro-me ao espírito musical xamânico do Neolítico em que as peles dos animais mortos eram esticadas e depois percutidas para se iniciar a comunicação com o espírito dos animais, ou seja, a música falava a língua da natureza economizando o verbo e as palavras (significante sem significado). Mais tarde, sob a forma de cânticos (a voz é considerada o primeiro instrumento musical que se conhece), logo, acrescentado o verbo, passou a ter um significado em que se reforçavam os laços fraternos e se emitiam mensagens de prazer, reconhecimento, regozijo, alegria e reflexão. Mais recentemente tornou-se a expressão das inquietações pessoais relativas aos paradoxos da vida procurando vencer o sofrimento, ou seja, uma projecção dos estados emocionais puramente humanos.
À medida que foi evoluindo desenvolveu uma técnica e uma linguagem à margem do pensamento conceptual tornando-se numa das formas da criação artística. Podemos, então, compará-la à chamada Arte Real por esta também gerar uma construção ordenada saindo do Caos fazendo emergir o melhor das qualidades humanas a partir da Pedra Bruta polindo-a e aperfeiçoando-a num enquadramento cosmogónico universal. Tornou-se assim um elo condutor entre a Beleza, patente no Universo e na mole humana.
Ambas tarefas têm muito de espiritual mas também trabalho duro e puro (artesanal), aliás, como qualquer tarefa humana que sem trabalho nada se faz ou constrói, isto é, procuram a virtude melhorando-a com destreza, rigor, disciplina e sensibilidade que não se querem exclusivos mas compartilhada com os Outros.
Reflectir e expor as posições espirituais sobre os aspectos existenciais enigmáticos parece-me, pois, um papel claro que a música e a maçonaria desempenham.
Aquilo que chamamos a Coluna da Harmonia apareceu nos finais do Reinado de Louis XV e a competição entre Lojas, para que exibissem as melhores peças musicais e os mais virtuosos músicos, originou que se admitissem obreiros isentos de quotização mas sem poderem progredir acima do Grau de Mestre, logo, a música esteve sempre presente desde o início da chamada era especulativa propagando-se até ao Séc. XX e caindo em desuso a presença humana à medida que os novos meios de reprodução musical (fonógrafos, gira-discos, cassetes e os actuais leitores de CDs) se foram impondo, porém, para autores com D. Béresniak, e cito…a música é absolutamente indispensável no Ritual, não somente na ocasião de cerimónias especiais mas também na abertura e duração dos trabalhos por cobrir a agitação da alma e arrastar as emoções para as alturas, ou seja, a música favorece um recondicionamento para o estado do Ser não sendo por acaso que qualquer ópera ou sinfonia dispense uma Abertura…
Com efeito, o fenómeno musical pode ser associado à manifestação da Arte Real. Vejamos alguns exemplos:
1- A segunda Sonata de Franz Lizt escrita em 1854 (treze anos após a sua Iniciação) utiliza recursos sonoros de carácter descritivo (o mar ou as tormentas) para mimetizar estados emocionais, melhor dizendo, fazendo uso da mitologia (Leandro-jovem da cidade de Abidos, e Hero-sacerdotisa de Afrodite proibida de amar) leva-nos a respostas desejadas sobre o amor e a morte.
2- Atentemo-nos no Jazz em que as conexões com a maçonaria são demasiado evidentes bem expresso por Duke Ellington (Iniciado aos 33 anos em 1932) na sua canção-ícone I’m Biggining to See The Light em que o despertar iniciático se revê aqui com grande clareza. Não se pode esquecer que este tipo de música está intimamente associada à Libertação da Escravidão Norte-Americana em que, tanto no Jazz como nas acções político-sociais, se evidencia a consciência individual, muito diferente e diversa, mas diluindo-se na obra colectiva.
3- Claro, tem que se falar na Ópera em geral, e sobretudo, nessa estupenda peça composta por W. Mozart (Iniciado em 1874) que se chama a Flauta Mágica onde os estádios iniciáticos se vêm aqui excelentemente reproduzidos. Aproveitando um Canto infantil (a melhor maneira de descrever um processo humano separando os arquétipos subjacentes), Mozart, a pedido de um Ex maçon de seu nome Schikaneder, reuniu elementos cabalísticos, egípcios, do Tarot, alquímicos e tradições esotéricas para elaborar uma obra monumental ainda hoje considerada como a melhor das peças musicais sobre a maçonaria. Nesta Ópera foram reproduzidos os velhos dilemas da humanidade a que a Franco-Maçonaria tanto se dedicou e que se podem resumir à trama da peça, ou seja, um universo polarizado por um mágico bom (Sarastro) e um mágico mau (Rainha da Noite), por um herói idealista (Tamino) e um herói materialista (Papageno) que querem resgatar uma princesa (Pamina) do Castelo dos Maus. Para tal, submetem-se os heróis a provas iniciáticas clássicas (ar, terra, água e fogo) reagindo de acordo com a natureza de cada um e das suas capacidades. As figuras da Luz/Escuridão, Profano/Iniciado ou a ida aos infernos para renascer são demasiado maçónicas servindo a música para as expressar.
Muitos mais exemplos poderiam aqui transcrever-vos mas tornaria demasiado pesada esta singela peça que pretende apenas relacionar, para reflexão, a música e a maçonaria.
Tem a música uma função ritual, pergunta o maçon e musicólogo Belga Jean Van Win? Perguntando melhor, pode-se falar de música maçónica ou apenas de um conjunto de peças musicais circunstanciais para acompanhar exéquias, cerimónias ou ágapes?
Feita a pesquisa histórica, não há evidência que a chamada música ritual tenha existido, a não ser em alguma Lojas da Áustria em 1785 e na Loja Mãe de Marselha em 1813, ou seja, para os historiadores da maçonaria o que pode ter acontecido foi que a música foi introduzida no Séc. XVIII para recreio dos IIr∴ começando a propagar-se timidamente, particularmente nas Lojas com IIr∴ melómanos, mas nunca fazendo parte dos rituais da altura. Foi a partir de 1945 que aparece o Intendente da Harmonia pela 1ª vez, tendo este Oficial uma função pouco precisa e dependente dos caprichos dos VV∴ MM∴, quaisquer que fossem as Lojas, sejam Azuis, Perfeição, Capítulos ou Areópagos., ou seja, são poucas as Lojas que se atrevem a dotar-se de uma política músico-ritual resultando um certo eclectismo (música barroca, gregoriana ou sacra) e mesmo uma certa anarquia como consequência da transformação dos rituais num encantamento musical em vez de terem como objectivo a eficácia iniciática.
Para o Autor citado, da mesma maneira que se deseja que o trabalho intelectual em Loja tenha uma finalidade a médio e longo prazo também a música deveria contribuir para esses objectivos, ou seja, além da destreza, a independência do significante em relação ao significado teria que existir, melhor dizendo, a música e o ritual têm um paralelismo interessante por ambos se dirigirem à inteligência emocional e à intuição, pois como sabemos, apesar de ter 68 anos, dizemos que temos 3 anos ou que recebemos a Luz quando estamos ainda a procurá-la. Cito Jean Saurier…a maçonaria é o testemunho de um outro mundo baseado em estruturas mentais intuitivas mais do que analíticas…vale dizer, este é, mesmo, o mundo do inefável, isto é, não é possível explicar ao Outro o que sentimos quando escutamos uma peça de Schubert ou o segredo iniciático. De uma vez por todas, a música e o ritual devem seguir o clássico exemplo cinematográfico da adequação/subordinação em que muitos filmes ficam conhecidos, exactamente, pela música não valendo de nada estarmos num contexto maçónico de grande profundidade ao lado de uma música, embora agradável e bem-feita, que nada diz ao ritual.
Música composta, exclusivamente, para o ritual só se tem conhecimento da de Sibelius com o seu Opus 113 e a de Arsène Souffriau que compôs uma peça para cada um dos 33 Graus do REAA.
O que se passa, na realidade, é que as Colunas da Harmonia recorrem à música profana que foi feita para uma intenção distinta da Iniciação maçónica. Um exemplo: quando, na Iniciação, se retira a venda ao recipiendário, o VM∴ diz-lhe que descobriu a Luz e, na maior parte das vezes, a Coluna da Harmonia mata literalmente esta descoberta com música circense ou com o rufar dos tambores do Assim Falava Zaratustra de R. Strauss pois a Iniciação não é uma espécie de milagre deslumbrante mas sim uma entrada humilde, lenta e progressiva devendo a música corresponder a essa ideia, e há tantos trechos musicais desconhecidos de Autores conhecidos que são muito mais adequados aos trabalhos iniciáticos, é só escolher não esquecendo nunca que um reportório repetido e sem surpresas causa mais distracção que reflexão.
Para finalizar faço uma referência à propalada música das esferas que, como sabemos, representam simbolicamente o Cosmos e o incompreensível. A música, como sistema matemático que é, poderá ser metaforicamente entendida como o equilíbrio cósmico ou o ideal da perfeição imperfeita, ou seja, proporcionar uma interessante aprendizagem de como a perfeição das esferas pode ser comparada à pura física dos sons, timbres e tonalidades, estritamente mediados pela emoção humana.
Quando escutamos um trecho musical que nos parece dissonante podemos comparar aos pequenos e grandes desvios do movimento dos Astros que perturbando o Todo causam um desequilíbrio de uma coisa que é equilibrada por natureza, exemplifico: quando, num estádio desportivo, se canta o Hino Nacional sabe-se que é mal cantado e desafinado mas isso não impede a co-emoção e alegria do que evoca, ou mesmo quando um conjunto extraordinariamente gigantesco de esferas do cosmos com órbitas rigorosamente distintas não impede o funcionamento global do Universo.
Que extraordinário é saber que a percussão de algo produz um som que se pode definir fisicamente através do seu comprimento de onda que, arbitrariamente ou não, se pode combinar e misturar vezes sem conta, tal como acontece com os milhões de átomos do Universo. Que delícia conseguir abarcar, que de um elemento físico minúsculo se elaborem Escalas, tónicas e modulações comparáveis à harmonia do Cosmos, enfim, que fantástico sentir quão perfeita é a vida por condensar em si um Todo onde cabe, também, a imperfeição.
Música e Maçonaria? Dissonâncias e profanos de avental à parte, têm muito mais em comum do que parece, não?
António Telmo deixou escrito…com um propósito iniciático e órfico deve-se emprestar às palavras um alcance capaz de as tornar uma empresa espiritual…Assim seja, acrescento eu, e relembrando Dolores Maro (especialista no estudo da Antiguidade Grega) que escreveu ser... a fixação materialista uma arrogância intelectual inconsciente…
Diógenes de Sínope M∴M∴
R∴ L∴ Salvador Allende a Or∴ de Lisboa
Bibliographia
-CM, Cultura Masonica-Revista da Francomasoneria, Ano II-nº8, Julho 2011
-Gérard Gefen - “Les Musiciens et La Franc-Maçonnerie, Editeur Fayard-1993
-Pierre-François Pinaud – “Les Musiciens Francs-maçons au Temps de Louis XVI“, Editeur Véga-2009
-Hervé Mestron – “Colonne D’Harmonie-Symbolique de la Musique en Loge”, Editeur Maison de Vie, MdV Editeur-2017
-António Telmo – “Gramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética“, Zéfiro, Edição e Actividades Culturais-2014
-Brian Thomas Swimme – “Cosmogenesis-An Unveiling of the Expanding Universe”, Berkeley Counterpoint-2022
Esse trabalho é uma respeitável obra de arte a ser apreciada em Loja como instrução a todos os graus e ritos ...excelente compartilhamento de um Mestre...
ResponderEliminarParabéns e grato Diógenes de Sínope!