Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

10 de abril de 2019

INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA -Um desafio BioÉtico


INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA
-Um desafio BioÉtico

A vontade do Ser Humano em melhorar as suas condições de Vida tem sido constante; no entanto nos últimos séculos e, em particular desde àcerca de trezentos anos, essa preocupação tem adquirido uma maior celeridade.
No tempo distante da “…Antiguidade Grega…assistimos à emergência do Conhecimento  àcerca da natureza e do homem…<e, nessa altura>...Ciência e Ética não <eram> verdadeiramente discerníveis…” (1).
Se analisarmos o séc. IV a. C. encontramos SÓCRATES para quem “…não seria possível conhecer o Bem e não o praticar, na assunção de uma perfeita coincidência entre Conhecimento e Moralidade…”  enquanto que, para PLATÃO “…esta coincidência se mantém ainda que, ao ser projectada para um plano metafísico, se torne num ideal inalcançável (excepto por participação)…” (2).
Só no séc. III a. C., com ARISTÓTELES, “…opera-se uma clara distinção entre a Ciência como conhecimento teórico e a Ética como conhecimento práctico…” (3).
Muito mais tarde – no séc. XVIII – KANT “…rompeu com o intelectualismo moral ao estabelecer uma irredutibilidade entre a razão teórica e a razão práctica…<sendo que>…a razão teórica procura o Conhecimento, isto é, a relação de necessidade na natureza entre causas e efeitos e a razão práctica orienta o Homem no âmbito da indeterminação da liberdade em que esta se desenrola…” (4).
Mª CÉU PATRÃO NEVES afirma, concluindo,  que “…tal correspondeu a uma democratização da Moralidade cujo dever se passa a impor igualmente a todas as pessoas e sem que o nível de Moralidade dependa do nível de Conhecimento…” (5).

Não devemos esquecer, no entanto, a importância do “…Renascimento na formulação de um novo paradigma científico pautado pela exigência de demonstração racional de todo o Conhecimento, fundada na experiência…” o que, no séc. XVII – com FRANCIS BACON e RENÉ DESCARTES – “…se consolida…como método de comprovação de conhecimentos teóricos…” (6).
É no séc. XIX, e após AUGUSTO COMTE “…que,…devido à estruturação do método experimental, vários saberes se vão…constituindo como Ciências…assim se autonomizando da Filosofia, como interpretação racional do real…” (7).
Chegados ao séc. XX assistimos a um enorme desenvolvimento das ciências “…e…<às> suas promessas de um mundo melhor…” (8) até à Segunda Guerra Mundial no contexto da qual, coincidente com o grande conhecimento no âmbito da Física, sucede “…a deflagração das bombas atómicas de HIROSHIMA e de NAGASAKI…” (9), no Japão, como utilização política dos resultados científicos do “ Projecto MANHATTAN que visaria o desenvolvimento da produção de energia…<mas deu origem à>…produção de uma arma de destruição maciça, ímpar até hoje…” (10).

Em consequência “…a Ciência perdeu o seu estatuto de neutralidade e o Cientista perdeu a sua inocência; simultaneamente a Ciência reconheceu o possível contributo da Ética…e o Cientista ganhou humildade…”. E, por conseguinte,  conclui Mª CÉU PATRÃO NEVES: “…É este o berço da Bioética…” (11).
-- Estará, então, posta em causa a capacidade criativa do Cientista? Verá a Investigação Científica coartada a sua actividade pelos eventuais limites apostos ao seu caminho?
TOSCANO RICO, em 1995, indicou-nos as “…qualidades básicas do espírito científico: curiosidade, atenção, imaginação criadora, disciplina interna, honestidade intelectual, espírito crítico…” (12).
E a estas qualidades acrescenta F. MARTINS VALE: “…<a> natureza subjectiva da Verdade…<que> deve estar sempre presente no espírito do Investigador e do Clínico…<pois> só o espírito crítico e a humildade que <estas> pressupõem podem minimizar os erros na procura da verdade…” (13).
Este conjunto de atitudes/conceitos foi recentemente consubstanciado no “…”European Code of Conduct for Research Integrity – ALLEA, 2017”… : “1/confiabilidade…; 2/honestidade…; 3/respeito…; 4/responsabilidade…; <pelo que> …o objectivo deve estar na procura da verdade (honestidade), usando os métodos cientificamente comprovados (confiabilidade) e eticamente robustos (respeito) e com impacto para a comunidade científica e para a sociedade (responsabilidade)
Quanto à liberdade do Cientista “…<esta> …é, também, a sua grande exposição; não é possível conservar as vantagens da liberdade ( a independência) livrando-se dos seus correlatos (a responsabilidade)…O Cientista íntegro produz ciência boa, assim correspondendo ao capital de confiança que a comunidade nele deposita…” (15).
A “…liberdade de pensamento e de acção é…reconhecida na “Carta Europeia do Investigador” adoptada pela Comissão Europeia em 2005 <e onde se afirma que> : …”Os Investigadores devem realizar a sua Investigação  tendo como objectivo o Bem da Humanidade…” (16).
Por outro lado quando se fala de e se trabalha para o progresso científico há que ter em conta “…a consciência dos seus riscos potenciais <assim contribuindo> para os prevenir e <então> a Bioética pode ser interpretada como…a consciência da justa medida, prudente, entre as promessas da Ciência e a promoção da Ética…<, isto é,> a consciência lúcida…” (17).
Comportamentos de má conduta, recentes no tempo, como:
a) “…a investigação em ciências biológicas desenvolvida pelos médicos nazis…implicando a tortura e o homicídio de milhares de pessoas reduzidas à condição de descartável...” (18);
b) “…a inoculação de células cancerígenas em cerca de 22 idosos,  doentes crónicos e senis, no “Jewish Chronic Disease Hospital <USA>”… <denunciado em Janº/1964 pelo New York World-Telegram>…para avaliar se o sistema imunitário de pessoas debilitadas reagia diferentemente ao cancro quando comparado com o de indivíduos saudáveis…” (19);

c) <o exemplo de> “…WillowBrook, sobrelotado Orfanato m Nova York <USA> para crianças com deficiência mental, as quais vinham sendo utilizadas em experiências desde os anos 60 <do séc. XX e que>…, entre 1963 e 1966, e ao abrigo dos frequentes surtos de Hepatite na Escola, desenhou-se um projecto para estudar o desenvolvimento da doença o que implicou a inoculação do vírus da Hepatite em crianças saudáveis. O caso foi denunciado entre Novº/1971 e Janº/1972…” (20);
d) <o caso de> “…em 1972…a Jornalista Jean Heller ter divulgado a existência de um estudo sobre a evolução da Sífilis que decorria em Tuskegee <USA> envolvendo cerca de 400 Homens de raça negra. O estudo havia <sido> começado em 1932, quando ainda não havia tratamento para a Sífilis <mas> a partir de 1942 <com a descoberta da Penicilina> tornou-se facilmente tratável. Não obstante a população de Tuskegee <USA> continuou sem acesso à cura para que o estudo pudesse prosseguir…” (21).
“…Estes casos mostram a violência perpetrada sobre pessoas em nome da Ciência, décadas depois do Código de NUREMBERGA...”  (22).
J. RIBEIRO da SILVA, em 1994, ensinou-nos que “…Investigar deixou de ser, apenas, um anseio pessoal…para se tornar numa profissão…enquadrada num funcionalismo múltiplo e variado… <desempenhado por grupos> …de Investigadores – planificados ou formados – que já não são mais os talentos fulcrais do passado mas <sim> os técnicos preparados e, até, Licenciados nas técnicas de Investigação…” (23).
Sabendo nós que “…a Ética do Investigador e a Verdade da Investigação têm de ser coincidentes…” (24) temos também por certo que “…a área da Investigação é muito sensível e sujeita a pressões múltiplas movidas por interesses económicos…” (25).
Assim há que estar eticamente atento à “…má conduta…<não aceitando>…o que é e está essencialmente errado … <como> …a fraude, a fabricação, a manipulação, o plágio, os atropelos à autoria…facetas… <que> …implicam uma rede de mentiras…” (26).
J. FERREIRA GOMES denuncia “…indicações…de casos de plágio grosseiro e <que> não é difícil encontrar na INTERNET a oferta de “Trabalho original (isento de plágio) e exclusivo”…<e>…,nos casos grosseiros, uma simples busca textual no GOOGLE permite detectar o <tal> “trabalho não original”…” (27). Relembra-nos, também,  “…alguns casos de empresas “startup” tecnológicas, como a “THERANOS”, que chegou a ser valorizada em 9 000 milhões de dólares pelas promessas de lançar no mercado um dispositivo portátil para análise sanguínea as quais vieram a ser desmontadas pelo Wall Street Journal  <USA> (2013)…” (28).
Há várias explicações para que a má conduta, apesar de todos os “alertas”, continue a ocorrer, designadamente:
“…1/Factores individuais…<dentre os quais> os traços de personalidade; a cultura e nacionalidade…; os valores e  o desenvolvimento moral…; …a situação relacionada com a segurança no emprego…;
…2/Factores organizacionais…;
…3/Factores estruturais…nomeadamente:
…-a pressão para ter resultados para financiamento…; - a lógica empresarial na Investigação Científica…e o aparecimento de novas áreas com potencial terapêutico, geradoras de maior interesse da Sociedade, da economia e…da Comunicação Social…<em que há> potencialmente mais financiamento…; -o modo de fazer Ciência, espartilhada entre equipas, …áreas, …instituições e…Países, <o que> dificulta a possibilidade de os comportamentos eticamente censuráveis serem descobertos…” (29).
Além do que já foi referido constata-se, ainda, a criação pela União EUROPEIA do “…Programa HORIZONTE 20.20 / H 20.20 de financiamento à Investigação Científica…<no qual>…toda a avaliação é antecedida pela identificação de questões éticas…:
1/Investigação em Seres Humanos…;
2/uso de amostras biológicas e de dados pessoais…;
3/uso de células estaminais…;
4/uso de Animais…;
5/Investigação envolvendo países em vias de desenvolvimento…;
6/Investigação com potenciais riscos para o ambiente ou para a saúde dos Investigadores;
7/Investigação com potencial risco para uso errado (misuse) ou uso dual (dual use)…” (28).
Está também determinado que  “…Todas as propostas que apresentem …riscos de uso criminoso, terrorista, e militar dos dados ou dos resultados obtidos deverão descrever as estratégias para minimizar o risco…” (31).

Como contraponto aos resultados prácticos de aplicação rápida há que relembrar que “…em Ciência a identificação do problema é, muitas vezes, mais relevante que a sua solução…” (32).
A capacidade Biotecnológica actual é de enorme dimensão mas, pelo que atrás foi transcrito, “…torna-se evidente que nem tudo o que se pode fazer se deve <fazê-lo> e <que> <se por um lado> compete à Ciência fazê-lo <por outro lado> compete à Ética pronunciar-se sobre o que deve ser feito…” (33).
Também fica claro que, como escreveu F. MARTINS VALE, “…A Investigação é benéfica para a Humanidade…<mas> é imprescindível encontrar um equilíbrio entre as exigências metodológicas e os Direitos Humanos sendo que o interesse da PESSOA deve sempre sobrepor-se ao interesse da Ciência…” (34) ou, como nos recordou J. RIBEIRO da SILVA: “…A nova era da construção da Medicina contemporânea…<diz-nos que>…não há saber médico contra o Homem…” (35).
Perguntemos, então, em formato conclusivo:
-E o ensino da Bioética? Qual a sua finalidade? Como se promove?
ANTÓNIO BARBOSA acompanha DIEGO GRACIA ao considerar que “…o ensino da Bioética poderá incluir…três dimensões: conhecimento, desempenho e atitude <a qual (esta última)>…se constitui…<como> a verdadeira finalidade de todo o processo de amadurecimento Ético…” (36). Neste amadurecimento, profundo, interiorizado e contínuo, “…o conceito de Ética da Responsabilidade deverá ser…o referencial pedagógico perante um “canon” moral mais elevado – o de preservar sempre a Dignidade Humana - …” (37).
Finalmente tenhamos em devida conta o que escreveu ANTÓNIO BARBOSA em 2002:
“…O ensino da Bioética terá como finalidade global a práctica de uma Medicina de Qualidade em que o profissional de saúde seja não só um Bom profissional (actividade profissional tecnicamente correcta) mas também um profissional Bom (actividade profissional eticamente correcta)…” (38).

PIRES JORGE M:. M:.

NOTAS
(1)Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da Bioética”, “Ciência e Ética: um parentesco difícil”, Glaciar/Fundação LUSO-AMERICANA para o desenvolvimento, 2016: p 15;
(2)idem 1: pp 15-16;
(3,4,5)idem 1: p 16;
(6,7)idem 1: pp 16-17
_____________
(15)idem 14: p 386;
(16)J. FERREIRA GOMES, “ÉTICA Aplicada-INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA” (Coord.: Mª Céu Patrão Neves e Mª Graça Carvalho), “Ética da Investigação Científica”,Edições 70, 2018: p 343;
(17)idem 1: p 12;
(18)idem 1: p 18;
(19,20)idem 1: p 34;
_____________
…” (14).
(8,9,10)idem 1: pp 17-18;
(11)idem 1: pp 18-19;
(12)F. MARTINS VALE, “Contributos para a Bioética em PORTUGAL” (Coord.:J. Ribeiro da Silva, António Barbosa e F. Martins Vale), “Ética da prescrição médica no tratamento e na Investigação. Algumas reflexões sobre a Verdade Científica”, Centro de Bioética/Faculdade de Medicina de Lisboa-Edições COSMOS/Bioética 2, 2002: pp 489-490;
(13)idem 12: p 490;
(14)ANA SOFIA CARVALHO e WALTER OSSWALD, “ÉTICA Aplicada-INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA” (Coord.: Mª Céu Patrão Neves e Mª Graça Carvalho), “Ética e integridade Científica”,Edições 70, 2018: p 375;
______________
 (21,22)idem 1: p 35;
(23)J.RIBEIRO da SILVA, “A Ética A Medicina Portuguesa”, “ A Ética do Investigador e a Verdade da Investigação”, Universidade de Lisboa/Faculdade de Medicina de Lisboa-Departamento de Educação Médica, 1994: p 311;
(24)idem23:p 89;
(25)CARLOS RIBEIRO, “Ser MÉDICO-Cartas aos Jovens Médicos”, “Carta 34”, Temas e Debates/Círculo Leitores, 2015: p 311;
_______________

(32)idem 16: p 361;
(33)idem 1: p 18;
(34)idem 12: p 492;
(35)idem 23: p 92;
(36)ANTÓNIO BARBOSA, “Contributos para a Bioética em PORTUGAL” (Coord.:J. Ribeiro da Silva, António Barbosa e F. Martins Vale), “O Ensino da Bioética”, Centro de Bioética/Faculdade de Medicina de Lisboa-Edições COSMOS/Bioética 2, 2002;
(37)idem 36: p 499;
(26)idem 14: p 372;
(27)idem 16: p 354;
(28)idem 16: p 345;
_____________
(29)idem 14: pp 377-379;
(30)idem 14: pp 382-383;
(31)idem 14: p 385;
_______________

(38)idem 36: p 498.


BIBLIOGRAFIA consultada

1/ANA SOFIA CARVALHO e WALTER OSSWALD, “ÉTICA Aplicada-INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA” (Coord.: Mª Céu Patrão Neves e Mª Graça Carvalho) , “Ética e integridade Científica”, Edições 70, 2018
2/ANTÓNIO BARBOSA, “Contributos para a Bioética em PORTUGAL” (Coord.: J. Ribeiro da Silva, António Barbosa e F. Martins Vale), “O Ensino da Bioética”, Centro de Bioética/Faculdade de Medicina de Lisboa-Edições COSMOS/Bioética 2, 2002
3/CARLOS RIBEIRO, “Ser MÉDICO-Cartas aos Jovens Médicos”, “Carta 34”, Temas e Debates/Círculo Leitores, 2015
4/F. MARTINS VALE, “Contributos para a Bioética em PORTUGAL” (Coord.: J. Ribeiro da Silva, António Barbosa e F. Martins Vale), “Ética da prescrição médica no tratamento e na Investigação. Algumas reflexões sobre a Verdade Científica”, Centro de Bioética/Faculdade de Medicina de Lisboa-Edições COSMOS/Bioética 2, 2002
5/J.RIBEIRO da SILVA, “A Ética A Medicina Portuguesa”, “ A Ética do Investigador e a Verdade da Investigação”, Universidade de Lisboa/Faculdade de Medicina de Lisboa-Departamento de Educação Médica, 1994
6/J. FERREIRA GOMES, “ÉTICA Aplicada-INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA” (Coord.: Mª Céu Patrão Neves e Mª Graça Carvalho), “Ética da Investigação Científica”, Edições 70, 2018
7/Mª CÉU PATRÃO NEVES, “O Admirável Horizonte da Bioética”, “Ciência e Ética: um parentesco difícil”, Glaciar/Fundação LUSO-AMERICANA para o desenvolvimento, 2016





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