Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

22 de fevereiro de 2012

1817 - Morrer pela Liberdade

Depois de tomar Lisboa, Junot é rejeitado pela Maçonaria portuguesa como seu representante, tenta então tornar-se “Rei de Portugal” e governar segundo uma constituição do tipo francês. Por seu lado, Gomes Freire de Andrade integra a Legião Portuguesa que parte ao serviço de Napoleão e da França.
Entre 1807 e 1814, serve o país que invadiu o seu, que o saqueara e que lhe infligiu uma guerra desumana.
Dona Mathilde de Faria e Mello, foge em 1808 com Gomes Freire, mulher casada, foi sua dedicada companheira até à sua morte. “A Mathilde tem sido constante companheira dos meus trabalhos; a pobre rapariga, depois de vender tudo quanto tinha, levava-me dinheiro para me livrar de aflições”, escreve Gomes Freire.
A missão da Legião Portuguesa fora concluída em 1814. Gomes Freire pediu então para regressar a Portugal, mas a permissão para o regresso demorou, valeu-lhe o talento político do seu primo direito D. Miguel Pereira Forjaz, um dos secretários mais poderosos da Junta Governativa.
Sujeitou-se a um processo de reabilitação que o declarou “livre de toda e qualquer mácula”. Apesar disso Gomes Freire tinha consciência que poderia ter sido considerado traidor à pátria, por ter servido o país que estivera em guerra com Portugal e durante o período que ela durou.
Raul Brandão, na obra Conspiração de 1817, editada pela primeira vez em 1914, refere sobre ele:
“Aluga em Lisboa ao cimo da rua do Salitre, junto ao chafariz do Rato, uma casinha onde vive com Mathilde de Mello. Instalação sumária: uma sala com um canapé estofado, algumas cadeiras de palhinha, dois ou três quadros com moldura de pau-santo. Na casa de jantar uma banca de madeira do Brasil, dez cadeiras chamadas tripeças, e no escritório uma banca de pau-preto e duas estantes de pinho com 395 volumes. A relação donde extraio estas notas desce a minúcias de beleguim (depreciativo de oficial de diligências): na pobre casa de Gomes Freire há 6 pratos e travessas de pó de pedra e 15 pequenos, 17 de guardanapo, cinco cálices para vinho e seis para licor, dois copos para agua, uma garrafa de vinho branco e cinco xícaras sem pires. E além destes utensílios vulgares (não xícaras) explica minuciosamente o solicitador entre parêntesis, quatro castiçais de casquinha e três pequenas bandejas lavradas — e fatos, casacos velhos, doze lenços de assoar e duas espadas”.


(…) Não tem vintém: dá tudo. Deve notar-se que Gomes Freire nem foi rico, nem possui dinheiro a que chamasse seu, porque tudo quanto tinha dava liberalmente. A sua casa, e Mesa estavam francas a todos os Oficiais. Os reformados quase nunca o deixavam, comiam e levavam dinheiro: disto há testemunhas por toda a Lisboa. (Analise) — Estou a ver o homem — mão para aqui, mão para acolá, todo ele coração e generosidade. Vêm-lhe com lamurias: ele nem os ouve, nem os deixa acabar: estende-lhes a bolsa onde metem a mão até ao fundo. As vezes não há vintém.”
Maçonaria. Entre 1815, data do seu regresso a Portugal, e 1817, quando foi executado, Gomes Freire desempenha um papel fundamental na Maçonaria portuguesa. Chega a ser seu Grão-Mestre, facto que contribuiu, sem dúvida, para a sua condenação devido ao sentimento anti-Maçónico do regime.
Foram alguns partidários do liberalismo que promoveram a iniciação Maçónica da viscondessa de Juromenha, na Resp:. L:. Virtude, em 1814.
Esta iniciação serviria para os liberais averiguarem os sentimentos do marechal Beresford face à Junta dos Governadores, que governava o país em nome de D. João VI, e a possibilidade de o trazer para o seio dos liberais.
Um grupo de oficiais movido por diversos desígnios, como sentimentos liberais, atrasos no pagamento do pré e das reformas, descontentamento pela ausência do Rei e um ódio ao comando do inglês Beresford, integraram um movimento que denominaram “Supremo Conselho Regenerador de Portugal, Brasil e Algarves”, para o qual conseguiram o patrocínio do general Gomes Freire de Andrade.
Gomes Freire, nasceu em Viena de Áustria a 27 de Janeiro de 1757. O filho do embaixador de Portugal na corte austríaca, tinha todas as características para obter a graça popular: era um homem de grande coragem, impulsivo, frontal e franco, por vezes indisciplinado, mas justo. Má cabeça e bom coração, como se disse dele.
Novamente, nas palavras de Raul Brandão:
“Não é por Gomes Freire falar mal o português, as suas ideias é que são outras. A língua é a mesma: os sentimentos divergem. Não cabe naquele mundo minúsculo que o repele. (…)
Dispõe duma generosidade larga e irreflectida, perigosa, de que todos se aproveitam, de uma generosidade que se lhe lê no olhar, que lhe sai do coração tão naturalmente como água duma fonte. O seu primeiro ímpeto é dar: a bolsa, a amizade, as ideias. É um homem sem lugar para segredos, que acredita em toda a gente, até nos marotos.
Se o enganam deita a mão à espada. O pior é que não vive entre soldados num acampamento, mas em Lisboa entre desembargadores e espiões. No próprio exército há delatores.
Beresford não é somente um general, é um intendente que traz o exército espiolhado e catado. Quer, é certo, que a tropa marche como um só homem, com regularidade mecânica e que tudo esteja metodicamente nos seus lugares. Mas além disto, impõe-lhes subordinação e respeito por si. Quem murmurar contra o inglês é mal visto e imediatamente afastado do serviço.”
A política tem coisas estranhas. O marido da viscondessa de Jurumenha, era o secretário militar do marechal Beresford e ela sua amante, com o seu proveito e complacência.
Ao contrário do que os liberais pretendiam, a viscondessa tornou-se a principal figura na liquidação da conspiração contra o regime de D. João VI. Andava exacerbada pela raiva aos pasquins que a insultavam. Quando o marido foi promovido a general por Beresford, vieram a lume umas quadras pouco abonatórias, que a irritaram:

De um corno fazer um tinteiro
Isso faz qualquer estrangeiro
Mas de um corno fazer general
Isso só faz o Senhor Marechal …

Pelo país começava a desenrolar-se um esboço de revolta. Os conjurados na tentativa de aliciarem gente, empolavam muito a força do movimento. Haveria gente ligada à conjura por motivos diversos da causa liberal.
Aliás, alguns dos conjurados eram agentes absolutistas infiltrados que mantinham informada a viscondessa e, por via desta, o marechal Beresford.
Conjura. D. João VI tinha acabado de ser aclamado Rei no Brasil e Beresford estava de partida para o Rio de Janeiro, onde ia tentar angariar mais apoio do Rei para a sua luta anti-Liberal.
Mas não queria partir, deixando a conspiração a fermentar na sua ausência.
A ideia de Beresford seria a de apresentar documentação à Regência que comprometesse os liberais. Incumbiu agentes de actuarem rapidamente e de fazerem uma lista exaustiva dos conjurados, dos seus graus, do tipo de adesão e das suas intenções e desígnios.
Em Maio de 1817, convocou algumas figuras da sua confiança a quem apresentou os documentos que tinham sido “engendrados” relativamente à conspiração.
Os provocadores fizeram as suas deposições em segredo, alguns dos conjurados passaram a delatores, e como o principal alvo era o Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, todos os testemunhos foram orientados para avolumar a importância da conspiração e para o tornar o no principal culpado da revolta.
Um Desembargador da Relação do Porto, constituiu como réus José Joaquim Pinto da Silva, alferes do Regimento de Infantaria nº 4 por ter afixado proclamações de incitação à revolta, na Igreja de S. Paulo em Lisboa, José Campelo de Miranda, José Ribeiro Pinto, alferes do Regimento de Infantaria nº 16, acusado de ser o instigador da rebelião no Porto, Manuel Monteiro de Carvalho, coronel de milícias reformado, Gomes Freire de Andrade, tenente general, Francisco António de Sousa, arquitecto civil, Pedro Ricardo Figueiró, capitão do Regimento de Infantaria nº 13, Francisco José das Neves, major do Batalhão de Atiradores de Lisboa, Henrique José Garcia de Morais, António Cabral Calheiros Furtado e Lemos, acusado de ser o responsável pela agitação em Santarém, Manuel de Jesus Monteiro, capitão do Regimento de Artilharia nº 3, Manuel Inácio Figueiredo, Maximiano Dias Ribeiro, António Pinto da Fonseca das Neves, segundo tenente do regimento de Artilharia nº 4, Frederico Barão d’Eben, Veríssimo António Ferreira da Costa, Cristóvão da Costa, alferes do Regimento de Cavalaria nº 10, e Francisco Leite Sodré da Gama.
Acusação. Nos autos de acusação, lê-se que os réus se tratam entre si por “sócios” e à Maçonaria por “Sociedade”.
Em Maio de 1817, Pedro Pinto de Morais Sarmento, denuncia ter sido convidado a entrar numa conjura contra o poder e que esta tinha como propósito a escolha de um Rei e de uma Constituição pela qual se governaria.
Acusa também de quererem destituir Beresford e de o substituir por um comandante português, provavelmente Gomes Freire de Andrade.
José Andrade Corvo de Camões, dias mais tarde corrobora as declarações de Morais Sarmento. Estes dois delatores são homens da confiança de Beresford.
Perante estas “evidências”, a Regência assegurou-se imediatamente da posição do exército e do apoio do general Paula Leite, encarregado do governo das Armas da Corte e da província da Estremadura. Era um elemento fundamental para a segurança da região de Lisboa.
O general Paula Leite emitiu ordens de prisão, contra o general Gomes Freire de Andrade, Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, e também para os diversos oficiais e civis.
A rapidez da actuação da Regência e a forma como todo este processo se desenrolou, causou surpresa a Beresford e reforçou a sua ideia de que havia gente ligada à Regência metida na conspiração Liberal.
Forte de S. Julião da Barra. Estamos a 18 de Outubro de 1817, no campo de Santa Anna muitos operários passaram a noite a trabalhar numa enorme estrutura de madeira. Ao alvorecer ainda havia tábuas por pregar, coisa que os carpinteiros fizeram a toda a pressa.
Para que o povo visse, foram erguidos postes, ao lado destes caixões abertos para receber os cadáveres dos que seriam poupados à fogueira. Toros empilhados metodicamente esperavam os restos mortais dos que o fogo havia de reduzir a cinzas, para depois serem lançadas no mar.
O enorme sobrado sob protecção dos militares, num sinistro aparato. A tropa, no largo, foi comandada pelo brigadeiro José de Vasconcelos. Nas ruas em redor, formam-se outras forças sob as ordens de Bernardo de Sá.
Gomes Freire foi condenado à forca, depois, decapitado, queimado e as suas cinzas deitadas ao mar. Não seguiu para o campo de Santa Anna, fora-lhe reservado o Forte de S. Julião da Barra, onde estava detido, para a sua execução. Vários ministros e magistrados do reino, vieram assistir à execução, que se iniciou às nove horas da manhã.
Gomes Freire, por desconhecer a totalidade da sentença, acreditou que iria ser executado de acordo com o seu estatuto militar e social, para isso fardou-se a rigor, esperando ser ele próprio a dar voz de fogo ao pelotão, mas foi surpreendido ao ser-lhe entregue a alva dos condenados à forca.
A guarnição do Forte, que fora constituída por soldados portugueses, já havia sido substituída por ingleses e o comando retirado a Haddock, por Pedro Duarte, disseram ao desembargador que tinham visto o militar inglês apertar a mão a Gomes Freire, fazendo-lhe certos sinais.
Conta-se que um oficial inglês se tinha prestado a dar fuga ao Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, mas que este a recusou, por achar indigno a um oficial do Exército. A Maçonaria Militar, mais uma vez, tentou salvar o Grão-Mestre, mas não obteve sucesso.
Para humilhar ainda mais Gomes Freire, obrigaram-no a fazer todo o percurso da cela até à forca, descalço. A ordem partiu do desembargador Pedro Duarte, que negou que o tenente coronel Haddock lhe pudesse dar uns sapatos.
Fazia um frio terrível, Gomes Freire, apesar de descalço subiu ao cadafalso com passo seguro. O carrasco passou-lhe o laço pelo pescoço e momentos depois o seu corpo balançava pendurado no cadafalso. Foi decapitado e o seu corpo queimado com alcatrão, vindo do Alfeite por ordem de D. Miguel Duarte Forjaz. Os restos mortais, mal queimados, foram lançados ao mar que simbolicamente os devolveu a terra, tendo sido enterrados na praia.
Campo de Santa Anna. Às duas da tarde saíram do Limoeiro, para o campo de Santa Anna os outros conjurados, vestidos com a alva e descalços.
Lê-se, para quem quis assistir, a interminável sentença. Palavras, palavras, palavras, que pareciam não ter fim. O beleguim, numa toada monótona vai relendo, às vezes engana-se, corrige e volta atrás:

António Cabral Calheiros Furtado e Lemos;
Henrique José Garcia de Moraes;
José Campelo de Miranda;
José Joaquim Pinto da Silva;
José Ribeiro Pinto;
José Francisco das Neves;
Manoel Monteiro de Carvalho.

Condenados a enforcamento, seguido de decapitação, e posteriormente os corpos queimados e as cinzas deitadas ao mar.

Pedro Ricardo Figueiró;
Manoel de Jesus Monteiro;
Manuel Inácio de Figueiredo;
Maximiano Dias Ribeiro.

Condenados ao enforcamento.

Foram ainda condenados a pena de degredo, Francisco António de Souza, para toda a vida em Angola; António Pinto Fonseca, por dez anos em Moçambique; Francisco da Paula Leite Sodré da Gama pena de degredo em Angola por cinco anos. O Barão de Eben, um prussiano ao serviço dos ingleses, aclamado general pela populaça, foi banido do reino para toda a sua vida. Para todos os réus a sentença ainda ditava o confisco geral dos bens.
Ainda asentença não era conhecida, já o povo havia sido disposto contra os conjurados, através de avisos assinados por José António Salter de Mendonça, expedidos aos bispos e aos prelados. Contra todas as convocações, o povo que vivia no campo de Santa Anna cerrou as janelas das suas casas, e saiu para outros lugares logo ao amanhecer. Ninguém quis ser testemunha desta carnificina.
Às quatro e meia da tarde, tomba o primeiro. A lentidão de todo este processo e o facto de se ter prolongado pela noite dentro, deu origem à frase de D. Miguel Pereira Forjaz: “É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas felizmente há luar”.
D. Miguel já tinha mostrado uma surpreendente pressa em ver-se livre do seu incómodo primo direito, que ele próprio tinha ajudado a regressar ao país três anos antes.
Nesse dia de Outubro a Gazeta de Lisboa, não mencionou qualquer notícia sobre as execuções, mas, publicou vários textos anti-maçónicos. Quanto à imprensa portuguesa publicada no estrangeiro dizia a propósito das execuções: “À sentença proferida contra os réus não se pode inferir outra coisa senão que eles foram condenados segundo o ‘bel’ prazer dos juízes”. Refira-se que a sentença só foi publicada dois dias após as execuções.
O povo liberal nunca o esqueceu. Em 1852, o general Cabreira foi nomeado governador da Fortaleza de S. Julião da Barra. Maçon, também conhecido pelo título de Barão da Batalha, mandou erguer, na esplanada da Fortaleza de São Julião da Barra, um monumento de homenagem ao general Gomes Freire de Andrade.
Na base desse monumento de um dos lados foi escrita a data de nascimento e alguns dos seus feitos militares, do outro lado pode ler-se: “À memória do distincto ilustre general Gomes Freire de Andrade victima em 1817. O seu admirador Barão da Victória da Batalha general e governador da Praça de S. Julião lhe mandou levantar este monnumento no anno de 1853”.
A 12 de Novembro de 1880, o Campo de Santa Anna passou a chamar-se, definitiva e oficialmente, Campo dos Mártires da Pátria, em homenagem aos conjurados assassinados neste local.
Em 1917, o povo liberal colocou no monumento de S. Julião da Barra, uma placa evocativa dos 100 anos da sua morte. No mesmo ano, a Câmara Municipal de Lisboa coloca na Rua do Salitre, 134, uma placa de homenagem a Gomes Freire, por ter sido esta a sua última casa com Mathilde de Mello.
Em Março de 1994, a CML recoloca, no Campo dos Mártires da Pátria, a placa que relembra o suplício dos patriotas, esta homenagem aos conjurados, foi consequência do abaixo-assinado que, em 1992, foi promovido pela poetisa Natália Correia e pelo poeta/escritor David Mourão-Ferreira, entre outros cidadãos.
António Borges M:. M:.
Dezembro de 2009

Bibliografia:
BRANDÃO, Raul, Vida e Morte de Gomes Freire, Editorial Comunicação, Lisboa, 1987
FERREIRA, João José Brandão, em linha, 10.12.2009, www.alamedadigital.com.pt
LOPES, António, Gomes Freire de Andrade Um Retrato do Homem e da Sua ÉpocaGrémio Lusitano, 
Lisboa, 2003

Sem comentários:

Enviar um comentário