Com a devida vénia se transcreve este Artigo, escrito por António Valdemar, na Revista Tempo Livre (Viajar com Livros)
Mar, sempre o Mar
Poetas, escritores e dramaturgos portugueses aprofundaram todas as motivações da vida
no mar. Encontram-se na poesia dos Cancioneiros medievais, na obra épica e lírica
de Camões, nos sonetos de Antero, na Ode Marítima de Pessoa, nos roteiros do litoral
e das ilhas dos Açores de Raul Brandão.
O mar permanece desde sempre vinculado a Portugal. É um dos elementos que definiram parte significativa do território, estabeleceram uma das fronteiras com a Galiza, consolidaram a administração pública e privada, determinaram relações comerciais com o exterior e, alguns séculos depois, contribuíram para a expansão de Portugal através do Mundo. A presença do mar refletiu-se logo nos primórdios da literatura portuguesa. Encontra-se nos Cancioneiros que recolheram a poesia medieval e um dos exemplos mais relevantes é Martin Codax ao confessar a sua insatisfação afetiva marcada por interrogações sucessivas: «Ondas do mar de Vigo, / se vistes meu amigo? (…) Ondas do mar levado, / se vistes meu amado? E ai Deus, se verrá cedo?»
Camões é, quase sempre, nestas circunstâncias, citação obrigatória. Localizou n’Os Lusíadas os contornos de Portugal, seguindo a disposição do cartógrafo Álvaro Seco, no primeiro mapa impresso (1561) que representou a nossa extensão geográfica e que se mantém até hoje: «eis aqui, quase cume da cabeça / da Europa toda, o Reino Lusitano, / onde a terra se acaba e o mar começa.» É com orgulho que Camões se identifica: «Esta é a ditosa Pátria minha amada». Também relata com orgulho a memória das origens de Portugal e dos portugueses: «mandas-me, ó Rei, que conte declarando / de minha gente a grã genealogia; / não me mandas contar estranha história, / mas mandas-me louvar dos meus a glória». Através d’Os Lusíadas menciona as qualidades e não oculta os defeitos do povo português. Sentimentos nobres como a generosidade, a coragem e a honra. Defeitos lamentáveis como a corrupção, o suborno e a inveja. Incentiva D. Sebastião a defender Portugal entre os povos europeus: «fazei, Senhor, que nunca os admirados / alemães, galos, ítalos e ingleses, / possam dizer que são pera mandados, / mais que para mandar, os Portugueses». O génio de Camões descreveu com a garra e a energia de um grande repórter a fúria das tempestades ou a serenidade do mar no acordar das manhãs; a luz envolvente das tardes repousadas e a agonia do sol a extinguir-se e a transformar-se na escuridão cerrada da noite. Retratou n’Os Lusíadas o dia a dia de bordo, as horas de confusão e de angústia e as horas de fascínio vividas em todos os oceanos e continentes. Um dos seus biógrafos e críticos, Aquilino Ribeiro destaca «a agudeza de retina insuperável» de Camões quando procede à «anotação do real». Isto só foi possível – observou – por ter sido «soldado raso, sujeito a todos os trabalhos da mareação, calejando os dedos a puxar as adriças, tressuando a dar à bomba, e ouvindo, com torva, mas obediente cara, as ordens, descomposturas e impropérios» dos mestres das naus em que viajou. Daí a obra de Camões ser um testemunho «da sua vida incerta, precária, cheia de baldões e rica de polpa, tanto para o bem como para o mal». Por tudo isto, tanto a sua poesia épica, como a sua poesia lírica e elegíaca (sonetos, éclogas, canções) – conclui Aquilino – «deita sangue, o rubro e generoso sangue dos corpos animados».
O mesmo não entendeu Eduardo Lourenço. Ao ocupar-se da importância que o mar exerceu na vida e na obra de Antero, é da opinião que, enquanto «o mar em Camões é um elemento exterior, uma estrada para chegar a um porto já sabido», o mar tem outra ressonância em Antero. Na literatura portuguesa – salienta ainda – o mar «só irrompeu em Antero» com a força da sua evidência oceânica e da sua profundidade cósmica. O mar que acompanha Antero e que envolve a ilha de São Miguel – insiste Eduardo Lourenço – «identifica-se com a sua luta espiritual, fluxo e refluxo eterno, entre ser ou não ser como a vida».