Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

25 de outubro de 2016

A propósito do(s) conceito(s) de “Regularidade” na Maçonaria



 I – Introdução

Segundo Daniel Ligou (11), Regularidade é uma das noções mais complexas da Maçonaria já que os Maçons que se afirmam «regulares» não estão, mesmo entre eles, de acordo sobre os critérios de regularidade.
 
R.Dachez (4) refere que: “uma vez que na utilização maçónica, as palavras “regular” e “regularidade”, fizeram a sua aparição em Inglaterra, desde o início da maçonaria especulativa organizada, será à semântica inglesa que é preciso recorrer”. Por consulta do Oxford English Dictionary, temos, entre outros significados:

-”O carácter do que é uniforme» e “O que está conforme uma norma estabelecida e reconhecida, numa palavra «normal» ”. A palavra “regular” distingue assim os maçons «normais», conformes ao estatuto corrente e em vigor, que reconhecem uma autoridade oficial, face aos «irregulares» que não fazem parte desse estatuto.

É na segunda metade do século XVIII, no contexto da grande disputa pelo controlo da Maçonaria Inglesa, entre as duas Gr. Lojas rivais (G.L.L. – Grande Loja de Londres ou «Modernos» – 1717, e a G.L.A. ou «Antigos» - 1751/3»), que se deve compreender a primeira noção de “regularidade”.
Neste século, em Inglaterra é regular uma Loja que se submete à autoridade duma Grande loja e…. lhe paga as capitações. Em contrapartida os seus membros terão direito à Solidariedade dessa Gr. Loja, preocupação essencial aos maçons da época e que, nomeadamente nos «Modernos», deu origem à constituição dum comité de Solidariedade.

Neste quadro, os Regulamentos Gerais («General Regulations») da G.L.L., publicados nas Constituições de 1723, definem claramente aquele conceito, no ponto VIII: “se um número qualquer de Maçons resolvem entre eles formar uma Loja sem patente do Grão-Mestre, as Lojas Regulares não poderão considerá-los ou reconhecê-los como Irmãos conveniente e correctamente constituídos, nem aprovar as respectivas actividades ou decisões».

A Maçonaria dessa altura ainda não se definia como «ordem iniciática e tradicional» mas essencialmente como «Fraternidade de homens, reunidos em volta dos princípios gerais da moral cristã, leais aos poderes civis constituídos, engajados na ajuda e na assistência mútua, durante a vida».

Na edição de 1738 constam já duas decisões tomadas pela G.L.L. em 1724 e agora integradas na nova edição dos Regulamentos Gerais: “Nenhum dos que formem uma loja estabelecida sem o consentimento do Gr. Mestre, poderá ser admitido nas Lojas Regulares, antes de ser submetido e de ter obtido aprovação» e «Se os Irmãos formarem uma Loja sem autorização e iniciarem irregularmente novos Irmãos, não serão admitidos nas lojas regulares, nomeadamente como visitantes, antes de efectuarem a sua submissão.”

Vemos pois que a regularidade é então quase exclusivamente um processo administrativo e eventualmente disciplinar. Regularidade administrativa e direito à solidariedade estão indissoluvelmente ligados, nesta maçonaria inglesa inicial. Neste contexto o «reconhecimento» é unicamente o procedimento que permite assegurar se estamos em presença dum maçom e não dum estranho. Ligado ao conceito de «regularidade» temos: o sinal, o toque e a palavra de passe do respectivo grau, que se ensinava ao jovem iniciado como os modos de reconhecimento («modes of recognition»).

O problema da regularidade é claramente inter-Obedencial, já que entre duas obediências que reconheçam regularidade recíproca ninguém discutirá a legitimidade dum Maçom iniciado numa loja justa e perfeita. Ainda segundo D. Ligou (11) o problema da regularidade maçónica está estritamente ligado às concepções que fazem diversas Obediências dos «landmarks», ou seja da concepção doutrinal da Maçonaria.

Por sua vez a «regularização» é, na maior parte da Obediências, um acto predominantemente administrativo, normalmente traduzido por uma cerimónia que consiste em «regularizar» um Maçom, isto é eliminar-lhe o carácter «irregular», seja pela (re)iniciação ou pela (re)filiação, devido à pertença anterior a uma Obediência maçónica considerada como irregular, relativamente aquela em que se está a afiliar, ou ainda por ter sido iniciado de modo irregular.

Com a Formação da G.L.U.I. (“Grande Loja Unida da Inglaterra”) em 1813, o GOdF (“Grande Oriente de França”) passou a considerar-se herdeiro directo das Constituições de Anderson e a Obediência mais antiga no activo, não reconhecendo à G.L.U.I. a herança directa da G:.L:. de Londres, pelas alterações doutrinais que entretanto aquela introduziu. Este posicionamento reforçou as divergências entre as duas Obediências, que apesar de tudo e até aqui, mantiveram um relacionamento, sem contudo estar suportado em qualquer tratado assinado mutuamente.

No 3º quartil do Séc. XIX, com a “abolição” pelo GOdF do G.A D.U. do Artigo 1º da Constituição, agudizou-se o conflito e “cavaram-se trincheiras” entre aquelas que se tornaram as duas principais visões doutrinárias da Maçonaria, a «regular / dogmática», de matriz anglo-saxónica e de cariz mais conservador mas predominante em termos de efectivos, e a «liberal / adogmática» de matriz mais liberal.

Todo este processo evolui ao longo do último quartil do século XIX até ao século XX, desembocando nos critérios que a G:.L:.U:.I:. adopta nos conhecidos «Princípios de Reconhecimento» de 1929
Neles coexistem os princípios de:
- Regularidade «de origem» (ter sido fundada por 3 lojas ou por uma Grande Loja já regular) ,  e os da
- Regularidade «doutrinal» (trabalhar com as 3 Grandes Luzes, afirmar a existência de Deus, Grande Arquitecto e da sua vontade revelada e não possuir nenhuma relação com uma Obediência mista ou feminina). 
- Regularidade «territorial» ( só poderá existir uma Grande Loja por país e não poderá criar oficinas num país onde já exista uma G:.L:. regular.

Obviamente são os princípios da regularidade «doutrinal» que maior peso apresentam neste diferendo. Em nossa opinião, a atribuição da «regularidade» inter-obedencial tem sido também o instrumento primordial de que se tem servido a maçonaria anglo-saxónica para impor o seu domínio hegemónico à escala mundial.

Aqui chegados é oportuno salientar que o «reconhecimento da regularidade» não significa reconhecimento «tout court», com troca de tratados, garantes de amizade e direito de visitação recíproco. Temos o exemplo da obediência negra de «Prince Hall», já que não podendo duvidar os ingleses ou os americanos da sua «regularidade» (criada por carta patente da G.L. Londres), as restantes obediências anglo-saxónicas não têm relacionamento com ela …..
Por outro lado, a G.L.U.I. reconhece, segundo os seus critérios, «regular» a Grande Loja de Israel, ao mesmo tempo que esta não corresponde aos critérios das Gr. Lojas Escandinavas. As Gr. Lojas Americanas reconhecem na Europa, como regulares, Obediências que a G.L.U.I. considera como irregulares…. Estes representam somente alguns dos exemplos conhecidos, mas outros se poderiam salientar. Convenhamos que a «regularidade» exigida pelas obediências de raiz anglo-saxónica e em especial pela G:.L:.U:.I:.,  tem no mínimo algumas nuances curiosas e casuísticas..…

Este diferendo expandiu-se potenciado em estreita relação  com as influências geoestratégicas e políticas que lhe têm estado de um modo geral subjacentes, a saber, as esferas de influencia do antigo império colonial Inglês, que implementou o modelo anglo-saxónico e  as da Maçonaria Continental, com especial foco em França (GOdF), países latinos e América Latina, com a adopção duma matriz «liberal / adogmática».

Histórica e «doutrinariamente» podemos remontar génese da disputa às  diferenças entre a  versão inicial da Constituição  (1723) da Grande Loja de Londres (GLL), e as  alterações de cariz cada vez mais teísta, provocadas pelas revisões seguintes, sendo as últimas da responsabilidade da  G:.L:.U:.I:. (mas isto foi só o início da guerrilha ….)

II – Da Inglaterra dos «Modernos» à dos «Antigos»

Em Inglaterra, na primeira metade do século XVIII existia uma única organização maçónica predominante, protagonizada pela G:.L:.L:. já que a Gr. Loja de York foi progressivamente reduzindo a sua actividade, apesar de contestar e não reconhecer a existência daquela). Esta situação alterou-se a partir de 1751/3, já que a partir desta data, passou a existir outra Gr. Loja rivalizando fortemente com ela, a  Grande Loja dos “Antigos Maçons” (G:. L:. A:.), mais conhecida como a dos «Antigos», que surgiu em meados do século (1751/3). Contrariamente ao apontado pelos historiadores ingleses do final do século XIX (Gould, Hugham, Sadler, …), não resultou de nenhuma cisão dos «Modernos».

Os primeiros membros do núcleo inicial que esteve na  origem à G:. L:. A:. , (1750-51) eram irlandeses emigrados em Inglaterra, iniciados na Irlanda. Estes imigrantes foram rejeitados, ou tiveram imensas dificuldades em serem recebidos nas lojas inglesas, quer em virtude da sua origem e condição social quer também devido ao facto de praticarem uma Maç.’. diferente, essencialmente do ponto de vista ritualístico (voltaremos a este tema em próximo trabalho).  Profundamente revelador destas diferenças é o facto duma Grande Loja (G:. L:.) fundada 36 anos depois da G:.L:.L:. ter aprovado a designação de  Loja dos «Antigos Maçons». [I]

A Escócia e na Irlanda constituíram também as suas Grandes Lojas, respectivamente em 1735 e 1725/8. A. Bernheim (5) e (7) salienta que estas só reconheceram efectivamente a Grande Loja dos «Antigos», tendo, até então, um relacionamento muito limitado ou quase inexistente com a G:.L:.L:. .  Em resultado do acordo bilateral entre «Antigos»  e  irlandeses, nenhum Maçom dos «Modernos» se podia incorporar numa loja Irlandesa sem ser “re-iniciado e instruído” no ritual dos «Antigos» (o chamado «ancient working»), situação que só se veio a alterar após o processo que levou à  constituição da GLUI, por fusão dos «Modernos» e dos «Antigos», em 1813.

As diferenças ritualísticas principais, reclamadas pelos «Antigos»  face à G:.L:.L:. e que segundo aqueles traduziam essencialmente  a defesa da chamada antiguidade de raiz operativa, transmitida pelas “Old Charges” (Antigos Deveres) , eram as seguintes:
- Abandono das orações nas cerimónias maçónicas;
- Abandono da celebração das festas de S. João;
- Inversão da ordem das palavras sagradas,

Criticavam também fortemente a inexistência quer da “cerimónia de instalação secreta do Venerável”, que reputavam de essencial, quer do grau do “Arco Real”. Em resumo e segundo refere  Philip Crossle (citado por A. Bernheim), em “The Irish Rito” (5), a história da Maçonaria Irlandesa é diferente da Inglesa e profundamente original, já que terá evoluído por conta própria sensivelmente a partir de  1680,   independentemente das raízes escocesas e inglesas.

Na Inglaterra do Séc. XVIII, segundo Dachez (4), como atrás referimos, o conceito de regularidade de uma Loja era essencialmente administrativo (correspondendo à submissão à autoridade de uma Grande Loja e ao pagamento das capitações). Tal implica que não poderemos considerar um Maç:. regular inglês como um Maç:. «dogmático», em oposição a um Maç:. «liberal» em França, tal como o entendemos hoje, já que esta oposição não tinha à época, qualquer sentido.

Contudo esta situação modificou-se ligeiramente com a criação da 2ª Grande Loja (a dos «Antigos»). Com um novo poder maçónico a pretender também exercer o controlo sobre o universo maçónico inglês, era inevitável o conflito pela supremacia maçónica com a G:.L:.L:. , tendo como perspectiva estratégica a eventual sobrevivência a longo termo.

Ainda segundo Dachez (2), (4), Herrera-Michel (10)  e  outros a «regularidade» tem servido para atribuir à Maçonaria um certo espírito tradicional e cristão de origem operativa o que, na sua opinião, contraria fortemente a segunda parte das Constituições de 1723, atribuída a Désaguliers, designada por “As obrigações de um Franco-Maçom e os Regulamentos Gerais”. 

É curioso verificar algumas alterações (a bold e sublinhado, no texto abaixo) de carácter mais “pró-teísta” introduzidas na versão de 1738, face à de 1723, para além do reconhecimento do grau de MM.'. e da lenda de Hiram. (No Artigo I (Obrigações respeitantes a Deus e à Religião) já aparece «Um Maçom está obrigado a observar a lei moral em tanto como Noaquita  (uma religião anterior ao Antigo testamento, celebrada por um Noé transformado em «pai de todos os povos») e se compreender o Craft (Confraria) não será jamais um ateu estúpido nem um libertino irreligioso... Nos tempos antigos os Maçons cristãos tinham que se conformar com os costumes cristãos de cada país no qual trabalhavam ou viajavam..... Mas a Maçonaria existe em todas as nações de religiões diversas...».  Qual o motivo destas alterações, que permitem sugerir uma eventual aproximação ao anglicanismo ???

Quando da constituição da sua GL, os «Antigos»  obviamente alteraram as Constituições de 1738, adaptando-as às suas necessidades. Modificaram substancialmente o primeiro capítulo das «Obrigações», por forma a dar-lhe o formato religioso que actualmente conhecemos, desaparecendo o espírito de tolerância que emergia do texto de 1723.  Neste (“Um Maçom está obrigado a observar a lei moral   a compreender a Arte e não será jamais um ateu estúpido nem um libertino irreligioso...”) nada nos indica ou sugere, quer nas «Obrigações de um Franco-Maçom» quer nos «Regulamentos Gerais» a obrigação da «crença num Deus revelado» como fórmula  administrativa numa Loja.
A G:.L:.L:.   publicou as suas Constituições em 1723 /38/ 56 /67 e 1774, sendo esta a data da última versão publicada pelos «Modernos».   Os «Antigos», defendiam que os «Modernos»  interpretavam de uma forma laxista os ensinamentos cristãos, repudiando os dogmas e dando preferência à razão, relativamente à Bíblia e às tradições, privilegiando a moral face à doutrina e evidenciando uma ampla tolerância em matéria religiosa.

A envolvente social e política ocasionada pelas ondas de choque da Revolução francesa do lado de lá da Mancha, foram determinantes para a união das duas Grandes Lojas, 48 anos após a fundação da G.L. dos «Antigos», beneficiando do facto de dois elementos da casa real (duques de Kent e de Sussex) dirigirem as 2 Grandes Lojas, vindo a ser este último o primeiro G:.M:. da recém-criada GLUI..

Uma das consequências da unificação das duas G:.L:.s inglesas, foi a de que, a partir deste momento, a Bíblia passou a estar solenemente presente em todas as sessões em loja, consolidando as pretensões eclesiásticas do anglicanismo na Maçonaria inglesa. Como consequência as novas versões das  anteriores Constituições de Anderson passaram a adoptar a referência a “Deus e ao Grande Arquitecto do Universo (GADU)”, que não existiam anteriormente.

III – França, da Constituição do GOdF ao século XIX e deste à “retirada” do Grande Arquitecto

Até quase meados do século XVIII não foi muito visível,  quer em Inglaterra quer em França, o diferendo entre uma Maçonaria «antiga» e outra «moderna», sendo nestes dois países as respectivas maçonarias sensivelmente idênticas quanto aos graus azuis, como evidenciam vários autores, nomeadamente A. Bernheim (6), (7)  e Dachez (4).  O conflito iniciou-se com a criação da grande Loja dos «Antigos» em Inglaterra.

Até à criação do GOdF em 1773, reclamando a continuidade da GLdF (“Grande Loja de França), as lojas expandem-se consideravelmente, a partir de 1725. Desde o início o GOdF proclama-se como herdeiro das Constituições de 1723, baseando-se no pressuposto de “que para se estabelecer uma comunidade com laços fraternais entre todos os homens, não se pode impor nenhuma crença, ao mesmo tempo que a qualidade maçónica de qualquer membro não pode obrigar à adesão a um dogma determinado” (10), ……contrariamente ao que obriga a GLUI (e os Antigos)….

A  crença na existência de Deus (num sentido amplo, representado pelo G:.A:.D:.U:.) é ainda um referencial da maçonaria francesa (na Constituição e prática das Lojas) durante o séculos XVIII até ao terceiro quartil do século XIX, sobretudo no “célebre” ano de 1877.

No século XIX existem motivos de cariz quer sócio-políticos, quer económicos, que objectivamente reforçam esta abordagem. No final do Segundo Império, a  França tinha perdido a guerra e parte do seu território. Foi  restaurado um sistema republicano ameaçando a Igreja Católica, que perdeu o estatuto privilegiado de religião de estado, levando-a como reacção a envolver-se  em questões políticas.  Por conseguinte, a Igreja condena tanto a República como a Maçonaria que a suporta, o que perturba o equilíbrio das Lojas  onde, pouco a pouco, católicos e monárquicos se encontrarão em minoria ou até excluídos.

As Lojas tornam-se  gradualmente republicanas e anticlericais. Muito rapidamente (cerca de dois anos), a obrigação da “crença na fé em Deus” vai primeiro mudar para o sentido redutor e deista dum  "Princípio criador", e em seguida para o nada,  já que  será suprimido nas  constituições 1877.

Na famosa sessão do convénio do GoDF em 13 de Set.1877, o pastor protestante Fréderic Desmons, membro do conselho da Ordem, colocou à votação a proposta do «princípio do agnosticismo» da Obediência, obtendo na altura uma ampla maioria de apoio. Entre outros pontos, no discurso em que sustentou o pedido, referiu  (10):
“..... Pedimos a supressão desta fórmula, porque se é embaraçosa para o Veneralato e para as Lojas, não o é menos para os profanos que, animados de sincero desejo de formar parte da nossa grande e bela Instituição, generosa e progressista, vêm-se bloqueados por esta barreira dogmática que a sua consciência não lhes permite ultrapassar”, e mais à frente:  
 “..... Deixemos aos teólogos o cuidado de discutir os dogmas, deixemos as igrejas autoritárias ao cuidado de formular as suas Syllabus, para que a Maçonaria se situe no que deve ser, uma instituição aberta a todos os progressos, a todas as ideias morais elevadas, a todas as inspirações amplas e liberais”,    e ..... “..... que se proteja muito bem a Maçonaria de pretender ser uma igreja, um Concílio ou um Sínodo, porque todos estes foram violentos e perseguidores!  E isto por terem sempre querido ter um dogma como base. O dogma  pela sua natureza é essencialmente Inquisidor e Intolerante”.
A aprovação da proposta do reverendo Desmons, provocará a supressão da afirmação de que  Maçonaria tinha «por base a existência de Deus e a imortalidade da alma», constante do Artigo 1º da Constituição e inscrito desde 1849 (qualificada como dogmática (muito contestada pelos sectores mais liberais). Portanto desde 1849 até esta data e apesar da forte contestação da ala mais activa,   os princípios constitucionais formais do GOdF face à GLUI não eram assim tão diferentes, neste ponto ....

A inscrição teísta de 1849, deveu-se a  pressões politicas exteriores, suportadas internamente pelos sectores mais conservadores, que movidos por convicção e /ou por estratégia política, pretendiam não se afastar significativamente dos ingleses no conceito e implementação duma  Maçonaria «obediente e bem comportada” de cariz conservador.... , como sustentáculo do regime e inibidora de alterações sociais significativas.

Nessa altura e a pedido do Grão-Mestre em exercício o Convénio especificou que a Instituição «não excluía ninguém pelas suas crenças», reservas que não deveriam impedir que as Obediências Anglo-saxónicas  rompessem posteriormente com o GOdF.

Segundo A. Bauer (4), e em substância, desde 1773 que os Artigos II e III da primeira constituição do G:.O:.dF:. indicam:
“O que é um Maçom Regular? – Um Maçom membro de uma Loja Regular”
“O que é uma Loja Regular? – Uma Loja que possui constituições acordadas ou reconhecidas pelo G::O:.d.F:. , que tem o direito único de as fornecer («délivrer»)”
Aqui chegados não admira a reacção da conservadora Inglaterra ardentemente  desejosa de manter o império colonial intacto e protegido destas perigosas e “subversivas” ideias....

IV -  Da reacção da GLUI e das Obediências Anglo-Saxónicas

Após a união concretizada em 1813, foi estrategicamente delineada e imposta pela GLUI a sua supremacia absoluta na condução da Maçonaria mundial,  facto nunca registado na Maçonaria até  essa data,  suportado  na «meia-verdade» ou até «falsidade» de se reclamar como herança directa da G.L.L. e desta como origem da maçonaria especulativa.
 
Obviamente que esta pretensão só pode ser acatada por aqueles que têm interesse particular nessa subordinação. A partir dessa altura, os ingleses passam a desqualificar a Maçonaria continental, especialmente as que consideram a maçonaria «política» francesa e a aristocrática alemã, por  não se sujeitaram aos seus interesses e ditames, não capitulando perante os imperiais interesses ingleses.

Sendo o GOdF a potência maçónica que encabeça a contestação ao absolutismo inglês, reivindica que apesar de ter nascido organicamente em 1738 (com a constituição da GLdF) e politicamente em 1773, é a Obediência mais antiga das existentes, referindo desde sempre às Constituições de 1723 como o documento juridico-fundacional da moderna Maçonaria, tendo as relações inter-Odediências como norma e conduta o respeito por cada Grande Loja ou Grande Oriente. Neste pressuposto as Grandes Lojas que se dizem “regulares” não são na prática nem autónomas nem soberanas, apesar de se proclamarem como tal e do mesmo constar nos seus estatutos.

Não é pois de estranhar que a defesa pela Maçonaria francesa de  temas sensíveis como o ideal da República, da democracia liberal e da laicidade origine diferenças conceptuais e políticas significativas em torno dos dois lados e vá criando barreiras face ao império britânico.

De acordo com os princípios aprovados, o novo texto constitucional do GOdF preconizava que: “A Maçonaria tem por princípios a liberdade absoluta de consciência e a solidariedade humana. Não exclui ninguém em razão do seu credo». A partir dessa data cortaram-se definitivamente as relações entre ambos (que nunca tinham sido formalizadas oficialmente...)  e com base no sistema discriminatório suportado nos célebres «Princípios Básicos para o Reconhecimento» de Grandes Lojas (G.L’s)» (vulgo «landmarks»), passou a GLUI a decidir, país a país quem era definitivamente «regular» ou não.
 
Na América, as Grandes Lojas ditas «Regulares», sob influencia das GG:.LL:. dos Estados Unidos, seguem os 25 «Landmarks» preconizados por Albert Mackay em 1864, apesar do seu manifesto anacronismo. Os defensores deste «status quo», baseando-se em Mackey, sustentam contra toda a evidência que, cada um dos 25 mandamentos redigidos é de antiguidade incontestável. Tal argumentação representa uma leviandade que não resiste à mais ligeira das análises históricas  (p. ex: quando da criação da GLL só existiam 2 graus e não 3, nada apontava à  lenda de Hiram nos rituais maçónicos, não existia até então o Grão-Mestre, etc)  (9), (10).  Curiosamente, quer a G.L.U.I. quer as G.L’s que a apoiam,  não se referem  a nenhum «landmark», mas somente à  Observância dos 8 pontos de Londres definidos em 1929 e revistos em 1989.

a) -  Os 8 pontos de Londres de 1929
O diferendo GLUI /  GOdF ampliou-se também pela pressão no enquadramento da nova burguesia colonial nascente, nas respectivas áreas de influência, alfobre de  quadros tão necessários ao desenvolvimento nacional e regional/local.  Daí surgirem as designações de «regular» e «irregular» atribuídas reciprocamente,   que até hoje continuam a dividir a Ordem e que tinham até então, significados e interpretações diferentes.

Por outro lado a codificação dos «landmarks» de 1929 em que a GLUI vem basear a regularidade»   representa  a própria negação da versão original (1723) das referidas «Obrigações de um Franco-Maçom».
Na prática a Maçonaria Anglo-Saxónica elaborou uma tríade de documentos que passaram a constituir os marcos referenciais deste tema:
- “Basic Principles for Recognition” – GLUI (1929);
- “Aims and Relationships of the Craft” – Home Grand Lodges (Inglaterra, Escócia e Irlanda - 1949)
- “Standards of Recognition” – COGMINA (Estados Unidos, Canadá e México) – 1952

Basicamente os pontos mais sensíveis podem-se reduzir a cinco, sendo por ordem decrescente de importância os seguintes:
1 – Crença num «Ser Supremo e na sua vontade revelada» (GLUI-1929) ou ainda mais claramente em «Deus» (USA – 1952), esta exigência «não admitindo nenhum compromisso» (Home Grand Lodges (HGLs) – 1949). O «volume da Lei Sagrada», elemento essencial da Loja (GLUI 1929, USA 1952), significando «a revelação vinda do Alto» (GLUI-1929, confere ainda um «caracter de santidade» ao juramento que é prestado pelo Iniciado (HGLs – 1949);
2 – Interdição de debates políticos e religiosos (GLUI 1929, HGLs 1949, USA 1952);
3 – Interdição de visitas mútuas com membros de corpos maçónicos «irregulares», incluindo especialmente os que apresentem mulheres entre os seus membros (GLUI 1929, HGLs 1949);
4 – Independência das Lojas Simbólicas a respeito das jurisdições dos Altos Graus (GLUI 1929, HGLs 1949);
5 – Regularidade de origem (GLUI 1929, USA 1952).

b) – E os 8  pontos de Londres de 1989
Os pontos dos «princípios» de 1929 foram entretanto alvo, pela GLUI, duma tímida revisão em 1989, sendo a  nova redacção dos mais pertinentes, a seguinte  (10):
3 –  O maçom da jurisdição de uma Grande Loja deve ser varão e nem ele nem as Lojas devem  ter contacto maçónico com Lojas que admitem mulheres como membros;
4 –  Os Maçons da sua área de jurisdição (Grande Loja) devem crer num Criador Supremo
5 –  Todo o Maçom da sua jurisdição deve  efectuar o juramento sobre um volume da lei sagrada (Bíblia ou o livro que considere adequado);
8 – A  Grande Loja deverá aderir aos princípios estabelecidos e aos usos e costumes da Ordem e insistir em que sejam observados nas suas lojas;

Da leitura comparativa entre os «Princípios Básicos» de 1929  e os de «1989», podemos retirar duas conclusões importantes:
a) – A proibição de reconhecimento de Obediências mistas ou Femininas, apesar da GLUI não as reconhecer, permanece agora somente para as Lojas e os Maçons e não para a Grande Loja, o que representa um avanço significativo face à versão anterior;
b) - A obrigação da fé num Deus e na sua vontade revelada é substituída pela simples crença num «Criador Supremo», outra abertura significativa no caminho da tolerância;
No entanto e na prática, apesar de aprovados estes pontos nunca foram implementados (R. Dachez (4)., continuando em vigor os 8 pontos de 1929.  

VI – Concluindo:

Os diferendos entre Paris e Londres reacenderam a discussão relativamente à liberdade de consciência e de pensamento, e estiveram na origem  da laicização das Constituições e dos rituais franceses.  Este cadinho de acontecimentos e transformações ocorridos sobretudo ao longo da segunda metade do século XIX, configurou um enorme estímulo para que a Maçonaria «Liberal» / «adogmática», evidenciasse no primeiro quartil e  na segunda metade do século XX (após o fim do terror nazi e da 2ª guerra mundial), uma forte dinâmica e grande autonomia intelectual, adaptando-se aos tempos e, mais importante,  enquadrando consistentemente as novas matrizes e valores culturais.
O GOdF que durante bastante tempo negligenciou ostensivamente este tema, passou a introduzi-lo a partir de 2002 nos cabeçalhos documentais, onde se passou a ler « GOdF, Potência Simbólica Regular Soberana»….  Não o era até aquela data? Segundo R. Dachez (4) “Em França não será tanto a palavra «regular» e menos ainda o que significa sem qualquer ambiguidade na Grã-Bretanha ou nos USA, que provoca reacção, é sobretudo o qualificativo de «irregular» que irrita e suscita a corrosão dos que o propagandeiam»

Com o fim dos impérios coloniais, atenuado o interesse geopolítico da utilização da Maçonaria como cimento agregador das classes dirigentes colaboracionistas das ex-colónias, o conceito de «regularidade» sobrevive, quer a partir do desconhecimento geral da sua origem,  quer dos conflitos maçónicos internos que se originaram em cada país, resultantes da resistência à adopção dos princípios democráticos e republicanos defendidos pelo sector maçónico de origem francesa.
Estando este diferendo estreitamente ligado às concepções doutrinárias e respectivos «landmarks», um eventual acordo de todas as potências maçónicas não se nos afigura provável (talvez, quando muito, a longo prazo).

É um facto inegável que desde o século XVIII, a Maçonaria  «regular»  não participou nos enormes acontecimentos sociais e políticos de que se orgulha a Ordem. Na maior parte dos casos as G.L’s “regulares” actuaram persistentemente em prol da defesa do establishment e dos interesses do império britânico.

Ao  analisarmos  resumidamente as causas   das divisões  subjacentes aos dois ramos principais da família maçónica, duas questões fundamentais se nos colocam:  
- Poderá a instituição mais universalista que existe,  face aos tempos actuais,  excluir do seu seio verdadeiros Maçons (Homens e Mulheres) por razões doutrinárias, mais ou menos arbitrárias e de cariz dogmático («os Landmarks»)?         
- Poderão registar-se caminhos de aproximação e convergência mínimos para que a Maçonaria e as organizações que asseguram o seu funcionamento deixem de se digladiar e se reaproximem, sem perda da identidade e origens, mas atenuando se algum modo o estigma da «regularidade» ou «irregularidade» inter-obedenciais?

Em nossa opinião, a Maçonaria não poderá (muito pelo contrário) excluir do seu seio aqueles que têm todas as qualidades e condições para nela ingressarem, pelo simples facto de não “acreditarem num Deus revelado” e em consequência não poderem efectuar os juramentos sob «o livro sagrado». A exclusão indevida e a divisão não potenciam a Força que, mais do que nunca, necessitamos....

De 1960 à actualidade,  registou-se um acelerado declínio do ramo «regular» apesar de ainda constituir aproximadamente 85 % dos efectivos mundiais (Dachez (4)). A Maçonaria americana e inglesa registou neste período,  uma diminuição muito significativa (cerca de 65% dos efectivos, e destes quase metade é «inactiva») em contraponto a alguma pujança e recuperação da corrente «adogmática / liberal».  Estes factores, conjugados com as novas realidades sociais, políticas e geoestratégicas,  poderão eventualmente auxiliar  ao objectivo da aproximação,  sempre numa perspectiva de longo prazo, não abdicando ambas as partes do essencial dos valores que defendem.

O caminho é difícil, mas os homens e mulheres de livre pensamento não desistirão de desbastar a pedra bruta do sectarismo, atenuando as arestas do dogmatismo anglo-saxónico ainda reinante. Os sólidos anéis da cadeia que nos une, devem ser mais importantes do que  alguns formalismos concepto-ritualísticos algo anquilosados e actualmente pouco consistentes, tornados «landmarks» por MacKay, século e meio após as Constituições de Anderson iniciais. ….  .

Deste modo tem-se gorado a possibilidade de entreabrir portas para um futuro relacionamento maçónico formal da GLUI com as Lojas e Obediências que caminharam no sentido de concretizar as duas grandes e inevitáveis tendências da Ordem, nos séculos XX e XXI:
i) - a incorporação da Mulher nos trabalhos Maçónicos e a
ii) - liberdade de consciência.


Porquê viver agarrado estaticamente ao passado se é do presente e sobretudo do futuro que temos de tratar, continuando contudo a honrar, sob um olhar actual, as nossas origens e a essência dos inefáveis princípios que nos sustentam, antes que a Nobre e Augusta Instituição Maçónica seja também ela fustigada pelos sinais dos tempos e se dissolva progressivamente no pó dos anos futuros .…

Salvador Allen:.,  M:. M:.

Outubro, 2016


Bibliografia:  
1) - “Anderson’s Constitutions for Freemasons-1723 / The Wilson Manuscript”
2) – “Les Origines de la Maçonnerie Spéculative” – Roger Dachez, revista “Renaissance”
3) – “The Genesis of Freemasonry” – Douglas Knoop e G.P. Jones” – Manchester University Press – 1947
4) – “Franc-Maçonnerie: Régularité e Reconnaisance – Histoire e Postures” – Roger Dachez – Éditions Confome nº 5 - Paris
5) – “Régularité Maçonnique” – Alain Bernheim – Éditions Télétres – Paris (2014)
6) – “El Rito Francés – Historia, Relexiones y Desarollo” – A. Guerra – Ediciones Masonica
7) – “La-Regularidad-Masonica-en-una-nueva-Luz” – Learche, W-Cox
8) – “Historia de la Masoneria” – Ivan Herrera-Michel
9) – «Maçonaria Especulativa e Sir Robert Moray» - José Marti M:. M:. (Blog da R:. L:. Salvador Alende)
10) – “Dictionnaire de la Franc-Maçonnerie” -  Coord. Daniel Ligou – èditions PUF , 6ª ed. – Paris (2005)
11) – “A Polémica da Regularidade – Origens e Evolução” – Salvador Allende M:. M:.
12) -  Blog /Sites “Jakim & Boaz”  – (http://jakimeboaz.blogspot.pt)
[I] - No entanto esta Maç.'.  irlandesa  possuía já um 3º grau e até um  4º e último grau, o chamado  “Arco Real”,  superior ao grau de M.'. M.'., que consideravam como «a raiz, o coração e a medula da Maçonaria», como referiu Lawrence Dermott  (1º Grão-Mestre) no «Ahiman Rezon» (constituição dos “Antigos”), enquanto a Maçonaria Inglesa estava ainda a consolidar o 3º Grau.

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