Fiquem vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

(Últimas declarações de Salvador Allende ao povo chileno a 11 de Setembro de 1973, quando os aviões dos generais fascistas já bombardeavam o Palácio de La Moneda)

29 de julho de 2025

A Maçonaria na sua hora crítica - o vèu rasgado

 


A Maçonaria na sua hora crítica - o vèu rasgado 


Autor:  Iván Herrera Michel             

 


Durante anos, evitei diagnósticos apocalípticos sobre a Maçonaria, mas creio que chegou o momento de uma reflexão crítica (sem deixar de ser fraterna) sobre os seus desafios actuais, vistos a partir dos seus números, das suas tensões internas e pela sua fragmentação global. E escrevo isto sem qualquer intenção de polemizar. Há sinais, sintomas e dados ao longo do caminho que já não podem ser disfarçados com discursos de ocasião nem com banquetes de aniversário.              

A Maçonaria, que durante séculos se gabou da sua perfeição como regra, enfrenta hoje um preocupante desequilíbrio interno. Os seus pilares estão a ranger sob tensões doutrinárias, disputas de poder e um êxodo silencioso de membros, a tal ponto que não é exagero dizer que a sua relevância pública e a sua capacidade de inspirar as novas gerações devem ser objecto de sérias reflexões.               

Desde tempos remotos que a Ordem abraçou duas correntes principais, quase irreconciliáveis, cujas
diferenças criaram muros muito visíveis. A Maçonaria masculina, a partir dos seus centros de poder em Londres e na América do Norte, impôs um cerco diplomático a todos aqueles que não se subordinasse às suas políticas externas, de tal modo que a Maçonaria liberal, que  demonstrou maior disponibilidade para o diálogo pluralista, encontrou sempre as portas fechadas. Consequentemente, temos uma geografia maçónica fracturada  que enfraquece a sua força e acção precisamente quando é mais necessária uma voz ética internacional. Para completar o quadro, algumas Obediências, de ambos os lados, acabaram por se apropriar do dever da Ordem, como se lhes pertencesse exclusivamente a elas e só elas o pudessem interpretar.                     

A perda global de Irmãos é uma ferida profunda que afecta todas as partes. Para citar apenas alguns exemplos emblemáticos, segundo o The Guardian, a Inglaterra e o País de Gales caíram de 350.000 maçons há vinte anos,  para pouco mais de 150.000, e na última década, 546 Lojas desapareceram devido à falta de membrosNos Estados Unidos, a Associação de Serviços Maçónicos reportou menos de 870.000 maçons em 2023, face aos 4,1 milhões de 1959, com incorporações anuais inferiores ao número de saídas por idade avançada, pela Passagem para o Oriente Eterno e por deserção.

Na América Latina, a situação não é mais animadora. Abundam Obediências dispersas, com fraca visibilidade pública e conflitos internos, ora herdados da política nacional, ora de rivalidades pessoais, que drenam energia que poderia ser dedicada ao trabalho iniciático ou a compromissos cívicos visíveis. E o mais paradoxal é que tudo isto ocorre apesar da existência de organismos de integração interobediencias que tentam articular diálogos e posições conjuntas, mas que raramente conseguem influenciar a prática local ou combater a fragmentação operacional que domina a região. Em muitos casos, prevalece mais a  lógica da certificação externa do que a da fraternidade.                     

Algo de semelhante se pode dizer de África e da Ásia, onde, salvo raras excepções, a Maçonaria continua sujeita a tutelas externas ou a modelos importados que nem sempre reflectem as suas realidades sociais e culturais. Em muitos casos, operam como extensões administrativas de Maçonarias europeias, sem espaço para estabelecer a sua própria voz nos debates globais da Ordem. Embora haja sinais de autonomia simbólica e de crescimento institucional, especialmente nalgumas capitais africanas e do Sudeste Asiático, o peso das antigas obediências centralizadas continua a ditar o ritmo, com uma real centralização do poder que perpetua uma geopolítica de obediência, em vez de cooperação fraterna.                     

No caso australiano, a situação é ainda mais insólita. O continente desenvolveu uma Maçonaria com forte influência anglo-saxónica, sob a égide da Grande Loja Unida de Inglaterra e das suas congéneres regionais. As Grandes Lojas estatais, como as de Victoria, Nova Gales do Sul e Queensland, que fazem parte do coração económico e populacional do país, mantêm uma estrutura administrativa consolidada, templos proeminentes e uma certa visibilidade institucional, mas também sofrem de uma clara falta de renovação e de uma progressiva perda de relevância no debate público contemporâneo. Nelas, a grande maioria são homens com mais de 60 anos, que seguem rituais preservados mais por inércia do que por vitalidade filosófica, o que os mantém presos num espelho retrovisor cada vez mais alheio ao espírito crítico e inclusivo dos tempos modernos. Enquanto isso, os maçons progressistas do continente operam na periferia institucional, frequentemente silenciados, como se fossem uma excentricidade que deve tolerar, mas sem nomear. 

A tudo isto acresce a situação da Maçonaria continental europeia, que, apesar da sua vocação humanista e do seu papel histórico na modernidade, tão pouco escapou ao fenómeno da fragmentação. E embora algumas Obediências mantenham influência cultural e institucional, as divergências ideológicas (sobretudo em relação à laicidade, ao papel das mulheres e às relações internacionais) dificultam uma acção concertada. A diversidade, outrora fonte de riqueza, tornou-se um arquipélago sem pontes nem bússolas partilhadas.                                                    

Ao mesmo tempo, a Maçonaria enfrenta também os ventos de um secularismo que questiona o apelo ao sobrenatural que se enraizou em alguns círculos, distorcendo a sua proposta construtiva. Por vezes, dá a impressão de que se trata de um sincretismo de observâncias obrigatórias, apresentadas como "maçónicas", que compete ou não é harmónica, com as religiões ou sistemas de crenças que possam trazer os seus novos membros,  que acabam por abandonar as Oficinas. O mesmo se aplica à igualdade de género. A Maçonaria Liberal integrou as mulheres, alinhando-se com a agenda dos direitos civis, enquanto as fortes raízes machistas de um importante sector da Ordem continuam relutantes em admiti-las, com o consequente custo reputacional.                    

Por fim, vale a pena assinalar que, aos olhos do público, as teorias da conspiração continuam a pairar sobre a sociedade. Como observou o The Guardian, a Ordem "continua a ser uma sociedade com segredos, e alguns no exterior presumem o pior". De facto, as campanhas digitais não dissiparam esta sombra, e cada tentativa de explicar o iniciático parece alimentar ainda mais as suspeitas.

E, como consequência não intencional, a situação provocou, colateralmente, um estrangulamento económico. Menos membros significam menos quotizações, cada vez mais templos vendidos, alugados ou fechados, rituais realizados em instalações emprestadas e diminuição da atividade simbólica. Não é segredo que, sem recursos, as reuniões e os projetos que poderiam atrair novos iniciados são reduzidos, e as finanças tornam-se insustentáveis para aqueles que herdaram uma significativa herança imobiliária para sustentar.

Na era digital, onde tudo é transmitido e tudo se exige, a Maçonaria tenta atrair candidatos através das redes sociais e de eventos públicos. Mas este marketing entra em conflito com a sua vocação iniciática, deixando uma sensação de contradição. Faz sentido transmitir no YouTube o que é apresentado como arcano? Que valor transcendente retém aquilo que se converte num espectáculo? A realidade é que o ritual só conserva o seu poder se for vivido como um acto de pausa, de significado e de pertença, não como uma cerimónia decorativa ou anedota audiovisual.                                  

A pergunta de um milhão de dólares é: "Para onde vai a Ordem?". A combinação de tensões internas, diferenças geracionais, dificuldades económicas e fragmentação institucional representa uma ameaça real se a sua fractura geopolítica não for reconhecida e se não houver uma integração séria entre os seus principais blocos. Onde hoje existem exclusões ritualizadas, render-se ao outro não é uma opção fraterna nem real.                      

Hoje, não basta que os maçons acreditem na sua missão. Também precisam de responder a uma sociedade que os vê com desconfiança, exigência ou simplesmente indiferença. A validação ética já não provem do silêncio do Templo, mas do diálogo entre quem somos e o que o mundo espera de nós. Em última análise, a questão que se torna evidente é brutal: "Quem quererá aderir a uma Ordem percebida como irrelevante, dividida e desligada do mundo real?"      

A grandeza da Maçonaria não reside na sua antiguidade, mas na sua capacidade de aperfeiçoar a humanidade, e hoje isso exige a reconstrução dos seus laços internos sobre bases éticas, abertas e verdadeiramente fraternais. É claro que o caminho não consiste em uniformizar as nossas práticas, mas sim em reconhecermo-nos uns aos outros na diversidade e nos nossos princípios comuns, praticando uma diplomacia maçónica baseada não no poder nem na supremacia, mas no respeito mútuo.


Iván Herrera Michel

(selecionado do Blog «Pido la Palabra» de 4.Julho de 2025 / tradução de Salvador Allen M:.M:. / R:.L:. Salvador Allende, GOL, Lisboa)


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