Com a devida vénia se transcreve, da Revista Tempo Livre, este artigo de António Valdemar (a Ilustração é da autoria de Álvaro Carrilho)
Alexandre O’Neill, Viajando com livros, a desmontagem da rotina,
A sátira arrasadora dos pecados mortais dos portugueses, sem ocultar as grandes interrogações que colocam o homem perante a angústia da vida e o desespero da morte.
Poucos escritores e poetas denunciaram, como Alexandre O’Neill, os ridículos, as frivolidades, o absurdo, a tragicomédia da sociedade portuguesa. Daí o paralelo entre a sua obra, a de Nicolau Tolentino e a de Cesário Verde. Nos três podemos encontrar afinidades, embora com escritas diferentes, visões diferentes e os condicionalismos de épocas diferentes. De todos, O’Neill está mais próximo de nós. Ainda continua a fazer parte do quotidiano. Recorreu à ironia e ao sarcasmo para a desmontagem de hábitos e rotinas ancestrais.
Alexandre O’Neill (1924-1986) faleceu com pouco mais de 60 anos. Já não era novo, mas também não era velho. Morreu destroçado por crises cardíacas e hospitalizações penosas. Ficou, a certa altura, um velhinho magro, pálido e de bengala, igual àqueles velhinhos à espera da morte nos bancos dos jardins. Mal começava a falar, esquecíamo-nos do espectro físico em que se transformara. Logo nas primeiras palavras, emergia a sátira rebelde para comentar o dia a dia. Até ao fim mostrou--se implacável perante «o País engravatado todo o ano / a assoar-se na gravata por engano, / o incrível país da minha tia, / trémulo de bondade e de aletria»…
Não poupava a vulgaridade presunçosa, a pequena burguesia, que julga ser o máximo, que dá cartas, que prega moral, que não tem vergonha e muda de cara, quando lhe convém, enquanto vai fazendo a vida negra aos outros: «Todos os dias os encontro – escreveu numa das suas crónicas tão incisivas como os seus poemas – Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los» (…) Mas também os aturo por escrito. No livro. No Jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema). Querem vencer, querem convencidos, convencer. Vençam lá à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.»
Viajou. Andou de país em país. Viu museus e palácios. Comeu e bebeu tudo o que lhe apetecia em bons hotéis e bons restaurantes. Mas Lisboa permanecia dentro dele. Era aqui o seu território: passar nas livrarias e alfarrabistas; ir às tascas do Bairro Alto, frequentar velhas leitarias e antigos restaurantes que já não existem ou se existem têm outros clientes. Estou a vê-lo e a ouvi-lo num bate papo numa das esquinas, entre o Príncipe Real e a Rua do Alecrim, a desafiar para uns carapaus fritos, com salada fresca, um tinto do lavrador e a sair do barril. E café. Sempre café.