22 de junho de 2023
20 de junho de 2023
Viajando com livros: Afondo Duarte
Transcrito, com a devida avénia, daRevista Tempo Livre /Maio/Junho 2023
e convocava a permanência efetiva no quotidiano dos grandes valores universais.
Afondo duarte:a ambição de ser europeu
O poeta que exaltou a génese cósmica da natureza, a celebração panteísta da vida,
a reposição da democracia, a ambição de ser europeu e a supremacia dos grandes valores
universais Por António Valdemar
Poesia afirma-se na palavra que
desperta outra palavra, mais
outra e outras mais enquanto se
manifesta o ímpeto do diálogo
interior. Fixa o que surpreende
o poeta a cada momento: as pulsões da terra na sua diversidade,
o voo e o canto dos pássaros, a exuberância
das árvores e das flores; o curso dos rios,
a inquietação do mar e a interrogação dos
astros. Recorre também à memória da infância e da adolescência, à vulnerabilidade
da condição humana, ao encontro com o
mundo e ao seu permanente desconcerto.
É a vida inteira em tudo o que é deslumbramento e em tudo o que é o seu contrário.
Um dos grandes poetas Portugueses da
primeira metade do século XX, Afonso
Duarte (1884-1958) nasceu na Ereira, uma
das ramificações do concelho de Montemor-o-Velho, próximo da Figueira da Foz.
Integra-se no Baixo Mondego, onde nasceram escritores, poetas, artistas, mestres
universitários e outras personalidades de
evidência cultural, política e social. Basta citar: Fernão Mendes Pinto e Jorge de
Montemor; Manuel Fernandes Tomaz, líder da revolução liberal; o filósofo Joaquim
de Carvalho; os poetas Afonso Duarte, João
de Barros e Santiago Prezado; os pintores
Manuel Jardim, Cândido da Costa Pinto e
Eduardo Nery, o crítico literário João Gaspar Simões, os cineastas João César Monteiro e José Mário Grilo.
O itinerário de Afonso Duarte pode, assim, resumir-se: fez o ensino primário na
Ereira e Alfarelos e o ensino secundário e
universitário em Coimbra. Licenciado em
Ciências Físico-Naturais, lecionou em Vila
Real de Trás-os-Montes, em Lisboa e, sobretudo, em Coimbra. Todas estas cidades
deixaram-lhe reminiscências inapagáveis.
Todavia, uma das marcas mais profundas
ocorreu na altura em que foi incorporado
no serviço militar, durante a participação
de Portugal na primeira Guerra Mundial:
ficou paraplégico e, até à morte, com a mobilidade extremamente reduzida.
A revelação literária de Afonso Duarte,
num órgão de projeção nacional, verifica-
-se a partir de 1912, na revista Águia, dirigida, no Porto, por Teixeira de Pascoaes.
Também em 1912 funda, em Coimbra, a
revista Rajada que reúne poetas, ensaístas
e artistas plásticos que viriam a salientar-se
na cultura e na política: Alberto Veiga Simões, crítico, historiador, diplomata de carreira e ministro dos Negócios Estrangeiros;
Nuno Simões advogado, ministro de várias
pastas na primeira República, que nunca
deixou de escrever nos jornais, ocupando-
-se da aproximação cultural luso-brasileira.
Almada Negreiros que procurava, então,
tima e na Ode Triunfal; e, por
exemplo, ao poema Tabacaria (publicado em 1933, na
Presença). Introduziu numa
expressão original do registo do tempo, do sentimento
de incerteza, da sensação de
vazio, da solidão e incompreensão em face de tudo
que rodilhava e envolvia o
próprio Fernando Pessoa.
Numa alusão a estas ruturas que vão consolidar a
modernidade portuguesa,
Afonso Duarte rejeita «o estilo enovelado dos poetas fáceis».
Não se afasta do modelo literário que exaltava a Ereira
e Coimbra: «É na poesia lírica
dos rios, / – no sarcasmo das
rugas da montanha – no que
me enche de mar, seu sonho e
desvario – que o meu retrato
vivo se desenha.» A interpelação política, com exigências
morais e cívicas, surge nas
Ossadas e nos outros livros
que publica: «Honra. Brio. Dignidade: Onde
estais? Quem vos Preza?» Enfrentava a política e políticos que governavam o País: «Lembram-me bichos, carochas, centopeias, / Musgo,
paredes húmidas, bolores, / ao pensar na pobreza! Ideias. E causam-me suores.»
O poeta foi tudo isto e, ao mesmo tempo,
mantinha a ambição de ser europeu. O ano
Afonso Duarte:de 1949 não apagara os horrores da Segunda Guerra Mundial e, no plano interno,
sucediam-se as polémicas em torno do movimento criado devido à candidatura presidencial de Norton de Matos. A oposição
encontrava-se retalhada. A PIDE multiplica
as prisões em todo o país. É neste ano que
Afonso Duarte escreveu um dos seus mais
conhecidos sonetos Terra Natal. Muito mais
do que um soneto é uma proclamação: «E
cá mesmo no extremo Ocidental / duma Europa
em farrapos, eu / quero ser Europeu: quero ser
Europeu / num canto qualquer de Portugal.»
Reportando-se, à situação do país e da sua
própria situação como português e poeta,
orgulhoso das suas origens, acrescenta:
«Um presídio será, mas é meu berço! / nem noutra língua escreveria um verso / que me soubesse
ao sal desta harmonia.»
Afonso Duarte tem publicadas as suas
Obras Completas, mas falta a organização de
uma antologia dos poemas mais significativos, para termos acesso direto à amplitude
do poeta que manteve uma cidadania participativa, procedeu à celebração panteísta
da vida, à força cósmica da natureza ee convocava a permanência efetiva no quotidiano dos grandes valores universais.